Sobre juízes e jukeboxes - um artigo sobre sistemas de informação para sentenciar


PorLahis Kurtz- Postado em 06 junho 2016

“Computadores estão se tornando, cada vez mais, parte do mobiliário das cortes modernas”.

 

Foi assim que David Tait, professor e pesquisador de criminologia australiano, abriu seu texto “Judges and jukeboxes: sentencing information systems in the court room”, escrito em 1998. Da perspectiva brasileira, a frase poderia ter sido escrita ontem. Já há muito tempo discutimos o assunto, mas a transformação da realidade não é uniforme – a própria realidade tem muitos pontos de partida diferentes.

 

Buscando material sobre uso de tecnologias da informação e comunicação (TIC) no poder judiciário, encontrei esse artigo. Fiquei curiosa pela premissa: o autor defende o uso de sistemas de informação para a sentença penal condenatória (quando o juiz impõe pena a um réu culpado), indo contra críticas de que o uso de TIC transformaria o judiciário em uma jukebox, no sentido de limitá-lo a reprodução autômata das mesmas decisões em detrimento da “justiça”.

 

 

 

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Tait defende que o uso de TIC nesse tipo de atividade pode ser visto sob diferentes narrativas, não somente a de consistência de abordagem e aplicação de pesos na dosimetria. E o mais interessante é sua fonte argumentativa: literatura do ciberespaço.

 

Leitores ganham controle sobre a informação acessada, o uso de hiperlinks lhes dá liberdade para dar ordem ao material como quiserem, resgata Tait a partir de uma obra de Landow sobre o hipertexto.

 

E Tait conclui: conexões podem ser estabelecidas onde não haviam sido visualizadas pelo autor. Em outra perspectiva, traz o ponto de vista de Janet Murray, que sugere que cibertecnologias são formas aprimoradas de busca, compostas por conteúdos análogos a listas telefônicas, museus, seminários… Ou seja, cibertecnologias promovem formas não-lineares de resgate de informação.

 

 

 

 

 

 

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Com esse argumento, Tait constrói sua metáfora dos computadores nas salas de julgamento como jukeboxes:

“Uma jukebox é uma máquina com número limitado de músicas. Fornece acesso da massa aos últimos lançamentos. Onde você for, terá mais ou menos a mesma gama de músicas, ainda que as opções mudem com a moda. A jukebox pode mesmo ser uma mania. Algumas de suas músicas dão prazer considerável aos ouvintes, que querem cantar junto. Mas é difícil sair de perto delas. E a jukebox é limitada às opções mais populares, não necessariamente a música que está tocando na sua cabeça.

[...]

A imagem de uma jukebox aponta para uma forma passiva de hedonismo e uma limitação de escolha. É somente uma das metáforas possíveis que ajudam a pensar sobre computadores em tribunais, mas abre uma miríade de questões que merecem ser exploradas.[tradução livre]” (TAIT, 1998, p. 170-171)

Discute-se as tendências a uniformizar penas, ligadas a critérios de “justiça”. Tait traz à tona que valores pessoais e características do réu podem influenciar um julgamento. Também retoma o argumento, ligado à ideia de justiça, que casos semelhantes devem ter penas semelhantes, e que fatores alheios aos fatos do crime devem ser excluídos. Frameworks que permitam aos juízes listar suas razões podem ajudar nesse processo de aumento de consistência, bem como identificar desigualdades associadas a classe, gênero e raça nas sentenças.

 

Mas a ideia de sentença como uma mistura de ingredientes (modelo legal-analítico) é contraposta ao modelo holístico. A relação entre esses elementos deve ser considerada, mas não só isso: o juiz constrói um esquema conceitual ao sentenciar, usando como unidade básica o caso – narrativas para os tipos de infração. Tait trabalha com a ideia de que os juízes usam narrativas para justificar suas decisões, e a partir daí discute o que ocorre quando eles ganham um assistente tecnológico para escolher essas narrativas.

 

Quais os enfoques no momento de sentenciar um culpado? A pena pode ser analisada em seu impacto social, em vez de seu impacto na vida do réu? Quais narrativas ficam marginalizadas? Há mitos sendo importados para as sentenças judiciais? Quais os limites da pretensa “objetividade” de sistemas informacionais na escolha e na gama a ser escolhida de narrativas? Alternativas à pena estão incluídas nesses sistemas? E a alternativa de não punir? São algumas das questões abordadas pelo artigo.

 

Ter um registro mais preciso da forma de racionalizar as decisões penais torna possível, segundo Tait, debater publicamente a natureza e o propósito de punições com enfoque além do “justo merecimento”, para explorar de maneira mais informada a demanda por uma sociedade justa. Recomendo a leitura!

Realmente, muito interessante e provocativo o assunto que ele trabalha.

Se for parar para pensar, com a reforma do Código de Processo Civil e a coercitibilidade de aplicação de decisões no mesmo teor dos julgamentos de recursos repetitivos, é algo que parece caminhar nesse norte. Não parei para analisar o projeto de reforma do CPP, mas é provável que caminhe também para isso.

O grande problema ainda é a subjetividade da mão do juiz, na hora de sentenciar. E isso chamo de problema porque o ser humano que está ali não se dissocia de seus valores morais, de seus preconceitos e de sua carga trazida pela classe social que vem (dificilmente de origem humilde). E isso significa penas mais longas do que a lei necessariamente aplicaria caso o sujeito já tenha cometido um erro e/ou seja de origem humilde.

Claro que hoje já utilizam tecnologias para o calculo de benefícios na execução penal, como a progressão de regime e o livramento condicional, mas do ponto de vista de aplicação automática de pena de acordo com parâmetros legais é realmente algo bastante utópico ainda, dada a brecha (para mais ou para menos) que a lei permite ao magistrado aplicar.