Sistema penal e mídia: breves linhas sobre uma relação conflituosa


Porbarbara_montibeller- Postado em 03 abril 2012

Autores: 
CÂMARA, Juliana de Azevedo Santa Rosa

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A Mídia como Gestora do Espetáculo Social; 3. O Vínculo entre Mídia e Sistema de Justiça Criminal; 3.1. O papel da mídia na vulneração de direitos fundamentais de liberdade; 3.2. Imediatismo Midiático X Morosidade Jurisdicional; 3.3. A cobertura mediática da persecução penal e o trial by the media; 3.4 Princípio da proporcionalidade como instrumento pacificador; 4. Considerações Finais; 5. Referências Bibliográficas.

RESUMO: O presente trabalho objetiva verificar a influência da Mídia no Sistema Penal, com ênfase na repercussão sobre o devido processo legal e sobre o veredicto derradeiro.

PALAVRAS-CHAVE: mídia; sistema penal; opinião pública; sensacionalismo, devido processo legal.

1. INTRODUÇÃO

Desde os primórdios da humanidade, as notícias sobre fatos ou comportamentos socialmente reprováveis e as sanções decorrentes exercem um fascínio sobre a sociedade.

Em sua origem mais remota, a pena é associada ao sentimento de vingança privada, despertado como uma forma de reação social àquele que rompera com a ordem da comunidade. Os castigos (em sua grande parte, corporais) impostos aos desviantes eram concretizados aos olhos do público, que se aglomerava ao redor dos cadafalsos com o fito de assistir aos espetáculos teatrais montados para punir o transgressor da lei.

Ao longo do tempo, a pena foi perdendo esse caráter retributivo – ou o escopo de restaurar a ordem atingida pelo delito – para adquirir um cunho preventivo e ressocializatório. No entanto, essa mudança de viés não implicou o arrefecimento do interesse da população por fatos violentos e sua conseqüente punição.

Em meio a esse processo evolutivo da sociedade e do Direito Penal, os meios de comunicação de massa revelaram-se sucedâneos dos antigos pelourinhos. A criminalidade, seus protagonistas e as sanções a eles infligidas passaram a ser objetos constantes dos noticiários jornalísticos. Consectariamente, a atuação do Poder Judiciário em casos que mobilizam o sistema penal passou a ser atentamente fiscalizada.

O apelo emocional impingido às reportagens carrega o risco de deturpação dos fatos expostos. Essa conjuntura é deveras temerária quando se trata de incidentes que serão submetidos ao crivo do Judiciário Criminal, pois tem o condão de instalar uma série de conflitos entre valores jurídicos.

A cobertura reiterada de crimes, com ênfase no suposto agente delitivo, enseja, de plano, a tensão entre o direito de se expressar livremente e os direitos da personalidade do acusado, ambos de magnitude constitucional.

Outrossim, o furor despertado pelos meios de comunicação quando do exercício da atividade informativa pode subverter o rito pelo qual deve seguir o processo e até mesmo comprometer a imparcialidade do julgador, influenciando o veredicto a ser prolatado ao final do julgamento.

Diante desse panorama, o presente trabalho pretende, ainda que de maneira breve, verificar se a mídia tem o condão de ditar o trâmite e modificar o resultado de um processo penal, analisar a real ameaça dos veículos de comunicação às garantias constitucionais do suposto autor de um delito e investigar o ponto de equilíbrio entre os valores em conflito.

2. A MÍDIA COMO GESTORA DO ESPETÁCULO SOCIAL

O termo mídia comporta uma miscelânea de diferentes significados. Trata-se, pois, de perfeito exemplo de polissemia. Sob essa rubrica, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (19--?, n.p.), abarca-se

todo suporte de difusão da informação que constitui um meio intermediário de expressão capaz de transmitir mensagens; meios de comunicação social de massas não diretamente interpessoais (como p.ex. as conversas, diálogos públicos e privados) [Abrangem esses meios o rádio, o cinema, a televisão, a escrita impressa (ou manuscrita, no passado) em livros, revistas, boletins, jornais, o computador, o videocassete, os satélites de comunicações e, de um modo geral, os meios eletrônicos e telemáticos de comunicação em que se incluem também as diversas telefonias.]

Já a palavra imprensa tem, em regra, seu conteúdo significante desdobrado em “qualquer meio utilizado na difusão de informações jornalísticas; conjunto dos processos de veiculação de informações jornalísticas por veículos impressos ou eletrônicos”.

O ponto de partida para a compreensão da temática em foco, no entanto, não se esgota em definições semânticas. Alberto Dines (1996/1997, p. 58) noticia que o vocábulo mídia provém do latim. E, transcendendo explicações meramente lexicais, pondera: “Medium é meio, modo, maneira, forma, via, caminho, condição em que se executa uma tarefa. Na linguagem técnica da comunicação medium designa o canal através do qual o emissor passa a sua mensagem ao receptor, a audiência”.

Assim, o jornalista representa o elo entre a realidade e a audiência que a desconhece. Ao exercer essa atividade mediadora, não se limita a reproduzir fatos mecanicamente, mas os interpreta, dimensiona, hierarquiza (e, por que não dizer, maquia). Nessa perspectiva, o jornalista oferta a matéria-prima necessária à lapidação dos juízos individuais, denotando a função social e política da intermediação midiática.

Independentemente de concepções conceituais, impende frisar que a imprensa – aqui utilizada como sinônimo de mídia - agasalha sob sua batuta um poderio político e econômico de dimensão não reproduzível nos domínios de qualquer outra agência executiva . A massificação dos meios de comunicação contribuiu para o fortalecimento desse poder, que, ao driblar qualquer forma de institucionalização, não se subjuga ao controle social.

