Supremacia do Estado x supremacia do interesse público e o conflito com os direitos fundamentais processuais na aplicação de multas de trânsito por guarda


Porwilliammoura- Postado em 10 outubro 2012

Autores: 
SILVA, Liliane Coelho da

 

Analisaremos a supressão dos direitos à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal no procedimento/processo administrativo de aplicação de multa de trânsito por guarda.

“Não negueis jamais ao Erário, à Administração, à União, os seus direitos. São tão invioláveis, como quaisquer outros. Mas o direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a Justiça, que o do mais alto dos poderes”

- Rui Barbosa

1. Introdução.

Encontramo-nos em um momento histórico muito importante do ponto de vista jurídico. Após o processo de concreta implementação dos Direitos Fundamentais, que culminou com a publicação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1950, o documento internacional máximo da defesa do ser humano, hoje buscamos efetivar na sociedade essas prerrogativas, em todos os âmbitos. Em algumas situações esse fenômeno (conhecido como “constitucionalização”) é visto com certa reserva, o que parece paradoxal, já que a proteção da dignidade humana e seus consectários são fundamentos da República do Brasil. A preocupação, justa, é que esse processo acabe desnaturando outros institutos jurídicos ao sobrepujá-los completamente. Esse aparente conflito mostra um desafio que precisamos vencer: fazer com que os Direitos Fundamentais coexistam harmonicamente com os princípios e normas de direito que regem nosso ordenamento, sem que nenhum lado perca sua essência. A tarefa é complicada, mas não impossível, e decerto deve contar com a razoabilidade, proporcionalidade e bom-senso da doutrina e magistrados.

No presente artigo, objetivamos discutir brevemente uma face desse conflito: a proteção dos Direitos Fundamentais Processuais do devido processo legal, ampla defesa e contraditório no âmbito do processo/procedimento administrativo de aplicação de multa de trânsito por guarda. Ora, é histórica a tentativa do indivíduo de proteger-se da supressão de seus direitos pelo estado, conflito que poderia ser considerado superado na atual conjuntura de positivação de Direitos Humanos. No entanto, é comum ver o condutor ser processado e instado a pagar a multa sem que lhe tenham sido oferecidos meios hábeis de defesa, face à presunção de legitimidade do ato administrativo. Buscamos, assim, analisar essa situação com fulcro na doutrina e jurisprudência, de modo a verificar o caminho constitucionalmente adequado e propor soluções.

 

2. Considerações iniciais sobre a “supremacia estatal”.

O estado é, talvez, uma das entidades mais complexas que o ser humano concebeu, ainda que se considere a grande extensão do conhecimento e das ciências humanas. É tarefa complicada até mesmo defini-lo, explicar seu sentido e seu conteúdo. Bonavides[1] ensina que, no século XIX, um filósofo chamado Bastiat

(…) se dispôs com a mais sutil ironia a pagar o prêmio de cinquenta mil francos a quem lhe proporcionasse uma definição satisfatória de estado.

Continuava ele aquela atitude pessimista e amarga de Hegel, quando o filósofo máximo do idealismo alemão confessou que entre a natureza e seus mistérios e a sociedade humana e seus problemas, não havia que hesitar quanto ao conhecimento mais fácil da natureza.

De fato, a empresa de definir e até mesmo compreender o estado torna-se agravada pelas constantes evoluções que sofreu ao longo dos séculos, ocupando posições diferenciadas no seio da sociedade, conforme o momento histórico, apesar de ser conhecido, mesmo em formatos rudimentares, desde a Antiguidade. Em cada situação histórica em que pensarmos sempre esteve presente, normalmente com um papel central. A ascensão e queda do Império Romano; as conquistas de Alexandre, o Grande; o Iluminismo; a Revolução Francesa; não há um grande marco sem a presença – protagonista ou antagonista – desse ente. Deveras, não se sabe ao certo em que momento essa figura de mão forte, que influencia profunda e diretamente a vida dos cidadãos sob seu espectro, surgiu. Mas em quase todo momento histórico teve a mesma característica: o poder supremo sobre a sociedade, sobre o cidadão, a autoridade e muitas vezes o autoritarismo. Impossível não lembrar que os principais instrumentos de efetivação de Direitos Humanos surgiram justamente para proteger o cidadão comum da ingerência nociva e excessiva do estado, considerando-se que todo poder pode vir a exacerbar-se, exceder-se. Notadamente, há diversos registros do excesso estatal ao longo da história, identificados através de abusos de todo tipo, torturas, mortes. Entender a evolução dessa figura tão ímpar é importante para verificar que ainda resistem resquícios desse estado autoritário, que, algumas vezes, pode utilizar a “desculpa” da proteção do bem comum e do interesse público para exceder-se, desrespeitando e relativizando direitos.

