TECNOCIÊNCIA E DIREITO PENAL: MEIOS DE CONTROLE SOCIAL


PorFranciele Rupolo- Postado em 07 setembro 2020

Autores: 
João Vitor Pereira Campos de Aragão
Nayara Carcheno Rocha
Fonte: http://domhelder.edu.br/wp-content/uploads/2020/03/Anais%20Semin%C3%A1rio%20Tecnoci%C3%AAncia%20-%20Maio%202019%20-%20Copy%201.pdf
 
 
Introdução
O controle social advém da Sociologia, tendo um significado ambíguo que pode ser compreendido em diversos sentidos, podendo ser empregado para designar o controle da sociedade sobre as ações do Estado, que segundo o governo brasileiro, o referido controle é a participação da sociedade civil nos processos de planejamento, acompanhamento, monitoramento e avaliação das ações da gestão pública e na execução das políticas e programas públicos. Dependendo da sua abordagem, pode caracterizar-se como uma abusiva limitação na liberdade de cada indivíduo que seja submetido a ele, ou seja, pode se tornar um perigoso controle da vida social, dependendo da forma em que é utilizado pelo Estado. O autor García-Pablos conceitua o termo:
Com o vulgar e impreciso conceito de controle social – conceito sociológico neutro, descritivo – se faz referência a certos processos sociais que atingem a conformidade do indivíduo, submetendo-o às pautas, modelos e requerimento de grupo; coesão, disciplina, integração são, pois, termos que descrevem o objetivo final que persegue o grupo, a sociedade, para assegurar sua continuidade frente ao comportamento individual irregular ou desviado. (GARCIA-PABLOS, 1999, p. 77)
O controle pode ser formal ou informal. O primeiro se realiza sobre o indivíduo pelas normas e por órgãos do Estado, enquanto a modalidade informal observa-se na influência do indivíduo pela família, opinião pública, etc. A principal forma de controle é a informal por se aplicar em todos os momentos da vida do indivíduo, pois sofre influências de todos os lados desde o nascimento. No momento que se constata que este tipo de controle é insuficiente ou negativo para a vida daquele cidadão, cede lugar para o controle formal. Este impõe alguns modelos de conduta que devem ser seguidos pelo cidadão, ficando suscetível à aplicação de
sanção aquele que não segue as normas estabelecidas e que coloca em risco ao resto da sociedade. Neste caso trata-se do controle social penal.