A correlação cada vez mais estreita e imbricada entre os meios de comunicação e sua audiência tem o condão de manietar a opinião pública, alterando seu processo de formação de maneira a repercutir no sistema penal.

O conceito de opinião pública, segundo Matteucci (1992, p. 842), alberga

um duplo sentido: quer no momento da sua formação, uma vez que não é privada e nasce do debate público, quer no seu objeto, a coisa pública. Como “opinião” é sempre discutível, muda com o tempo e permite a discordância: na realidade, ela expressa mais juízos de valor do que juízos de fato, próprios da ciência e dos entendidos. Enquanto “pública”, isto é, pertencente ao âmbito ou universo político, conviria antes falar de opiniões no plural, já que nesse universo não há espaço apenas para uma verdade política, para uma epistemocracia. A opinião pública não coincide com a verdade, precisamente por ser opinião, por ser doxa e não episteme; mas, na medida em que se forma e fortalece no debate, expressa uma atitude racional, crítica e bem informada.

Nesse contexto, pode-se afirmar que a opinião pública, considerada como o amálgama de idéias e valores que externam o modo de pensar de determinados grupos sociais acerca de assuntos específicos, é edificada sobre o tripé sujeito-experiência-intelecto. Com a difusão da comunicação de massa, foi acrescida a esse contexto a informação mediatizada, que, conjugada ao analfabetismo funcional que assola a população brasileira, passou a ditar unilateralmente o quadro fático-valorativo a ser absorvido pela massa populacional.

As premissas até aqui assentadas permitem concluir que a opinião pública não representa o somatório de juízos individuais Com efeito, o ideário que rege a população está diluído numa relação grupal gerenciada por um grupo dominante que tem na mídia seu maior protagonista. Nesse sentido, pondera Habermas (1984, p. 208-281):

O atributo de “ser público” só é conquistado por uma tal opinião através de sua correlação com processos grupais. A tentativa de definir a opinião pública como “colection of individual opinions” é logo corrigida mediante a análise de relações grupais: “we need concepts of what is both fundamental or deep and also common to a group”. É considerada “pública” a opinião de um grupo quando ela subjetivamente se impôs como a opinião dominante: o membro individual do grupo tem uma (provavelmente errônea) concepção quanto à importância da sua opinião e do seu comportamento, ou seja, de quantos dos demais membros, e quais deles, partilham ou rejeitam o hábito ou a perspectiva por ele defendida.

Constata-se, pois, que a opinião pública reflete, na verdade, uma opinião publicada pelos mass media. Esse fenômeno se faz sentir, de modo especial, nos sítios do sistema penal, onde a opinião pública representa um poder determinante na definição da política criminal.

A opinião pública (leia-se publicada) finca as balizas de uma realidade virtual, que manieta a atuação do Judiciário Criminal. A estereotipagem de criminosos rotula os supostos infratores da lei penal do modo mais conveniente aos comandantes do conglomerado midiático, propositalmente ignorando, por exemplo, delinqüentes de colarinho branco.

Nesse âmbito, a influência perniciosa exercida pelos meios de comunicação manifesta-se precipuamente pelos fatos que estes deixam de enunciar - isto é, pelo “não-dito” - do que pelos acontecimentos efetivamente expostos. O mutismo jornalístico obsta a reação do espectador e consagra o olhar unilateral do problema noticiado, impondo ao agente investigado a pena do silêncio.

Outrossim, o lineamento da imagem de suspeitos pela mídia incute na população, de forma precipitada, uma cólera punitiva que exige a imediata condenação. Em meio a esse ambiente de altercação, o magistrado deve buscar manter a serenidade diante de discursos reacionários a cobrarem julgamentos açodados, condenações severas, sem qualquer compromisso com o respeito às garantias do devido processo penal.

Dentre a dinâmica que move os órgãos jornalísticos emerge o sensacionalismo, consistente num modo de veicular a notícia que extrapola os lindes do fato realmente ocorrido, acabando por se imiscuir numa fantasia novelesca.

O fenômeno é descrito pela Promotora de Justiça Ana Lúcia Menezes Vieira (2003. p. 52-53), com acurada propriedade:

A linguagem sensacionalista, caracterizada por ausência de moderação, busca chocar o público, causar impacto, exigindo seu envolvimento emocional. Assim, a imprensa e o meio televisivo de comunicação constroem um modelo informativo que torna difusos os limites do real e do imaginário. Nada do que se vê (imagem televisiva), do que se ouve (rádio) e do que se lê (imprensa jornalística) é indiferente ao consumidor da notícia sensacionalista. As emoções fortes criadas pela imagem são sentidas pelo telespectador. O sujeito não fica do lado de fora da notícia, mas a integra. A mensagem cativa o receptor, levando-o a uma fuga do cotidiano, ainda que de forma passageira. Esse mundo-imaginação é envolvente e o leitor ou telespectador se tornam inertes, incapazes de criar uma barreira contra os sentimentos, incapazes de discernir o que é real do que é sensacional.

O Judiciário é um campo fértil para o espetáculo visado pelos meios de comunicação. O próprio ambiente que circunda o trâmite dos processos já possui um viés cênico, considerando que no âmbito penal estão em confronto a liberdade individual e o poder punitivo estatal com toda a carga de dramaticidade que tal equação comporta.

A dramatização derramada sobre os noticiários que veiculam notícias do âmbito criminal finda por criar ondas artificiais de violência e avultar o pânico social e a sensação de insegurança. À medida que os órgãos midiáticos intensificam a dimensão das desgraças que acometem terceiros, incute-se na população o sentimento de que os fatos negativos ocorrem com freqüência maior que a habitual. Os cidadãos são tragados pela densa carga emocional embutida na notícia, revivendo o ocorrido como se dela fossem personagens.