É nesse sentido que, no presente artigo, grafaremos propositalmente a palavra “estado” com letra minúscula. Recomenda-se nos dicionários e livros a escrita desse vocábulo com letra maiúscula, embora “sociedade”, “indivíduo” e “cidadão” sejam grafados com minúscula. Na esteira do constitucionalismo moderno, cremos que essa diferença deve-se à crença arraigada de que o estado é a figura de poder central, de mão forte e poderosa, capaz de definir o destino dos homens que vivem naquela nação organizada. No entanto, essa acepção não se coaduna mais com a realidade social hodierna, ao menos nos países democráticos. Nestes, o estado deve ser uma das peças que, junto ao cidadão e sob égide da Constituição (essa, sim, maiúscula), contribuem diariamente para a construção de uma sociedade digna e respeitadora dos Direitos Humanos Fundamentais. Dessa forma, fica o registro simbólico e a tentativa de desconstruir alguns costumes persistentes que denotam a reafirmação da submissão do indivíduo à figura estatal, o que devemos evitar, como veremos.

2.1. Histórico e acepções de estado

Segundo Morais[2], referindo-se à origem do estado, “alguns autores situam seu aparecimento com seu contorno atual, nos tempos modernos, apesar de as cidades grega e romana já apresentarem características semelhantes, como nos mostra Fustel de Coulanges em sua obra, A Cidade Antiga”. Além disso, a Pólis grega e a Respublica Romana também já guardavam algumas características do que, futuramente, viríamos a chamar de estado na prática, sobretudo pela adoção da figura do cidadão e pela personificação do poder nas mãos do governante. Como pontua Bonavides[3], “no Império Romano, durante o apogeu da expansão, e mais tarde entre os germânicos invasores, os vocábulos Imperium e Regnum, então de uso corrente, passaram a exprimir a ideia de estado, nomeadamente como organização de domínio e poder”. Assim como Aristóteles desde a antiguidade já chamava os homens de “animais políticos”, verifica-se que a essência desse ente deve ter sido percebida e vivida desde os primeiros clãs humanos, até desenvolver-se e adquirir os contornos atuais. Basta concebermos que, normalmente, uma figura de poder surge na maioria dos agrupamentos humanos, seja na família, seja em uma comunidade. Essa talvez seja uma característica quase imutável de nossas mais variadas sociedades.

Prosseguindo, o homem também conheceu o estado feudal, famoso pelo rei que “existia por direito, mas inexistia de fato”. O poder, nesse caso, era exercido pelos suseranos, proprietários de terra, que determinavam os direitos e o curso da vida na sociedade em que estavam inseridos. Foi uma época em que, particularmente, a imagem estatal teve uma configuração diferenciada em relação à maioria dos períodos da história, já que a ausência do poder central foi marcante, embora sua fragmentação também pudesse ser sentida (e ressentida) pelas pessoas. No entanto, havia cidadãos e um núcleo (ou vários núcleos) em torno do qual uma comunidade continuava a existir, com regramentos e normas. Depois do feudalismo, foi testemunhado o total oposto: o absolutismo, em que a figura do governante (no caso, o rei) era mais forte do que a própria sociedade que ele representava, colocando-se seus interesses acima dos da própria comunidade. Foi nesse período que Luís XIV, o “rei-sol”, afirmou: “O estado sou eu!”. Nessa época, acreditamos, surgiu com contornos mais bem definidos a imagem do estado todo-poderoso, autoritário, violento até, sempre acima do cidadão comum, que seria “apenas uma pecinha” num grande e complexo sistema. Não à toa uns dos primeiros grandes documentos de proteção aos Direitos do homem surgiram a partir dessa época, em uma clara tentativa de neutralizar a ingerência nociva sobre os direitos inatos do ser humano, conforme elenca Silva[4]:

Petição de Direitos de 1628 (documento que, pela primeira vez, mencionava a proteção contra prisão por dívida), o Habeas Corpus Act de 1679 (primeira garantia escrita à liberdade de locomoção, que tornou-se matriz de todas as outras que vieram a ser criadas) e a Declaração de Direitos de 1689 (criada num contexto de guerra e conflitos religiosos, estabeleceu principalmente a liberdade de culto na Inglaterra). Nessa época também foram promulgados outros pactos não menos importantes, como o Corpo de Liberdades de Massachusetts, de 1641, e a Forma de Governo na Pensilvânia, de 1682.

