CASO CESARE BATTISTI - Breves apontamentos
Apresenta-se a história do caso: Cesare Battisti é um ex-ativista de esquerda condenado a prisão perpétua na República Italiana pelo suposto assassinato de quatro pessoas, no período de 1977 e 1979. À época dos fatos, o acusado fazia parte do grupo de extrema esquerda “Proletário Armados pelo Comunismo (PAC)”. O grupo atuou nos anos posteriores à Segunda guerra mundial, tempo que ficou marcado para a Itália pela repressão, violência e terrorismo – tanto da esquerda quanto da direita política.
Em 1979, Battisti é preso em Milão, mas após ação da PAC, consegue se libertar e fugir para a França. Entre 1982 e 2004, passou pelo México e novamente pela França, vindo a se refugiar no Brasil. Por fim, Battisti é preso em 2007 em território brasileiro. Em janeiro de 2009, o então Ministro da Justiça, Tarso Genro, concedeu o status de refugiado político a Cesare Battisti, obstando, por conseguinte, o pedido de extradição requerido pelo Estado Italiano. A partir daí se inicia a querela internacional.
A República Italiana ingressa com pedido no Supremo Tribunal Federal para que se declare ilegal a concessão de refúgio ao ex-ativista. O STF, em novembro de 2009, negou o refúgio no país e decidiu pela autorização da extradição ao afirmar que os crimes cometidos por Battisti não possuíam conotação política e não haviam sido alcançados pela prescrição. Com isso, a Corte autorizou, por cinco votos a quatro, a extradição do italiano. Foram vencidos os ministros Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Eros Grau e Marco Aurélio . Contudo, a Corte Suprema observou que a decisão final quanto à extradição caberia ao então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva - o que já constituía praxe na tradição constitucional brasileira e no direito comparado.
Tendo o presidente negado a extradição, o que aparentemente poria término à questão, a Corte Suprema, dessa vez, afirma que irá analisar novamente o caso à luz do Tratado de Extradição firmado entre a Republica Federativa do Brasil e a República Italiana , a fim de identificar eventual desrespeito ao acordo bilateral.
De certo modo, a existência de um tratado específico de cooperação entre os Estados modifica a fase de execução da extradição, visto que há entendimento no sentido de o Presidente da República, nessa situação, ficar adstrito ao cumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal – ainda que seja dissonante da sua decisão política.
Nesse interregno, o ex-ativista continua preso. A medida tem sofrido forte critica. Segundo o relator do caso, Ministro Gilmar Mendes, a questão deve ser definida ainda em março de 2011.
2 CONVENÇÃO DA ONU E AS CONSIDERAÇÕES DO COMITÊ NACIONAL PARA OS REFUGIADOS (CONARE)
O instituto da extradição funda-se no primado da consecução da justiça, diga-se, no direito que cabe ao Estado de punir o infrator das normas de conduta positivada no ordenamento jurídico pátrio. Destaca-se a explanação de Celso D. de Albuquerque Mello:
[...] existe uma solidariedade entre os Estados na luta contra o crime. Há ainda um dever moral dos Estados, que é o de assistência mútua, incluindo-se nela a repressão à criminalidade. Enquanto o princípio universal de repressão à criminalidade não for adotado de modo amplo, o que tão cedo não acontecerá, a extradição é um instituto necessário para que a repressão seja eficaz
É nesse sentido que se tem a Convenção da ONU relativa ao Estatuto dos Refugiados. A Convenção define como refugiado a pessoa que estiver fora de seu país e que não puder ou não desejar a ele regressar em decorrência de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política. A Convenção da ONU sobre Refugiados foi ratificada pelo Brasil em 1960. Em 1997, foi aprovada a Lei n. 9.474/1997, estabelecendo meios para a exeqüibilidade normativa da Convenção .
O Ministério da Justiça tem afirmado que a eventual extradição de Cesare Battisti violaria a Convenção da ONU e que abriria perigoso precedente para novos pedidos de extradição de refugiados.
Segundo informações do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) - órgão vinculado ao Ministério da Justiça - representantes de diversos países, especialmente da América Latina, tem demonstrado interesse em solicitar a extradição de seus nacionais. Conforme estatísticas, atualmente vivem no território brasileiro 4.183 refugiados de 76 países diferentes. Nas palavras do presidente do CONARE, Luiz Paulo Barreto, por essa razão que a Convenção da ONU e a lei brasileira não permitem a extradição de um refugiado. Não sendo assim, ficarão sempre sujeitos a persecução ou perseguição do país de origem pelas mesmas razões que levaram o país de acolhida a protegê-lo. Caso contrário, seria o fim da estabilidade jurídica e social que caracterizam e sustentam o refúgio.
Evidencia-se ainda mais a importância da decisão a ser tomada, haja vista a potencialidade de efeitos em larga escala para a realidade nacional.
