"Sistemas de controle de constitucionalidade"


PorLucimara- Postado em 23 maio 2013

Autores: 
Braga, Alice Serpa

 

Analisam-se os sistemas mais tradicionais de controle de constitucionalidade, revisitando a história na Grécia antiga, Inglaterra, Estados Unidos, Áustria, Alemanha, Itália e França.

1. INTRODUÇÃO

O controle de constitucionalidade, como teoria e experiência prática, foi construído ao longo de séculos de história[1]. Remonta à antiguidade clássica o primeiro sinal da adoção da ideia de uma lei superior e, em consequência, da necessidade de compatibilização com ela das demais normas. Foi na sociedade ateniense que se distinguiram os nómoi e o pséfisma. As primeiras normas dispunham da organização do Estado e sua modificação somente poderia efetuar-se com obediência de um procedimento diferenciado. Os pséfisma, por sua vez, deveriam conformar-se, formal e materialmente com os nómoi, sendo o descompasso das duas normas resolvida com vistas à superioridade destes, não estando os juízes obrigados a julgar segundo os pséfisma quando estivessem em contradição com as normas superiores[2].

Posteriormente, na Idade Média, o conceito de Justiça, traduzida no Direito Natural, ganhou status de lei superior, da qual as demais normas deveriam sorver inspiração[3]. Serviu, pois, o Direito Natural de parâmetro para análise da validade de outras leis materiais.

Na Inglaterra, na primeira metade do século XVII, predominou o escólio de Sir Edward Coke, para quem era superior a Common Law em face do Rei e do Parlamento[4]. Os juízes estavam, portanto, incumbidos de afastar a aplicação das leis votadas pelo Parlamento que fossem contrárias à Common Law. Essa experiência de incipiente jurisdição constitucional foi abandonada com a Revolução Gloriosa, que afirmou a supremacia do Parlamento[5].


2. Sistema difuso do controle de constitucionalidade

Passadas as experiências suprarrelatadas, a Constituição norte-americana consagrou a supremacia da constituição, dando azo à possibilidade do controle de constitucionalidade[6], nos seguintes termos:

Esta Constituição, as leis dos Estados Unidos em sua execução e os tratados celebrados ou que houverem de ser celebrados em nome dos Estados Unidos constituirão o direito supremo do país. Os juízes de todos os Estados dever-lhe-ão obediência, ainda que a Constituição ou as leis de algum Estado disponham em contrário[7].

A ideia de Constituição vinculava-se à limitação do legislados para proteger o povo da voracidade do Poder Público. A Constituição norte-americana estabeleceu, nesse contexto, que o órgão legislativo não poderia transpor os limites preconizados na Lei Maior, devendo-se afastar aquelas normas contrárias à Constituição. Coube, no texto constitucional, ao Poder Judiciário a guarda da Constituição. Apesar de a consagração do controle de constitucionalidade ter-se dado com o texto da Carta Magna, o tema já fora discutido nos textos federalistas, durante a Convenção da Filadélfia[8], em 1787, os quais decerto inspiraram a decisão proferida pelo Chief Justice John Marshall no célebre caso Madson v. Marbury (1803), em torno do qual se construiu o sistema da judicial review.

No aclamado julgamento, a Corte Suprema aplica a supremacia constitucional e considera a competência dos juízes para afastar a incidência de Lei em contradição com a Constituição nos casos concretos submetidos à sua apreciação[9]. A situação fática que envolveu a situação foi deveras propícia para a aplicação da tese do controle de constitucionalidade, acatada até mesmo pelo Poder Executivo, por ser-lhe favorável. Não obstante ter a judicial review ter-se firmado com a decisão vergastada, a teoria não estava de todo consolidada, tendo enfrentado alguns percalços até a consagração do sistema e a conseqüente proliferação para ordenamentos jurídicos e construções jurisprudenciais de outros Estados.

A tese desenvolvida preceituava a competência de todos os órgãos do Poder Judiciário de analisar a constitucionalidade das leis de um modo meramente incidental, ou seja, veiculada no bojo de uma lide concreta e real, como questão prejudicial a ser enfrentada para o deslinde da controvérsia. À Corte não era atribuída um poder de revisão da obra legislativa, mas tão somente de apreciar a validade de uma lei suscitada por uma das partes como fundamento, causa de pedir, do objeto principal da lide[10].

