Sobre o neoconstitucionalismo e a teoria dos princípios constitucionais


Porwilliammoura- Postado em 24 outubro 2012

Autores: 
CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva

 

No neoconstitucionalismo, a teoria dos princípios constitucionais alcança especial relevância para o discurso jurídico contemporâneo, a ser acompanhada de uma sólida teoria da argumentação jurídica, capaz de assegurar critérios de racionalidade na aplicação daquele sistema aberto.

Resumo: O estudo aborda os contornos do neoconstitucionalismo, modelo teórico que propõe a superação do conjunto de teorias que marcam o positivismo jurídico, a partir da consolidação de um modelo fundado na prevalência da Constituição, na estreita relação entre o discurso jurídico e a argumentação moral, tudo informado pela firme defesa da força normativa dos princípios constitucionais. No neoconstitucionalismo, a teoria dos princípios constitucionais alcança especial relevância para o discurso jurídico contemporâneo, a ser acompanhada de uma sólida teoria da argumentação jurídica, capaz de assegurar critérios de racionalidade na aplicação daquele sistema aberto de princípios constitucionais, essencial fator de legitimação e justificação das decisões (discurso judicial). Estas são algumas das discussões inseridas no presente estudo. Por fim, conclui-se defendendo a relevância da temática abordada, inclusive para a consolidação de uma cultura de defesa da Constituição.

Palavras-chave: Neoconstitucionalismo. Pós-positivismo jurídico. Princípios constitucionais. Argumentação jurídica.


1. INTRODUÇÃO

A moderna noção de constitucionalismo vem sendo marcada, preponderantemente, pelo movimento de positivação em âmbito constitucional dos princípios gerais de Direito, sobretudo a partir com o advento do chamado Estado social de direito. Esse movimento migratório dos princípios jurídicos para as constituições, tanto pela assunção de princípios reconhecidos pela legislação infraconstitucional, como pela incorporação de princípios constitutivos do Direito Internacional, constitui-se em traço distintivo dos modelos constitucionais contemporâneos, a exemplo do que ocorre com a Constituição brasileira de 1988.

A força jurídica vinculante das constituições contemporâneas passa, de forma destacada, pela idéia de normatividade dos princípios constitucionais. Não se pode mais entender as normas constitucionais como simples ideários, expressões de anseios, aspirações de uma dada Sociedade. A força normativa da Constituição é condição inarredável à própria conservação do ordenamento jurídico[1].

O movimento de constitucionalização dos princípios jurídicos coincide com a defesa doutrinária da força normativa e vinculatividade dos princípios, em contraposição às idéias positivistas que dominaram, hegemonicamente, o discurso jurídico até a primeira metade do século XX. O uso dos princípios como fonte normativa subsidiária, conforme defendido pelo positivismo jurídico, já não encontra mais guarida na teoria constitucional contemporânea. Essa é a pauta que informa o chamado pós-positivismo jurídico.


2. O NEOCONSTITUCIONALISMO E A CONSOLIDAÇÃO DO PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO

A questão da normatividade dos princípios jurídicos guarda profunda relação com a superação do Estado liberal de direito, pautado pela lógica do positivismo jurídico, e a consolidação do “neoconstitucionalismo”, como expressão do modelo conhecido como “pós-positivismo jurídico”.

A expressão “neoconstitucionalismo” será aqui empregada com relação de sinonímia ao pós-positivismo jurídico, para caracterizar um modelo teórico que vem ganhando expressão e lastro na cultura jurídica a partir da segunda metade do século XX, baseado na superação das idéias que marcam o positivismo jurídico, principalmente no que concerne à relação de tensão entre Direito e moral[2].

Não se pode desvincular as mudanças teóricas que respaldaram a passagem do positivismo jurídico para o pós-positivismo ou neoconstitucionalismo, das profundas mudanças sociais e econômicas do final do século XIX e do século XX. O positivismo jurídico, aqui entendido como aquela teoria jurídica que encara o direito positivo como o único objeto da “ciência jurídica” e que não admite conexão entre o Direito, a moral e a política, servia a um modelo de sociedade, o modelo liberal-individualista. Em uma sociedade marcada pela homogeneidade política e igualdade formal jurídica, o sistema normativo que melhor garante a propriedade e a liberdade de mercado é, por certo, o sistema de regras.