Por conseguinte, a apresentação da realidade através de maniqueísmos deflagra uma demanda por maior intervenção do Direito Penal. A sanha por um recrudescimento do sistema penal é fomentada de modo mais incisivo pela televisão, que, com a transmissão de uma imagem que retrata um suposto comportamento contemplado em norma penal por seu melhor ângulo, dispensa a utilização de qualquer palavra como meio veiculador de mensagens.

O programa Linha Direta , outrora parte integrante da programação da Rede Globo, é o capítulo mais sórdido da espetacularização da violência através da televisão. Mediante um novo formato de exposição, informações de cunho jornalístico acerca de eventos com repercussão criminal eram entrecortadas por “reconstituições dos acontecimentos” encenadas por atores profissionais, em tomadas que facilmente poderiam ser confundidas com cenas da novela transmitida pela emissora poucos minutos antes. A produção do programa providenciava a coleta de depoimentos (devidamente editados) de parentes e amigos da vítima e o âncora, iteradamente, mostrava a foto do criminoso (não seria mero suspeito?) foragido e divulgava um número de telefone para o qual deveriam ligar as pessoas que o avistassem.

Os efeitos deletérios produzidos pela atração televisiva em comento para o acusado não estão ligados necessariamente à narrativa empreendida pelo apresentador, mas sobretudo pelo silêncio eloqüente em torno de versões que pudessem favorecer o increpado ou apaziguar a indignação vingativa da audiência.

A ojeriza do cidadão para com o criminoso retratado nas telas, imposta midiaticamente, impregna de modo peremptório o caso que doravante será levado ao crivo do Judiciário. A ligação telefônica que, ao localizar o suspeito, franqueia à polícia a concretização de uma prisão é recebida aos olhos do público como uma sentença condenatória, que será submetida à Justiça como mera formalidade. Entrementes, o entretenimento jornalístico explorado através de matérias sensacionalistas pode descambar para o denuncismo.

É nesse contexto que avança e consolida-se o chamado jornalismo investigativo, atividade na qual o repórter traveste-se de polícia e passa a apurar informações sobre atos desviantes que afrontam o interesse público, prejudicando a sociedade.

Não se objeta que o jornalismo investigativo funcione como relevante elemento impulsionador de debates acerca do combate ao crime pelos órgãos estatais, evidenciando conjunturas de indiscutível interesse público. Todavia, tal função ultrapassa os limites da ponderação e da ética e é desvirtuada quando o jornalista veste a roupagem de detetive e deflagra uma atuação policial amadorística, passando a atuar politicamente.

Entrementes, o jornalismo investigativo em algumas ocasiões não se concilia com os desideratos da administração pública e acaba sobrepujando os direitos individuais. Donde, a necessidade de perquirir tal conceito sob uma perspectiva ética. Eugênio Bucci (apud MORETZSHON, 2002, p. 307) aborda o assunto com propriedade:

A rigor, a ética do profissional de imprensa exige que ele sempre se identifique como tal e que não adote dissimulações na apuração. Quem fala para uma reportagem tem o direito de saber que está falando para uma reportagem. Quem aparece numa gravação em vídeo que depois será exibida na TV tem o direito de saber do que é que está participando. A câmera oculta atropela esse direito das fontes. A câmera oculta tapeia as fontes e aqueles que são objeto da reportagem. Embora não constitua obrigatoriamente um crime como a violação de correspondência (art. 194 do Código Penal), é uma forma grave de invasão de privacidade. É análoga, em termos éticos, à escuta clandestina de ligações telefônicas (que também é crime). Ou seja: constitui um método que pode até ser empregado por espiões ou detetives (numa prática extremamente discutível, é verdade), mas nunca por um jornalista.

Consectariamente, o público absorve uma versão calcada em indícios e deduções e, a partir de exposições tendenciosas, cria pré-conceitos face à pessoa retratada como criminosa. Esta última, por seu turno, é acometida por um linchamento moral numa fase em que ostenta a condição de simples investigada, e tem seu veredicto cunhado de forma antecipada e inapagável (ainda que o Judiciário se manifeste diversamente a posteriori).

3. O VÍNCULO ENTRE MÍDIA E SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

3.1. O papel da mídia na vulneração de direitos fundamentais de liberdade

A atividade jornalística é movida por disposições legais que garantem a liberdade de informação. Trata-se de garantia constitucional alvissareiramente introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição Federal de 1988, buscando a legitimação do Estado Democrático de Direito então instaurado através da publicização da atividade estatal, permitindo, destarte, um maior controle por parte dos cidadãos.

Em que pese a coloração constitucional da liberdade de informação – ou liberdade de imprensa -, não há como se reconhecer um caráter absoluto no seu exercício. Ao revés, o direito a exercer livremente a atividade jornalística não raro esbarra em outros direitos fundamentais.

A título exemplificativo, quando um órgão midiático divulga uma matéria de índole penal e, em seu cerne, ventila o nome e a imagem do pretenso autor de uma conduta criminosa, tem início um embate entre a liberdade de informação e os direitos da personalidade do indivíduo retratado.

Os contornos da liberdade de informação são assegurados no Texto Constitucional em dispositivos diversos, a exemplo do art. 5º, incisos IV, IX, XIV e art. 220. A relevância do preceito em comento para a legitimação de uma ordem jurídica democrática é bem salientada por Sérgio Ricardo de Souza (2008, p. 103):

Realmente, a informação como forma de obtenção de conhecimento, como meio de poder controlar os fatos que ocorrem no meio ambiente em que o indivíduo atua é hoje mais que um direito: é uma necessidade irrenunciável, sem a qual não há participação, não há liberdade, desmorona-se a igualdade, obstaculiza-se a existência da democracia e afasta-se a possibilidade de alcançar-se uma sociedade justa e participativa, por propiciar uma indesejável e mesmo inaceitável exclusão – consistente em excluir a possibilidade de o indivíduo interagir socialmente, de forma tal que lhe seja permitido entender a própria sistemática de funcionamento social e de agir criticamente – afrontando a Constituição Brasileira em seus próprios fundamentos.