Posteriormente tivemos o avanço do estado liberal, que visava justamente frear o poder sem limites do governante, a fim de dar lugar à proteção de direitos e garantias do cidadão. Aqui a intervenção do estado é mínima ou nula; as decisões e realizações cabem aos cidadãos, que possuem a proteção de seus direitos resguardada através de uma Constituição. No entanto, esse modelo também não foi eficaz e acabou sendo abandonado gradativamente. Houve então a proposição do estado socialista, que jamais chegou a ser implantado de fato, e o advento do estado democrático de direito, este em vigor atualmente na maioria dos países.

Bonavides[5] ressalta que o termo “estado” foi cunhado por Maquiavel em sua famosa obra “O Príncipe” e o vocábulo foi posteriormente consagrado por Jean Bodin na idade moderna e contemporânea. Dessa forma, a obra afirmava que “todos os Estados, todos os domínios que têm tido ou têm império sobre os homens são Estados, e são repúblicas ou principados”. Um parêntese para, mais uma vez, verificar que as primeiras acepções e entendimentos do que seria estado estão relacionadas a uma questão de sobrepujança, de poder e “império” desse ente sobre os homens.

Do ponto de vista filosófico, remontamos a Hegel, que definiu o estado como uma substância ética autoconsciente, a organização social máxima, “que concilia a contradição Família e Sociedade, como instituição acima da qual sobrepaira tão-somente o absoluto, em exteriorizações dialéticas, que abrangem a arte, a religião e a filosofia”, ensina Bonavides[6]. Assim, o estado é a personificação da razão, a unidade da verdade, a união dos espíritos dos indivíduos a ele vinculados. De certa forma, poderíamos inferir que a ideia de Hegel complementa-se à de Hobbes, Rousseau e Locke acerca da construção da sociedade. Os três procuram descrever o que seria o chamado “estado de natureza”, a convivência livre entre os homens, sem regras formais, sem a ingerência de um poder central.

Para Hobbes, isso significaria a anarquia total, porque os homens são naturalmente violentos, e cada um faria todo o possível para manter seus direitos naturais. A instituição do estado, dessa forma, protege-os, gerando a instituição do estado de sociedade (oposto ao de natureza). Já para Locke o estado de natureza não pressupõe a violência, o caos natural. Para ele, nessa situação os homens até poderiam viver em ambiente pacífico. No entanto, conflitos pela propriedade privada poderiam degenerar a paz existente e, dessa forma, conduzir à anarquia. E Rousseau, precursor da Revolução Francesa, defendia que o homem em seu estado natural não possui moralidade (por não precisar distinguir o bem do mal) ou malícia; no entanto, a introdução da propriedade privada, que gerou a sociedade civil, trouxe também a ganância, a desigualdade e a violência, que corromperam-no. A desigualdade é praticamente inevitável, porque aquele que detiver maior número de propriedades e as mais valiosas terá força o suficiente para conduzir a sociedade na direção de seus interesses. Como o estado, na opinião de Rousseau, mostrava-se incapaz de corrigir essa diferença entre ricos e pobres, tornava-se nocivo, permitindo a compra de posições nobiliárquicas e aumentando o vão entre classes sociais.

Socialmente falando, o conceito de estado muitas vezes enfatiza a luta de classes, a oposição de ricos e pobres, ou, como Marx[7] definiu, “o poder organizado de uma classe para opressão de outra”. No mesmo contexto, algumas definições preconizam a institucionalização da força e da violência. No entanto, as acepções sociológicas de estado possuem uma característica comum: falam de um ente juridicamente organizado que depende de um poder legítimo para firmar-se.

Juridicamente, há diversas formas de definir estado, considerando a divisão de poderes, a nação, o próprio poder em si. Dessa forma, temos definições como a de Kant[8], uma das primeiras acepções jurídicas de que se tem registro, afirmando que estado é “a reunião de uma multidão de homens vivendo sob as leis do Direito”. A definição, não obstante seja pioneira, possui muitos críticos, afinal poderia ser aplicada a diversas outras situações; no entanto possui seu valor, já que menciona o uso do Direito Positivo na direção da organização da vida em comunidade.