Com a mudança no cenário social, a consolidação dos movimentos de classe, o fortalecimento de novos atores sociais, o pluralismo político e jurídico, a heterogeneidade política da sociedade, evidencia-se a necessidade de repensar as bases teóricas do Direito. Neste sentido, fala-se em pós-positivismo, aqui entendido como a teoria contemporânea que procura enfrentar os problemas da indeterminação do Direito e sustenta a situação de estreita relação entre Direito, moral e política[3].

No Estado liberal ou “Estado de direito legislativo”, como se refere Gustavo ZAGREBELSKI, o legislador figura como o “senhor do direito”, sendo visível uma total confusão entre lei e Direito. O Direito é o que está na lei e a justiça é o que a lei determina. Assim, o conceito de justiça importa à ordem moral e não à ordem jurídica (ZAGREBELSKI, 1995, p. 21-23). A jurisdição é pautada pela previsibilidade e segurança de um sistema fechado de regras jurídicas, que garante a propriedade privada e a liberdade de mercado para uma sociedade politicamente homogênea, típica do liberalismo clássico[4].

O modelo liberal de Estado de direito, muito embora garanta aos indivíduos um considerável nível de segurança jurídica (sistema de regras jurídicas), padece de um insuprimível déficit de legitimidade, resultado de seu sensível afastamento das preocupações com os postulados da justiça material e da igualdade substancial. A postura teórica de relegar as preocupações com os ideais de justiça e igualdade para a ordem moral, típica do positivismo jurídico, acaba por distanciar o Direito de uma de suas funções primordiais: a consecução da justiça.

De forma diversa, o neoconstitucionalismo caracteriza-se pela prevalência da Constituição. O dogma da sujeição à lei é substituído pela máxima da sujeição à Constituição, enquanto sistema normativo aberto constituído por regras e princípios voltados à consecução da justiça material. A figura do legislador como “senhor do direito”, traço característico do Estado liberal, é superada pelo agigantamento da importância dos juízes, não como novos “senhores do direito”, situação incompatível com a própria idéia contemporânea de constitucionalismo, mas enquanto importantes atores no processo de efetivação e concretização dos direitos fundamentais (ZAGREBELSKI, 1995, p. 150-53).

Nada obstante, não se pode olvidar que o neoconstitucionalismo não deve ser encarado como uma proposta acabada de teoria do direito, com pretensões de sistematicidade e adequação. Na verdade, sob o rótulo ainda em construção do neoconstitucionalismo, reúnem-se diversas doutrinas de teoria constitucional, por vezes até entre si contraditórias. Umas mais radicais e inconciliáveis até com os mais abertos modelos de “positivismo jurídico crítico”[5], outras, porém, em certa medida conciliáveis com esses últimos. Por outro lado, em maior ou menor amplitude, todas essas doutrinas estão voltadas à consolidação de uma sólida teoria da supremacia da Constituição, da defesa da força normativa dos princípios constitucionais, da eficácia dos direitos fundamentais, da interpretação conforme a Constituição e do reconhecimento do Judiciário como instância de concretização dos direitos fundamentais[6].

Nessa marcha histórico-evolutiva do pensamento jurídico-político, atualmente os princípios constitucionais constituem-se em normas que fundamentam e sustentam o sistema, as pautas supremas e basilares do ordenamento jurídico de uma dada sociedade. Não são meros programas ou linhas sugestivas às ações do Poder Público ou dos cidadãos, mas sim as vinculam e direcionam, porquanto dotados de eficácia jurídica vinculante.