A característica fundamental do sistema de controle que haure sua origem da Constituição e da construção jurisprudencial da Corte Suprema daquele país é a competência atribuída a todos os órgãos do Poder Judiciário (controle difuso) de analisar controvérsia constitucional que se apresenta como questão prejudicial, antecedente lógico e necessário, para o deslinde de uma controvérsia real e concreta submetida a seu julgamento[11].

Inobstante estarem todos os juízes imbuídos da competência de avaliar a constitucionalidade das leis, a Suprema Corte desempenha uma função hegemônica no sistema do judicial review[12]. A ela cabe, em decorrência do stare decisis, da “força dos precedentes”, que atribui eficácia vinculante às suas decisões, a última e definitiva palavra acerca da (in)compatibilidade constitucional das normas. As questões definidas pela Suprema Corte ganham, assim, efeito erga omnes, garantindo a funcionalidade do sistema difuso-incidental, pacificando as discussões e evitando a instauração da insegurança jurídica que adviria de decisões divergentes[13].

O efeito que advém das decisões proferidas em sede de controle incidental é, ab initio, inter partes, atingindo somente aqueles envolvidos na lide. Reveste-se, contudo, do efeito erga omnes somente com a prolação de decisão da Suprema Corte, em face do stare decisis. A teoria desenvolvida naquele país anglo-saxão pautou-se na invalidade das leis inconstitucionais, que já estariam maculadas com o vício da inconstitucionalidade, sendo a decisão judicial meramente declaratória, atestando uma situação existente desde o nascimento da norma. Nesses termos, a decisão gera efeitos ex tunc[14].

Muitos países incorporaram o sistema norte-americano nos seus ordenamentos jurídicos. No entanto, enfrentaram o problema da proliferação de decisões divergentes, já que neles não prevalecia o stare decisis. A análise da constitucionalidade da norma, por estar jungida ao caso concreto, atingia somente as partes envolvidas na lide concreta submetida a julgamento do Poder Judiciário.


3. O sistema austríaco de controle de constitucionalidade

A jurisdição constitucional, mesmo com o desenvolvimento do sistema de controle difuso na América do Norte, não foi recepcionada nos países europeus até os albores do século XX, com a obra intelectual do austríaco Hans Kelsen que desenvolveu um sistema diferenciado daquele pensado no Mundo Novo. O modelo austríaco fundava-se na competência exclusiva das Cortes Constitucionais para a avaliação da concordância das normas com o texto constitucional. A ideia de Kelsen foi revelada num projeto apresentado para a elaboração da Constituição austríaca e se espraiou pelo continente europeu, tendo influência, posteriormente, para países de outros continentes[15].

O controle de constitucionalidade preceituado por Kelsen fundava-se no ajuizamento de ações diretas, cujo objeto principal era o deslinde da controvérsia constitucional, declarando-se em tese, em abstrato, a conformidade ou desconformidade das normas com a Constituição. Assim, a constitucionalidade das normas não era veiculada de forma incidental, como causa de pedir de um caso concreto submetido a julgamento de qualquer órgão do Poder Judiciário, e sim como pedido imediato[16].

A outra característica do sistema sub occuli é que o controle de constitucionalidade passou a ser monopólio de um determinado órgão de cúpula do Poder Judiciário (no caso da Áustria, do Verfassungsgerichtshof), esvaziando-se a competência dos demais órgãos para exercer a jurisdição constitucional[17]. O Tribunal Constitucional exerceria uma atividade diversa daquela do Poder Judiciário, porque não julgaria pretensões concretas, assemelhando-se à tarefa legislativa, configurando um legislador negativo.

Em síntese, o sistema que tem origem na teoria de Hans Kelsen é concentrado subjetivamente, tendo em vista que a competência é atribuída a um específico órgão, e abstrato, já que a análise da compatibilidade constitucional constitui objeto principal do processo. Para ajuizar a ação especial, que veiculava o pedido também especial, ademais, havia poucos legitimados, órgãos políticos.