3 INDICIOS DA PERSEGUIÇÃO E OBSERVAÇÕES DO AGU
Consoante o ordenamento pátrio, a competência para processo de extradição é do Supremo Tribunal Federal. A Constituição determina que cabe ao STF “processar e julgar, originariamente, a extradição solicitada por Estado estrangeiro” (art. 102, I, g). Na esteira da praxe jurisprudencial, constroem-se outras racionalidades, as quais propugnam complementar a compreensão já advinda da literalidade do texto constitucional. Nesse sentido:
O Supremo Tribunal Federal não deve autorizar a extradição, se se demonstrar que o ordenamento jurídico do Estado estrangeiro que a requer não se revela capaz de assegurar, aos réus, em juízo criminal, os direitos básicos que resultam do postulado do due process of law (RTJ 134/56-58 – RTJ 177/485-488), notadamente as prerrogativas inerentes à garantia da ampla defesa, à garantia do contraditório, à igualdade entre as partes perante o juiz natural e à garantia de imparcialidade do magistrado processante. Demonstração, no caso, de que o regime político que informa as instituições do Estado requerente reveste-se de caráter democrático, assegurador das liberdades públicas fundamentais.” (Ext 897, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 18/02/05);
Contudo, por vezes, verifica-se a incongruência das disposições normativas com a realidade, nesse caso entre os ideais democráticos da República Italiana e notório cerceamento de liberdades fundamentais a que seria submetido o ex-ativista em eventual extradição.
Nesse aspecto, destaca-se entrevista dada, em janeiro de 2011, pelo Advogado Geral da União, Luiz Inácio Adams, o qual fez notar aspecto interessante da querela internacional. O tratado de extradição entre Brasil e a Itália inclui um ponto específico sobre riscos para o extraditando, o que significa que o fato de ambos os países serem democráticos não seria uma garantia da ausência de riscos. As ressalvas são admitidas no teor do acordo bilateral:
Artigo III
Casos de Recusa da Extradição
A Extradição não será concedida:
[...]
e) se o fato pelo qual é pedida for considerado, pela parte requerida, crime político;
f) se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados;
Artigo V
Direitos Fundamentais
A Extradição tampouco será concedida:
a) se, pelo fato pelo qual for solicitada, a pessoa reclamada tiver sido ou vier a ser submetida a um procedimento que não assegure os direitos mínimos de defesa. A circunstância de que a condenação tenha ocorrido à revelia não constitui, por si só, motivo para recusa de extradição; ou
b) se houver fundado motivo para supor que a pessoa reclamada será submetida a pena ou tratamento que de qualquer forma configure uma violação dos seus direitos fundamentais,
Evidentemente, impossibilitado de dar certeza quanto aos riscos que o extraditando seria exposto, o Advogado Geral da União decidiu por subsidiar a convicção do presidente, assegurando que as inflamadas manifestações na Itália por si só eram um forte motivo para recusar a extradição com base no ordenamento pátrio, bem como nos termos do Tratado entre Brasil e Itália. Destaca-se:
[...] é perfeitamente legítimo que Vossa Excelência avalie que há ‘razões ponderáveis para supor’ que a situação do extraditando possa ser agravada por sua condição social, política ou pessoal, pelo que é o presente para opinar pela não-concessão da extradição .
Para ilustração do espírito que se forma na República Italiana, o Assessor de Cultura da província de Veneza aprovou uma proposta legislativa ordenando que as bibliotecas venezianas: a) removam das estantes todos os livros escritos pelos autores que tenham assinado uma petição de 2004 pedindo a libertação de Cesare Battisti, b) não organizem eventos com a presença desses escritores, devendo os mesmos serem declarados “pessoas indesejáveis”. Vale lembrar que poucos dos livros se referem ao tema política. No mesmo balaio, tem-se romances a livros infantis.
Em outra situação, igualmente aterradora, o jornal L’Occidentale publicou, em janeiro desse ano, matéria sugerindo que o serviço secreto a italiano deveria realizar uma operação no Brasil para sequestrar Cesare Battisti, cuja extradição foi negada pelo ex-presidente brasileiro . Na situação do ex-ativista estar livre em território nacional, o serviço secreto italiano deveria rendê-lo e transportá-lo de volta ao Estado Italiano, a chamado rendition, procedimento realizado outras vezes pelo serviço secreto americano para sequestrar inimigos ou adversários políticos em nações estrangeiras. Em poucas palavras, sugeriu-se a entrada desautorizada de forças estrangeiras no território brasileiro a fim de se realizar um procedimento ilegal no contexto da normatividade internacional.
REFERENCIAS
Convenção de 1951, Relativa ao Estatuto dos Refugiados.
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. II. 13. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
PARECER nº 17/2010 da AGU, em 29/12/2010.
Data de elaboração: marco/2011