Os princípios constitucionais funcionam como verdadeiros veículos de justiciabilidade do Direito, na medida em que fomentam o cultivo do sistema jurídico pelas fecundas sementes do discurso prático, da argumentação moral, reinserindo no centro do Direito as preocupações com a satisfação da justiça material. É pela via dos princípios jurídicos que as pautas morais informadoras do discurso prático invadem o ordenamento jurídico, vinculando o Direito a uma inafastável e indubitável preocupação com a justiça material, um fator de considerável mitigação daquele insuprimível déficit de legitimidade, marca indelével do Estado liberal de direito pautado pelo positivismo jurídico.


3. O CONCEITO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E A DISTINÇÃO ESTRUTURAL ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS JURÍDICOS

O conceito de princípios constitucionais passa pela noção de sistema jurídico[7], que se constitui no pilar estruturante da metodologia jurídica contemporânea, servindo de sustentáculo e base conformadora ao neoconstitucionalismo. Sistema jurídico, entendido como um conjunto de regras e princípios jurídicos que orientam determinado espaço territorial, em um dado momento histórico.

A consolidação do neoconstitucionalismo possibilitou a sedimentação da teoria da normatividade dos princípios jurídicos. Sob as bases do neoconstitucionalismo, aqueles princípios gerais de Direito, destituídos de força normativa tanto no jusnaturalismo como no positivismo jurídico, correspondem aos princípios constitucionais, espécies normativas dotadas de substancialidade e aplicabilidade. A idéia de princípios constitucionais está intimamente ligada à noção de fundamento, base, pressuposto teórico que orienta e confere coerência a todo o arcabouço lógico e teleológico do sistema jurídico constitucional.

Os princípios constitucionais são normas que sustentam todo o ordenamento jurídico, tendo por função principal conferir racionalidade sistêmica e integralidade ao ordenamento constitucional. Podem ser expressos mediante enunciados normativos ou figurar implicitamente no texto constitucional. Constituem-se em orientações e mandamentos de natureza informadora da racionalidade do ordenamento e capazes de evidenciar a ordem jurídico-constitucional vigente. Não servem apenas de esteio estruturante e organizador da Constituição, representando normas constitucionais de eficácia vinculante na proteção e garantia dos direitos fundamentais[8].

A análise dos princípios jurídicos pode ser conduzida tanto sob o prisma funcional como o estrutural[9]. O debate acerca das funções dos princípios constitucionais será empreendido mais adiante, restando por hora o enfrentamento da temática referente à pretensa diferenciação estrutural ou morfológica das normas jurídicas em regras e princípios.

Essa concepção estrutural dos princípios constitucionais e a conformação das regras e princípios enquanto espécies normativas distintas, segundo Robert ALEXY, constitui “o marco de uma teoria normativo-material dos direitos fundamentais e, com isso, um ponto de partida para responder à pergunta acerca da possibilidade e dos limites da racionalidade no âmbito dos direitos fundamentais” (ALEXY, 1993, p. 81-82).

A distinção das normas em regra e princípios jurídicos pode ser encarada como um dos pilares essenciais do edifício da teoria dos direitos fundamentais. No mesmo sentido, a consolidação da idéia de normatividade dos princípios jurídicos se converte em elemento significativo para uma segura e salutar transposição da teoria formal-positivista, avançando-se para o estabelecimento de uma teoria material da Constituição e dos princípios constitucionais. Resta oportuno examinar se a mencionada distinção forte ou lógica entre regras e princípios jurídicos vem sustentada por uma adequada teoria justificadora.

Sustenta ALEXY que regras e princípios são normas jurídicas, porquanto ambos se formulam com a ajuda das expressões deônticas fundamentais, como o mandamento, a permissão e a proibição. Assim, as regras e os princípios jurídicos são espécies de normas que se constituem em fundamentos para juízos concretos de “dever ser” (ALEXY, 1993, p. 83).

Um primeiro traço característico que pode ser tomado em conta na distinção entre regras e princípios jurídicos é a característica da fundamentalidade. Por este critério, os princípios são qualificados como as normas fundamentais do sistema jurídico, o fundamento jurídico-político de todo o ordenamento. Os princípios constituem-se nas decisões básicas e nucleares informadoras de todo o sistema, inspirando e dotando de unidade e adequação valorativa o ordenamento jurídico.