A liberdade de imprensa apresenta-se como uma ferramenta de defesa contra a arbitrariedade estatal, tendo em vista que descortina a atuação governamental e, como conseqüência, franqueia à sociedade os instrumentos necessários ao revide contra os desmandos da Administração Pública. A título de reflexão, vale trazer à baila as palavras de Marx, rememoradas por José Afonso da Silva (2005, p. 246):

A imprensa livre é o olhar onipotente do povo, a confiança personalizada do povo nele mesmo, o vínculo articulado que une o indivíduo ao Estado e ao mundo, a cultura incorporada que transforma lutas materiais em lutas intelectuais, e idealiza suas formas brutas. É a franca confissão do povo a si mesmo, e sabemos que o poder da confissão é o de redimir. A imprensa livre é o espelho intelectual no qual o povo se vê, e a visão de si mesmo é a primeira confissão da sabedoria.

Por outro lado, não se pode olvidar a existência de limites internos à liberdade de imprensa, traduzidos no dever de divulgar fatos verdadeiros como pressuposto para o cumprimento da função social da mídia e da outorga de uma conotação material à liberdade em estudo.

A exigência de veracidade, entretanto, tem se arrefecido face ao ritmo frenético imprimido à atividade midiática. A presteza na divulgação do “furo jornalístico” subtrai do profissional o tempo necessário à checagem das informações obtidas. Semelhante panorama fez com que o compromisso com a verdade se transmudasse no comprometimento de buscar qualquer verdade.

Por conseguinte, a velocidade que move a atuação da imprensa e, por muitas vezes, põe em xeque a veracidade das notícias propagadas, finda por conflitar com direitos individuais ínsitos à personalidade humana. Tal problematização revela o ponto nevrálgico da relação entre Mídia e Poder Judiciário: trata-se do embate entre a liberdade de imprensa e os direitos da personalidade do criminalmente acusado, ambos de índole constitucional.

Quando a cobertura jornalística recai sobre acontecimentos afetos ao sistema penal, o funcionamento desse mecanismo difusor de notícias esbarra em direitos individuais expressamente agasalhados pela Carta Magna. Trata-se de valores como a imagem, a intimidade e a honra que, amalgamados sob a rubrica de direitos da personalidade, representam limites à liberdade de imprensa.

Os direitos da personalidade são entendidos como os atributos físicos, intelectuais e morais imanentes ao homem e sua projeção no seio da coletividade, garantindo ao indivíduo autoridade sobre si mesmo. Em suma, o termo em foco abarca direitos cuja falta teria o condão de comprometer as potencialidades da pessoa humana como tal considerada.

Esse cipoal de direitos eminentemente subjetivos emana do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, inciso III). O preceito em tela pode ser identificado como “o respeito a um conjunto de valores que propiciem a cada ser humano, conviver em sociedade usufruindo dos direitos inerentes à sua personalidade, até o limite em que o exercício desses direitos venham a colocar em risco a possibilidade dessa convivência harmônica” (SOUZA, 2008, p. 07-08).

Ora, deve se ter em mente que o regime democrático visa assegurar a máxima eficácia dos direitos fundamentais de primeira geração, tais quais a honra, a imagem e a vida privada. Há quem defenda – como Aury Lopes Jr. (2006, p. 196-197) - a operacionalização de uma censura garantista, de forma a garantir o exercício de tais direitos. Evita-se, assim, que a liberdade de informação jornalística, cujo nascedouro histórico se deu como forma de combate ao autoritarismo, se transmude num algoz.

Todavia, a tutela dos direitos fundamentais em apreço também não se reveste de caráter absoluto. Cuida-se de assertiva deveras compreensível, porquanto o homem, como membro de uma coletividade, não pode intentar viver sua vida entre tabiques. Afigura-se legítima, por exemplo, a propagação da imagem de suspeitos quando estes, expressa ou tacitamente (quando da concessão de entrevistas, por exemplo), o autorizarem. Por conseguinte, a harmonização do embate entre os sobreditos valores deve ser buscada tendo como tempero a proporcionalidade.

3.2. Imediatismo Midiático X Morosidade Jurisdicional

A ingerência espetacularizada dos meios de comunicação nos acontecimentos afetos ao sistema de justiça criminal arreda o Direito Penal de seus alicerces teóricos intrínsecos (tais quais o princípio da intervenção mínima e o princípio da fragmentariedade, entre outros), conferindo ao mesmo uma conotação meramente simbólica.

Tal engrenagem é irrompida porque “o empreendimento neoliberal precisa de um poder punitivo onipresente e capilarizado, para o controle penal dos contingentes humanos que ele mesmo marginaliza” (BATISTA, 2002, p. 272-274). A mídia, ao incutir crenças na população e silenciar sobre outros fatos importantes, atua como ferramenta legitimante dessa forma de controle, propagandeando o “dogma da criminalização provedora” .

Assim, manifesta-se no âmbito penal uma publicidade enganosa que, segundo Maria Lúcia Karam (1993, p. 200-201), primeiro concebe “o fantasma da criminalidade, para, em seguida, ‘vender’ a idéia da intervenção do sistema penal, como a alternativa única, como a forma de se conseguir a tão almejada segurança, fazendo crer que, com a reação punitiva, todos os problemas estarão sendo solucionados”.