1 Poder disciplinar e o adestramento social
Após conceituar os termos tecnociência e controle social, propõe-se responder aos seguintes questionamentos: as câmeras de monitoramento, usadas ao longo dos grandes centros urbanos, são instrumentos a serviço da segurança pública ou representam um meio de controle social? Quando utilizadas pelo Estado como meio de controle social são passíveis de violação da privacidade do indivíduo? E, finalmente, questiona-se: Podem representar uma estratégia do poder disciplinar do Estado no sentido de prover o adestramento social? A partir da leitura da obra “Vigiar e punir”, de Michel Foucault, extrai-se que o autor entende o poder disciplinar como sendo aquele capaz de “adestrar” o indivíduo, ou seja, torná-lo hábil para realizar determinada ação, que no caso seria agir conforme os parâmetros exigidos:
O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido, separa, analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição até às singularidades necessárias e suficientes. (Michel Foucault, 1999, p.195)
Para obter êxito com o poder disciplinar o autor elencou três processos pelos quais ele deveria passar e, é a partir deles, que buscou-se entender a relação entre as câmeras de monitoramento e sua finalidade. É importante ressaltar que a união desses processos para que haja disciplina gera o chamado controle social, pois eles foram criados para auxiliar a submissão do indivíduo às normas sociais. O primeiro desses processos é conceituado como vigilância hierárquica e se refere aos dispositivos que, a partir de sua instalação, “obrigam” os indivíduos a agir corretamente apenas pelo simples fato de gerarem nestes um efeito de poder, que pode ser entendido como uma espécie de coerção.
De acordo com Michel Foucault (1999, p. 196) “O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam.” A partir desse conceito, criado por Foucault, é possível compreender a função principal de câmeras de segurança nos espaços públicos: desencorajar a prática de ilicitudes, pois não há como saber quem está vigiando e muito menos o momento que
está sendo vigiado, por isso, os indivíduos têm a sensação de estarem sendo vigiados o tempo todo.
No que tange ao debate a respeito da eficiência desse dispositivo, não é possível afirmar que há uma plena eficiência, mas sim uma redução dos casos infracionais. Isso é comprovado a partir da análise comparativa, do período anterior e posterior da instalação de câmeras nas cidades brasileiras. A cidade de Itu (SP), por exemplo, registrou um total de 511 furtos no ano anterior à instalação de câmeras no espaço público e de 498 no ano em que estas foram instaladas. Este fato pode ser explicado pelo efeito gerado por esses instrumentos, pois assim como a prisão ideal de Jeremy Bentham, as câmeras permitem que os indivíduos se tornem mais obedientes ao gerarem o temor de serem flagrados agindo incorretamente, por isso se observa, controla, e mais facilmente se pune:
Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores. (Michel Foucault, 1999, p. 224).
Entretanto, além de servirem para prevenir ilicitudes, as câmeras de monitoramento também estão relacionadas com o controle social, sendo possível entender essa relação a partir dos próximos processos elencados por Foucault para o sucesso do poder disciplinar. O segundo deles é conhecido como sanção normalizadora e se refere a uma penalidade específica para casos de inobservância do conteúdo das regras. Por exemplo, cita-se o caso de um soldado que comete uma falta em serviço e é punido com o afastamento das atividades por período determinado. Elas possuem caráter corretivo e tem como função evitar os desvios de conduta. Neste aspecto pode-se entender que o Estado está desempenhando o controle social ao punir o indivíduo com uma sanção, sendo que as câmeras funcionam como uma espécie de auxílio na identificação do infrator. O terceiro processo é conhecido como exame e seu próprio conceito pode ser entendido como o controle social, uma vez que funciona para que os indivíduos sejam classificados de acordo com suas ações:
O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é
altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade. No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam. (Michel Foucault, 1999, p. 209)
A partir do exame é que se pode diferenciar os indivíduos normais daqueles que são infratores. Este processo ocorre quando se capta alguma infração a partir das câmeras e o indivíduo infrator tem o seu histórico levantado e uma sanção lhe é atribuída. Dependendo dessa sanção, ele pode ser preso, obrigado a ressarcir o dano ou a pagar uma multa. Com essa classificação do indivíduo perante sua conduta, o estado está exercendo o controle social.

2 Colisões entre direitos fundamentais
Apesar de as câmeras de segurança serem instrumentos de segurança e de auxiliarem no controle social realizado pelo estado, os efeitos da vigilância não recaem apenas sobre os infratores, pois elas estão localizadas no espaço público e, portanto, todos que ali transitarem também são observados pelas câmeras. É a partir desse momento, que surge o debate acerca do conflito entre a privacidade e a segurança dos indivíduos. Esse conflito surge no âmbito dos princípios, pois diferentemente das regras, eles garantem direitos ou deveres parcialmente, pois podem sofrer restrições de outros princípios. Já as regras, impõem direitos e deveres que devem ser cumpridos totalmente, sob a pena de serem declaradas inválidas. A partir da análise do caso concreto, percebe-se que os princípios têm pesos diferentes, sendo que o princípio com maior peso terá precedência sobre o outro. Neste sentido, aduz Robert Alexy:
As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem - o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido-, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. (Robert Alexy, 1986, p. 93)
Para solucionar o problema da colisão entre dois princípios, Robert Alexy teorizou o que a jurisprudência alemã chamava de regra da proporcionalidade. Ela consiste na análise de três sub-regras que a compõem: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A adequação se refere à análise se a medida adotada, no caso a implementação das câmeras de monitoramento é adequada para fomentar o objetivo perseguido, que seria garantir a segurança das pessoas. A resposta é positiva, pois elas aumentam a segurança dos indivíduos nos espaços
públicos ao gerarem o sentimento de uma vigilância ininterrupta. A segunda sub-regra relaciona-se à necessidade e significa a busca por outras medidas que seriam menos gravosas à privacidade dos cidadãos e que permitiriam alcançar o mesmo objetivo. Porém, nesse caso, também se avalia a eficiência da medida, considerando-se o uso de câmeras como medida mais eficiente que outras para alcançar a segurança, como, por exemplo, o aumento da patrulha policial, uma vez que as câmeras podem estar em todos os lugares e o tempo todo. A terceira e última sub-regra refere-se à proporcionalidade em sentido estrito, que consiste na avaliação dos direitos envolvidos, para evitar que medidas estatais, embora adequadas e necessárias, restrinjam direitos fundamentais além da realização do objetivo perseguido seja capaz de justificar. No caso do debate entre a segurança e a privacidade dos cidadãos, compreende-se que a segurança possui mais peso no caso concreto e por isso possui uma precedência em relação à privacidade:
Princípios são mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas e fáticas. A máxima da proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, exigência de sopesamento, decorre da relativização em face das possibilidades jurídicas. Quando uma norma de direito fundamental com caráter de princípio colide com um princípio antagônico, a possibilidade jurídica para a realização dessa norma depende do princípio antagônico. Para se chegar a uma decisão é necessário um sopesamento nos termos da lei de colisão. Visto que a aplicação de princípios válidos - caso sejam aplicáveis - é obrigatória, e visto que para essa aplicação, nos casos de colisão, é necessário um sopesamento, o caráter principiológico das normas de direito fundamental implica a necessidade de um sopesamento quando elas colidem com princípios antagônicos. Isso significa, por sua vez, que a máxima da proporcionalidade em sentido estrito é deduzível do caráter princípio lógico das normas de direitos fundamentais. (Robert Alexy, 1986, p. 117)