Muito embora a fundamentalidade se constitua em traço que inegavelmente sustenta certa distinção entre regras e princípios jurídicos, Luis PRIETO SANCHÍS afasta sua utilidade como critério distintivo, sob o argumento de que as disposições fundamentais podem adotar qualquer estrutura e não, necessariamente, a forma de princípios jurídicos. Ademais, os princípios não são obrigatoriamente veiculados por meio das fontes superiores ou constitucionais, podendo até assumir um caráter implícito. Não se quer, contudo, afastar a idéia de fundamentalidade dos princípios jurídicos, apenas reconhecer sua debilidade como traço distintivo com relação às regras jurídicas (PRIETO SANCHÍS, 1992, p. 58-59).

Os critérios de distinção entre regras e princípios são consideravelmente numerosos, cabendo grande ênfase ao “critério de generalidade”, que defende os princípios como normas de um grau de abstração relativamente alto, enquanto as regras ostentam um nível de abstração relativamente baixo[10].

Há que se distinguir, primeiramente, os conceitos de generalidade e universalidade das normas jurídicas. A universalidade de uma norma não depende de sua maior ou menor generalidade, exigindo apenas que a norma seja direcionada a todos os indivíduos de uma classe aberta. Neste sentido, a idéia de universalidade se opõe à individualidade, enquanto o conceito de generalidade resta oponível à noção de especialidade. Uma norma jurídica é sempre ou bem universal ou individual, ao passo que sua generalidade ou especialidade se configura em uma questão de grau (ALEXY, 1993, p. 83-84).

A partir de uma caracterização linguística, procura-se estabelecer os traços distintivos de generalidade e vagueza dos princípios frente às regras jurídicas. Não se pode olvidar que estes traços distintivos se constituem em “propriedades graduais que não permitem definir categorias fechadas, mas tão-somente ordenar os diversos produtos normativos em uma ampla escala de generalidade e vagueza” (PRIETO SANCHÍS, 1992, p. 60).

O atributo da generalidade pode tanto estar vinculado ao número de sujeitos submetidos a determinado enunciado normativo como ao número de situações ligadas a certa consequência jurídica. Desta forma, a generalidade não se apresenta como um eficaz critério distintivo entre princípios e regras jurídicas, porquanto as regras também podem ser aplicadas a um número indeterminado de sujeitos e atos ou fatos jurídicos.

Não se pode negar, por outro lado, que embora as regras possam ser estabelecidas para um número indeterminado de atos ou fatos jurídicos, vinculando a ação de uma universalidade de sujeitos, são marcadas pelo traço da especialidade, no sentido de que não regulam senão aquelas situações jurídicas determinadas. Em contrapartida, os princípios são gerais na medida em que admitem um leque infinito de aplicações.

A questão referente à vagueza da linguagem normativa representa o que se pode chamar de “insuprimível margem de indeterminação semântica”. Esta margem de indeterminação semântica “tanto pode afetar a extensão do enunciado, isto é, os objetos compreendidos dentro do mesmo (denotação) como a sua intensidade ou propriedades caracterizadoras de tais objetos (conotação)” (PRIETO SANCHÍS, 1992, p. 61).

A vagueza das normas jurídicas surge quando não se pode precisar se determinado caso concreto está ou não regulado pela disposição normativa, dada a abertura[11] e indeterminação semântica do suposto abstrato previsto na norma. Ocorre que os atributos de abertura e indeterminação semântica, embora comuns aos princípios jurídicos, também podem ocorrer nas regras jurídicas, o que afasta o critério linguístico como traço distintivo decisivo entre regras e princípios jurídicos, forçando admitir que os critérios tradicionais não conseguem respaldar uma diferenciação estrutural forte entre regras e princípios jurídicos.

Embora não se tenha, até o presente momento, alcançado parâmetros irrefutáveis sob os quais seja possível respaldar uma distinção estrutural forte entre regras e princípios jurídicos, mostra-se em tudo oportuno aprofundar a análise do pensamento jurídico de dois dos mais importantes e influentes autores contemporâneos que se ocuparam da presente temática.




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