O direito penal simbólico, pois, lança seus tentáculos sobre a política criminal, dando azo ao recrudescimento de penas e criminalização de condutas. Tal panorama é engranzado a partir de casos-símbolos que inflamam o movimento de lei e ordem, ocasionando um distanciamento do Direito Penal com o caráter fragmentário que deveria regê-lo. Esses casos são eleitos dentre aqueles que causam maior repercussão social, em consonância com o que Filippo Sgubbi (apud SILVEIRA, 2000, n.p.) denominou de “lógica das vedetes” .

Outro aspecto criador de tensão no vínculo entre mídia e Judiciário atine à imediatidade que caracteriza a primeira e a morosidade que identifica o segundo. A velocidade imprimida na atividade jornalística é reflexo da atmosfera mercadológica que tomou conta das empresas de comunicação.

Engendra-se um processo de reificação da notícia, que passa a ser pensada como um produto perecível, cujo consumo há de ser imediato, sob pena de falência dos conglomerados midiáticos. Aos jornalistas, é imposto um sistema de fast journalism, em que a notícia deve ser ofertada para consumo fácil e rápido. Nessa perspectiva, é inarredável a presença constante de novas informações, uma vez que o pioneirismo na divulgação de “furos” é o principal ingrediente para a liderança do mercado comunicacional.

Semelhante cultura tolhe do profissional de jornalismo o tempo necessário à reflexão sobre os fatos a serem veiculados, fomentando o senso instintivo em detrimento da afeição racional. Esse quadro é deveras temerário quando se trata de um processo penal em curso ou na iminência de ser instaurado, em face da possibilidade de marcar indelevelmente a pessoa investigada com a atribuição de fatos desabonadores não necessariamente ligados ao fato supostamente criminoso apurado, atribuindo-lhe qualidades altamente depreciativas, que comprometem significativamente seu status dignitatis e em total desrespeito ao princípio do estado de inocência.

A conjuntura apontada deságua no chamado direito penal de emergência, que, despido do viés subsidiário, é produzido de forma açodada e urgente para fundamentar uma política penal retribucionista e eficientista suplicada pela população diante de casos específicos, particularmente chocantes. Criam-se, num curto interstício temporal, mecanismos especiais para combatê-los, sobretudo apresentados mediante expedita produção legislativa.

Essa influência se fez sentir na promulgação da Lei nº 8.072/90, a chamada Lei dos Crimes Hediondos, que estabeleceu um disciplinamento mais rigoroso aos tipos penais catalogados pelo legislador .

Anos depois, a catarse popular motivada pelo assassinato da atriz global Daniela Perez, ocorrido em 28 de dezembro de 1992, tornou a pressionar o legislador . O crime em questão foi reiteradamente explorado pelos veículos midiáticos e, conjugado à mobilização empreendida pela novelista Glória Perez - mãe da vítima - através de um “abaixo-assinado”, logrou incluir o homicídio qualificado no rol de crimes hediondos, por meio da Lei nº 8.930/94.

Nos casos abarcados pela esfera penal, o trâmite cadenciado do processo é percebido como um atestado de incapacidade do Judiciário, contrastando com a eficiência e a presteza da mídia, que, de fato, atende às expectativas sociais. Por conseguinte, a velocidade transfigura-se no sopro de vida de que necessita o Poder Judiciário para manter hígida sua credibilidade aos olhos da população.

Como corolário da urgência, opera-se uma reviravolta na marcha processual: o encarceramento - medida sabidamente punitiva - precede a análise meticulosa do caso, a qual é desencadeada como forma de dar tempo ao magistrado de arregimentar elementos suficientes para lastrear a condenação prematuramente decretada em forma de prisão cautelar. O contraditório, além de diferido, é franqueado como mera formalidade, e não como garantia.

O procedimento judicial com sua marcha se prolongando no tempo é desqualificado e passa a ser apontado como mecanismo de contenção da pressão do povo levando a um julgamento final tardio e, freqüentemente, com absolvições ou condenações amenas a recaírem sobre o acusado. Desperta-se na coletividade um furor vingativo traduzido em pressão para que os juízes decidam de forma ágil e os legisladores criem procedimentos céleres.

O direito a ser julgado num prazo razoável, assegurado pelo inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal, traz como conclusão inarredável o enjeitamento dos extremos. Se por um lado o réu não pode ser castigado com a delonga no andamento do processo, a configurar um sancionamento temporão, sob outro ângulo não pode ser subtraído do acusado o tempo necessário a promover amplamente sua defesa, de maneira a concretizar o princípio da presunção de inocência.

3.3. A cobertura mediática da persecução penal e o trial by the media

Numa ordem jurídica democrática, o processo penal tem o desiderato de servir como instrumento de contenção do poder estatal e de maximização da eficácia dos direitos e garantias fundamentais, em detrimento de movimentos de lei e ordem (LOPES JUNIOR, 2006, p. 1).

O processo não pode se render à idéia de que as garantias constitucionais configuram obstáculos ao combate à criminalidade. Semelhante concepção finda por furtar a racionalidade do sistema, já que infunde no âmbito infraconstitucional uma postura de negação ao modelo garantista delineado pela Carta Magna.

A ingerência midiática nos meandros jurisdicionais tem início antes mesmo da deflagração da ação penal. Já na fase inquisitória, a exposição prematura de um mero suspeito através de discursos categóricos que na verdade externam meras hipóteses a guiarem o procedimento apuratório tem a potencialidade de produzir efeitos deletérios tanto para a polícia como para o investigado.

A um, porque compromete o sigilo que deve permear as investigações, como preconiza o Código de Processo Penal em seu art. 20. Tal segredo é necessário para não obstruir as diligências realizadas com o intuito de descortinar os pormenores do crime ultimado e, “em si mesmo, não significa uma burla ao Estado Democrático de Direito, mas sim sua imposição abusiva, sem fundamento no interesse público ou social, ou em outro valor constitucionalmente relevante” (VIEIRA, 2003, p. 195) . Ademais, a divulgação da estratégia policial serve como um aviso ao suposto agente delitivo, permitindo que este se antecipe às autoridades e logre êxito em suas esquivanças.