Para Del Vecchio[9], o estado é “o sujeito da ordem jurídica na qual se realiza a comunidade de vida de um povo” ou “a expressão potestativa da Sociedade”. Acertadamente, o jusfilósofo separou dois conceitos que caminham juntos, mas são distintos, quais sejam, o estado e a sociedade, aquele um ente abstrato que se manifesta potencialmente na concretude da vida social. Outrossim, em uma explicação bastante elucidativa, Costa[10] demonstra que se deve compreender o estado de forma holística, uma vez que ele é uma conjuntura de diversos fenômenos, face aos mais variados movimentos e desdobramentos da sociedade em si mesma:

(...) se for levado em consideração o fato de que o Estado se originou naturalmente, grosso modo, em decorrência das necessidades humanas em um plano coletivo, e voltando-se para regular a dinâmica social que o criou – por intermédio do Direito Positivo – conclui-se que o Estado tem como propósito maior tutelar e gerenciar o bem comum. E para fazê-lo, recebe, por meio da mesma dinâmica social humana, um “Poder”. (…)

Todavia, a atuação do Estado só se fará executar (e valer) por meio de órgãos institucionalizados e supremos. Tais órgãos é que, de fato, concretizam a existência do poder estatal.

Assim, a noção que envolve o Poder passa, obrigatoriamente, pela ideia de organização do conjunto de órgãos públicos – e seus respectivos mecanismos de atuação – que, por um vínculo jurídico-institucional e político-administrativo, se relacionam, entre si e com a sociedade, em razão do bem público comum.

Vale destacar, entretanto, que o conceito acerca do Poder traspassa o que foi colocado acima. Afinal, há de compreender-se que ele é, acima de tudo, o grande elemento mantenedor da coesão dos demais elementos constitutivos do Estado, como território e povo.

Perante tamanha envergadura conceitual-existencial, o Poder não deve ser visto tão somente como um fenômeno político, administrativo e jurídico, mas, também, social, cultural e ideológico, se desdobrando, assim, em múltiplas facetas, todas permanecendo, no entanto, ferreamente conectadas, formando um único ente.

Não há, dessarte, como afirmar que qualquer dessas acepções está incorreta. O estado é um todo tão complexo que realmente é difícil defini-lo. Mas é importante perceber que, em todas elas, há o traço marcante e a presença da força, do poder ou mesmo da violência. Por isso é necessário ter um certo cuidado. O poder é inerente a essa figura; a questão é o modo como é exercido. Gera-se, assim, um questionamento filosófico sobre o lugar do homem e, consequentemente, do estado, no mundo: se este é feito de/ por/ para homens, porque estaria acima dos mesmos? Ele teria uma definição como a de um deus, que está acima de todas as coisas, devendo os cidadãos submeterem-se incondicionalmente? Acepções mais antigas normalmente passam essa ideia, ainda que tacitamente. Mesmo atualmente é difícil em algumas situações diferenciar ou compreender a posição e significado do estado (sempre referindo-nos a nações democráticas): sua atuação em nome da da sociedade, o que lhe confere normalmente uma postura superior, muitas vezes é confundida com “supremacia” ou “proeminência”, vocábulos que remetem a hierarquia, o que é incorreto, como já afirmamos. Não é o estado que está acima do cidadão, mas os interesses públicos e sociais que aquele representa, como uma espécie de procurador exercendo um mandato, arriscamos dizer.

Obviamente é impossível desvincular estado da ideia de poder, já que sem os instrumentos de coerção de que dispõe, desde à cobrança de tributos até à determinação da prisão de alguém, o mesmo não poderia, ao menos na sociedade atual como a conhecemos, exercer a tarefa de coligir interesses públicos e concretizá-los. Não buscamos questionar o poder estatal, gize-se, pois o mesmo é um importante meio de coesão social, mas o uso do mesmo quando travestido de autoritarismo. É justamente essa força desigual que os cidadãos, desde sempre, vêm tentando equilibrar com a proteção de seus direitos inatos. Hoje, ao menos nos países democráticos, há meios contundentes para  proteger os homens da força impositiva do estado, no que se refere ao malferimento de Direitos Fundamentais. No entanto, sabemos que ainda estamos um pouco distantes do momento em que, de fato, esses meios legais não precisarão ser invocados para que o cidadão sinta-se protegido e livre na sociedade onde está inserido.

Nesse sentido faremos no presente artigo uma breve análise sobre a supressão dos direitos à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal no procedimento/processo administrativo de aplicação de multa de trânsito por guarda, pelo qual muitas pessoas já passaram, mas do qual é quase impossível defender-se. Ressalta-se que serão consideradas na análise situações em que figuram apenas o guarda de trânsito e o motorista e nenhuma outra prova. “Pardais”, radares e outros meios comprobatórios costumam oferecer bons instrumentos para acusação e defesa; mas no confronto entre a palavra do guarda e a do condutor a daquele sempre prevalecerá, mesmo sem subsídios. E este jamais poderá defender-se, nem no processo administrativo, nem no judicial, pois, em geral, não lhe é facultado produzir provas.




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