Conclusão
Com as pesquisas realizadas, entendeu-se que as câmeras de monitoramento são instrumentos de segurança, pois seu principal objetivo é o de desencorajar a prática de ilicitudes por meio de uma aparelhagem que induz o indivíduo a agir corretamente, como nos leva a pensar Michel Foucault em sua obra. Em determinados casos as câmeras servem para identificação dos criminosos, no entanto, esta espécie de monitoramento não é apenas um instrumento de segurança, pois estão intrinsecamente ligados ao controle social penal, afinal, o Estado utiliza desse meio para se ter cada vez mais um poder sobre os indivíduos. Não é preciso, portanto, que o Estado recorra necessariamente à força, uma vez que a chamada vigilância hierárquica exerce um poder de disciplina sobre os indivíduos. Com a instalação de tais câmeras, há uma tendência de
diminuição de certas espécies de crime, como os furtos, por isso não se deve colocar total esperança em um só instrumento de segurança, necessitando a sociedade de diversos meios para efetivamente ocorrer uma mudança significativa em tais números. No que se refere à violação da privacidade devido ao uso das câmeras de monitoramento, tem-se um impasse: ainda que tais instrumentos sirvam de instrumento de segurança coletiva, sendo uma forma de o Estado exercer o poder disciplinar sobre a sociedade, diversas pessoas sentem-se vigiadas e prejudicadas quanto a sua privacidade a todo o momento. O que deve então prevalecer? O ideal seria o Estado interferir até certo ponto na vida dos cidadãos, mediante a intervenção mínima do Direito Penal, sem que ferisse a privacidade, mesmo que justificada a sua ação em prol da segurança de uma coletividade, afinal a privacidade é um direito de todos, expresso na Constituição Federal. No sentido de se solucionar o conflito de interesses observados com a utilização das câmeras de monitoramento, deve-se estabelecer uma relação de precedência condicionada entre os princípios presentes no caso concreto, baseada primeiramente na necessidade da aplicação da medida e, posteriormente, na relação de proporcionalidade entre o que se pretende atingir e a medida adequada ao seu alcance. Desta forma haveria um respeito a todos os princípios envolvidos aplicados como como mandamentos de otimização em face das possibilidades fáticas no caso concreto.

REFERÊNCIAS
BIANCHINI, Alice. Controle social e direito penal . [S.l.]: JusBrasil, 2013. Disponível em: <https://professoraalice.jusbrasil.com.br/artigos/121814345/controle-social-e-direito-penal>. Acesso em: 7 abr. 2019.
BRASIL. Constituição (1988). Emenda constitucional no 9, de 9 de novembro de 1995. Lex: legislação federal e marginalia, São Paulo, v. 59, p. 1966, out./dez. 1995.
PUC, Rio. O Estado e o controle social. [S.l.]: Maxwell. Disponível em: <https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/13479/13479_3.PDF> . Acesso em: 15 abr. 2019.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento de uma prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
ZAINOTTE, Rafael. Câmeras de vigilância: um sistema de controle social. [S.l.]: Publica Direito. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=048e2f1447691907>. Acesso em: 10 abr. 2019.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Alemanha: Suhrkamp Verlag,1986.