A dois, porque a publicização da fase inquisitorial não apenas exibe como troféu a identidade de um mero suspeito, como também atinge por extensão seus familiares, os quais são vitimados pela maledicência da coletividade, numa manifesta violação ao princípio da intranscendência, a preconizar que a reprimenda não pode ultrapassar a pessoa do agente delitivo.

Os meios de comunicação de massa, ao infundirem em suas reportagens um juízo prévio acerca dos fatos criminosos perscrutados pela autoridade policial, findam por condenar precocemente o investigado.

A “sentença midiática” prescinde de formalidades e “transita em julgado” perante a opinião pública sem que seja franqueada àquele sentado no banco dos réus a oportunidade de se defender ou, ao menos, ter conhecimento de todas as acusações que lhe são imputadas (VIEIRA, 2003, p. 168).

Conquanto não haja, nesse ponto, uma sentença condenatória definitiva, a exposição midiática do caso já vaticina o veredicto popular - na maioria das vezes, é desfavorável ao réu – que, por seu turno, é condicionado pelo retrato cuidadosamente pintado pela imprensa.

A reverberação jornalística em acontecimentos desse jaez perdura tão-somente até meados do processo, vez que o tempo acarreta a lassidão da atmosfera emotiva que envolve a audiência, fazendo com que esta perca o interesse sobre o evento tantas vezes reiterado nas telas de TV ou nas páginas de jornais e revistas.

A sentença proferida, mesmo que de cunho absolutório, não tem força para desvanecer as nódoas cravadas pelo processo, cuja formulação de hipóteses que caracteriza seu início é transmudada em certeza pela ação da imprensa. “É muito mais fácil abrir uma ferida do que fechá-la, sem deixar marcas ou cicatrizes” (LOPES JR., 2006, p. 7).

Essa face justiceira da Mídia é examinada por Márcio Thomaz Bastos (1999, p. 115-116):

Levar um réu a julgamento no auge de uma campanha de mídia é levá-lo a um linchamento, em que os ritos e fórmulas processuais são apenas a aparência da justiça, encobrindo os mecanismos cruéis de uma execução sumária. Trata-se de uma pré-condenação, ou seja, a pessoa está condenada antes de ser julgada, tal como bem definido no Black’s Law Dictionary; no verbete Trial by news media: “É o processo pelo qual o noticiário da imprensa sobre as investigações em torno de uma pessoa que vai ser submetida a julgamento acaba determinando a culpabilidade ou a inocência da pessoa antes de ela ser julgada formalmente”.

A concretização do fenômeno do trial by media acarreta a mudança do locus de julgamento: cria-se um juízo paralelo que, embora mais célere, repudia as garantias do increpado. Em meio a esse quadro, opera-se uma inversão na mente das pessoas, já que o “comando sentencial condenatório” é passado em julgado antes mesmo do fim da instrução processual.

Os ingredientes para a implementação do trial by media são hauridos dos efeitos decorrentes do princípio da publicidade. Tal preceito tem sido usado pela mídia como algoz dos direitos processuais do penalmente acusado, vez que a transformação do processo em espetáculo possui uma tendência de privilegiar a versão acusatória. Habermas (1984, p. 241-242) diagnostica no fenômeno uma inversão no princípio crítico da publicidade: ao invés de servir como freio ao exercício arbitrário do jus puniendi estatal, os mass media laboram cada vez mais com o intuito de trabalhar os processos para atender ao desejo de entretenimento dos consumidores.

Dentre as garantias processuais constitucionais esmorecidas pela cobertura midiática do processo penal, figura o princípio do estado de inocência. Ora, a presunção ou estado de inocência nada mais é que uma presunção política, assegurando o status libertatis do acusado em face do interesse coletivo de punição criminal (VIEIRA, 2003, p. 171). Nessa perspectiva, “o processo penal deixa de ser um mero instrumento de realização da pretensão punitiva do Estado, para se transformar em instrumento de tutela da liberdade” (SCHREIBER, 2008, p. 189).

Ocorre que a imprensa, ao exibir pessoas acusadas de envolvimento em fatos criminosos numa fase incipiente das investigações, monta uma exposição de tal forma deturpada que acaba por neutralizar o princípio da presunção de inocência e, ao submeter o indivíduo a um precoce julgamento público, subverte o preceito em foco em privilégio de uma verdadeira presunção de culpabilidade.

O sensacionalismo midiático desperta na sociedade um arroubo vingativo e, conseqüentemente, uma demanda irascível por uma resposta repressiva do Direito Penal. A opinião pública vislumbra o encarceramento provisório como uma antecipação da pena , antepondo o término do processo penal ao seu início.

Pressionados pelo alarma social fomentado pela mídia, os magistrados socorrem-se do conceito aberto da expressão ordem pública, elencado pelo art. 312 do Código de Processo Penal como fundamento da prisão preventiva, para decretar a prisão de réus com o implícito propósito de atender ao clamor público.

O clamor social, por vezes, esconde-se sob o conceito de ordem pública, cabendo ao magistrado avaliar se esta foi realmente afetada ou se o foi apenas pelo noticiário (TOURINHO FILHO, 2006, p. 614). Quando o segregamento preventivo é decretado com o escopo precípuo de abrandar o rogo popular pela antecipação da punição ao suposto culpado, a prisão perde o viés de cautelaridade que deveria circundá-la, vez que um provimento cautelar visa assegurar a eficácia do processo principal.

Não obstante a interferência dos mass media seja mais notória durante o trâmite do inquérito processual e do processo penal, é mister atentar também para a exposição midiática de indivíduos já sentenciados.