Como as decisões tomadas sem vinculação a um caso concreto e por um órgão de cúpula, são dotadas de efeito erga omnes. Desta feita, o desenvolvimento da teoria supriu uma dificuldade da aplicação do sistema norte-americano nos países em que não se adotava o sistema da Common Law e, consequentemente, o stare decisis e se viam às voltas com decisões divergentes e conflitos entre os órgãos judiciários que não contribuíam para fortalecer a normatividade constitucional e a segurança jurídica[18].

No projeto de Kelsen, as normas revestiam-se da presunção de constitucionalidade, somente ilidida pela declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal competente. Desta feita, o vício de que se revestia a norma era de mera anulabilidade, gerando a declaração efeitos meramente ex nunc, com a possibilidade de que o Tribunal postergasse a eficácia de sua decisão com vistas ao interesse público[19].

No incremento da teoria kelseniana, com a revisão da Constituição austríaca em 1929, foi expandida a competência para suscitar o controle de constitucionalidade para abranger dois outros tribunais superiores integrantes do Poder Judiciário (Oberster Gerichtshof e Verwaltungsgerichtshof)[20], os quais deveriam levar ao Tribunal Constitucional a questão da análise da constitucionalidade de leis imprescindíveis para o deslinde do caso concreto submetido a seu julgamento. Nessa esteira, o controle era suscitado de forma incidental, e desmembrava-se o julgamento do processo, submetendo-se a questão constitucional ao Tribunal Constitucional e suspendendo-se o julgamento do caso real na instância originária. Assim, solucionou-se, ao menos em parte, a intangibilidade de algumas leis que, considerando apenas o controle por via principal, não seriam objeto do controle de constitucionalidade pelo órgão competente[21]. Ademais, com a reforma constitucional de 1929, nos casos levados ao Verfassungsgerichtshof austríaco por via incidental, passou-se a admitir que a lei declarada inconstitucional não seja aplicada aos fatos ocorridos anteriormente à decisão, operando efeito ex tunc nos casos reais que ensejaram a suscitação do controle de constitucionalidade.

O modelo do jurista austríaco espraiou-se pelo continente europeu, cujos países cuidaram de aperfeiçoar o sistema ou introduzir neles algumas modificações. As Constituições da Itália (1948) e da Alemanha (1949), por exemplo, estenderam a competência para suscitar o controle incidental, nos moldes da reforma austríaca de 1929, para todos os órgãos do Poder Judiciário, evitando, desta feita, que juízes e tribunais inferiores fossem constrangidos a aplicar uma lei, ainda que entendessem ser ela inconstitucional. Com a solução encontrada pelos países citados, os órgão de qualquer jurisdição podem, então, submeter a questão constitucional à decisão final do Tribunal Constitucional[22]. Vê-se que a consagração do controle de constitucionalidade no continente europeu realizou de forma diferenciada e tardia em relação ao ocorrido no país norte-americano. Nas palavras de Alexandre de Moraes:

No entanto, a consagração efetiva da necessidade de sujeição da vontade parlamentar Às normas constitucionais, com a conseqüente criação dos Tribunais Constitucionais europeus, ocorreu após a constatação de verdadeira crise na democracia representativa e do conseqüente distanciamento entre a vontade popular e as emanações dos órgãos legislativos, duramente sentida durante o período nazista[23].

O sistema desenvolvido no país dos Habsburgos logrou mesclar elementos próprios (controle concentrado e principal) com características daquele sistema desenvolvido além mar (controle incidental), mostrando-se mais adequado e eficiente, mormente nos países não dotados do stare decisis das decisões da Corte Constitucional.


4. O sistema francês

A teorização do controle de constitucionalidade na França apresentou diversas peculiaridades em relação aos sistemas suprarreferidos[24]. Previu-se ali um controle preventivo, ou seja, realizado anteriormente à edição da lei, durante sua tramitação. Ademais, o sistema francês preconizou a competência não jurisdicional do órgão para a realização do controle, atribuindo-a a um Conselho Constitucional. O sistema francês não logrou alcançar o êxito dos sistemas austríaco e norte-americano, ficando restrito, praticamente, ao âmbito interno da França. Excepcionalmente, contudo, previu o art. 37.2 da Constituição francesa uma forma de controle repressivo e abstrato de constitucionalidade de normas concernentes à repartição de competências entre o governo e o parlamento[25].

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