A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84), com o propósito de impedir investidas tendentes a frustrar a reintegração social do preso, catalogou a “proteção contra o sensacionalismo” no rol de direitos do preso (art. 41, inciso VIII) e proscreveu a exposição do preso “à inconveniente notoriedade durante o cumprimento da pena” (art. 198).

Donde, a doutrina aventa a existência de um direito ao esquecimento como limite à liberdade de informação jornalística. Através do direito ao esquecimento, objetiva-se reintegrar o ex-presidiário na sociedade, que poderia ser comprometido com a indiscrição da imprensa durante a fase executória da pena.

3.4. Princípio da proporcionalidade como instrumento pacificador

A harmonização do choque axiológico entre liberdade de expressão e garantias individuais do acusado deve ser feita com cautela, haja vista que, se por um lado aquela é um dos baluartes do regime democrático, por outro, estas também não podem ser amesquinhadas, por serem princípios reitores do Estado de Direito.

Considerando que ambos os valores supra aludidos têm raízes constitucionais, torna-se imperioso fazer uma leitura dialética da Carta Magna, em busca de fundamentos também constitucionais para dirimir o prélio axiológico posto. Sobre o assunto, preleciona Barroso (2008, p. 357-358):

A dificuldade que se acaba de descrever já foi amplamente percebida pela doutrina; é pacífico que casos como esses não são resolvidos por uma subsunção simples. Será preciso um raciocínio de estrutura diversa, mais complexo, que seja capaz de trabalhar multidirecionalmente, produzindo a regra concreta que vai reger a hipótese a partir de uma síntese dos distintos elementos normativos incidentes sobre aquele conjunto de fatos. De alguma forma, cada um desses elementos deverá ser considerado na medida de sua importância e pertinência para o caso concreto, de modo que na solução final, tal qual em um quadro bem pintado, as diferentes cores possam ser percebidas, ainda que uma ou algumas delas venham a se destacar sobre as demais. Esse é, de maneira geral, o objetivo daquilo que se convencionou denominar técnica da ponderação.

Percebe-se que o desenlace desse suposto conflito de normas principiológicas deve ser perquirido à luz da realidade concreta subjacente, já que as normas aplicáveis estão abstratamente no mesmo plano hierárquico.

Portanto, os direitos fundamentais que, sacramentados sob a roupagem de princípios constitucionais, coabitam harmonicamente num espectro abstrato (externando a unidade do sistema jurídico), por vezes se apresentam em posições antagônicas quando transpostos para o plano concreto, razão pela qual demandam a intervenção de um fator compatibilizante.

Esse ingrediente harmonizador é encontrado na técnica da ponderação, assim entendido o procedimento racional que, a partir da identificação de uma conjuntura normativa colidente, passa a aferir o peso que cada princípio vai exercer diante de um caso concreto, ditando a prevalência de um preceito em detrimento do outro na hipótese examinada.

Nessa atividade “eletiva”, deve se ter em mente a preservação máxima do núcleo essencial de cada um dos princípios em pauta, vez que a preterição de um deles num caso específico não implica seu alijamento da ordem jurídica; pelo contrário, o preceito “rejeitado” – em parte ou no todo – mantém-se hígido e passível de ser aplicado em outras situações.

Ora, não há preceitos absolutos, passíveis de serem acatados irrestritamente em qualquer ocasião. A existência de uma situação colidente em potencial faz emergir a necessidade lógica de um princípio da proporcionalidade, como forma de preservação dos direitos fundamentais em jogo.

Em sentido estrito, a proporcionalidade traduz a obrigação de que a ingerência em um direito fundamental seja motivada por causas tão graves quanto o vilipêndio a ele imposto. Em outras palavras, deve haver um equilíbrio entre os efeitos positivos do valor sobrelevado e o ônus infligido ao preceito antagônico.

Assim, no que tange à exploração midiática de incidentes de repercussão criminal, deve ser perquirido se o escopo de garantir o devido processo legal justifica eventual restrição à cobertura da imprensa. Trata-se de indagações palpitantes: “As vantagens causadas pela promoção do fim são proporcionais às desvantagens causadas pela adoção do meio? A valia da promoção do fim corresponde à desvalia da restrição causada?” (ÁVILA, 2005, p. 124).

Esse estágio da ponderação requer maior cautela, vez que dá margem à subjetividade do intérprete, influenciado por seu repertório de valores e impressões pessoais. Para evitar essa “contaminação”, há de ser perquirida uma solução que se pretenda universal e busque a concordância prática, diminuindo ao máximo o sacrifício do direito fundamental em oposição (SCHREIBER, p. 41-42).

Conclui-se, pois, que o ordenamento jurídico não profetizou soluções apriorísticas em matéria de colisão de princípios constitucionais. Ao refletir sobre o sopesamento dos preceitos colidentes quando a mídia passa a se ocupar ativamente de eventos delitógenos a serem apreciados pelo Poder Judiciário, Sérgio Ricardo de Souza (2008, p. 143-144) obtempera:

Essa é uma situação típica onde a melhor solução se encontra na aplicação da ponderação de valores, através do critério exalado do princípio da proporcionalidade, como forma de definição do bem jurídico que deve preponderar, se a proteção da honra, refletida através do nome ou da imagem vinculados a um fato caracterizar infração de natureza penal e, por via de conseqüência, a própria garantia da personalidade como um reflexo da dignidade da pessoa humana daquele investigado, ou, a liberdade de informação jornalística, exercida neste caso com o objetivo precípuo de bem informar à sociedade sobre os riscos que cada um de seus membros estaria correndo em face de o investigado encontrar-se solto; ou mesmo da desmoralização do sistema judiciário estatal em face de um remisso em cumprir as normas sociais se esquivar de submeter-se ao procedimento estatal legalmente criado para investigar a sua conduta.

O princípio da proporcionalidade apresenta-se, enfim, como o instrumento pacificador das tensões detectadas ao longo do presente estudo. Para se chegar a um desenlace mais próximo ao ideal de justiça, é mister enxergar a problemática sob a lente da dignidade da pessoa humana.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mídia, assim como o sistema penal, constitui uma forma de controle social institucionalizado. Em face do hiato existente entre o Judiciário e o homem comum, os veículos midiáticos assumem a função de decodificar a linguagem técnico-jurídica e, no exercício desse mister, findam por se travestir num verdadeiro tribunal popular.

Por um lado, a liberdade de informação jornalística é princípio inarredável de um Estado que se pretende democrático, pois, ao tornar transparente a atuação dos órgãos estatais, permite o engendramento de uma sociedade participativa. Donde, deve ser arredada qualquer tentativa de estabelecer uma censura às atividades dos meios de comunicação.

Porém, sob outro prisma, urge reconhecer que a desmesurada cobertura jornalística sobre um fato penalmente acoimável pode acarretar graves danos aos direitos da personalidade da pessoa exposta como suspeita. Se os pormenores do incidente delitógeno não forem narrados de maneira responsável, corre-se o risco de atingir a intimidade, a honra e a imagem do indivíduo investigado ou processado, num flagrante desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

É imperioso que a comunidade jurídica comece a refletir sobre a ingerência dos meios de comunicação no funcionamento do Sistema de Justiça Criminal, a fim de identificar os problemas que hodiernamente fragilizam o Estado Constitucional de Direito num viés de recrudescimento da sanha punitiva estatal.

Enfim, o liame entre mídia e sistema penal é permeado, em toda sua extensão, por conflito de valores de matiz constitucional, não existindo parâmetros preestabelecidos e absolutos para o equacionamento da relação. Donde, a solução desse enfrentamento deve ser buscada à luz da casuística e através da técnica da ponderação. Apenas o sopesamento de princípios diante do caso concreto poderá conduzir o aplicador do Direito a uma solução mais afinada com os ideais de justiça.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Fábio Martins de. Mídia e Poder Judiciário: A influência dos Órgãos da Mídia no Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Os direitos do preso e a mídia. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 10, n. 114, p. 7-10, mai. 2002.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed., rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.

BASTOS, Márcio Thomaz. Júri e Mídia. In: TUCCI, Rogério Lauria (org). Tribunal do Júri: Estudo Sobre a Mais Democrática Instituição Jurídica Brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 112-116.

BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, ano 7, nº 12, p. 271-288, 2º semestre de 2002.

BECHARA, Ana Elisa Liberatore S. Caso Isabella: violência, mídia e direito penal de emergência. Boletim IBCCRIM. São Paulo, ano 15, n. 186, mai. 2008.

__________. Os discursos de emergência e o comprometimento da consideração sistêmica do direito penal. Boletim IBBCRIM, São Paulo, ano 16, n. 190, p. 17, set. 2008.

BONJARDIM, Estela Cristina. O acusado, sua imagem e a mídia. São Paulo: Max Limonad, 2002.

BUCCI, Eugênio. Sociedade de consumo ou consumo de preconceitos. In: LERNER, Julio (ed). O Preconceito. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1996/1997. p. 33-55.
CARVALHO, Natália Oliveira de. Trial by media: o sistema penal é a pauta! Boletim IBCCRIM. São Paulo, ano 15, n. 185, abr. 2008.

CASTELLAR, João Carlos. Violência, imprensa e mudanças na lei penal. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, ano 7, nº 12, p. 319-323, 2º semestre de 2002.

CENEVIVA, Walter. In: SEGISMUNDO, Fernando (Coord.). Dois “ismos” perigosos: denuncismo e sensacionalismo. Revista CEJ, Brasília, nº 20, p.17-22, jan.-mar. 2003. Disponível em: . Acesso em: 26 mai 2008.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 2ª Ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2008.

DINES, Alberto. Mídia, Civilidade, Civismo. In: LERNER, Julio (ed). O Preconceito. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1996/1997. p. 57-72.

DOTTI, René Ariel. Proteção da Vida Privada e Liberdade de Informação: Possibilidades e Limites. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

GOMES, Luiz Flávio. Mídia, segurança pública e Justiça criminal. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1628, 16 dez. 2007. Disponível em: . Acesso em: 13 mai 2008.

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Hermenêutica Constitucional, Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade. In: BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo (Org.). Hermenêutica Plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 391-412.

HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigação quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Trad: Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

IBIAPINA, Humberto. A mídia versus o direito à imagem, na investigação policial . Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 36, nov. 1999. Disponível em: . Acesso em: 26 mai 2008.

IMPRENSA. In: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em . Acesso em 26 mai 2008.

KARAM, Maria Lúcia. De Crimes, Penas e Fantasias. 2 ed. Niterói: LUAM, 1993.

LOPES JUNIOR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional. 4ª ed. rev, atual. e amp. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

MATTEUCCI, Nicola. Opinião Pública. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (Org). Dicionário de Política. Vol. 2. Trad: Carmem C. Varriale et. al. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1992. p. 842-845.

MENDONÇA, Kleber. A não-voz do criminoso: o Linha Direta como crônica moral contemporânea. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, ano 7, nº 12, p. 333-346, 2º semestre de 2002.

MÉRO, Carlos. A prestação jurisdicional, mídia e opinião pública. Disponível em:. Acesso em: 26 mai 2008.

MÍDIA. In: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em . Acesso em 26 mai 2008.

MOREIRA, Reinaldo Daniel. Mídia, liberdade de expressão e direito penal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, ano 15, n. 182, p.8, fev. 2008.

MORETZSOHN, Sylvia. O fetiche da velocidade no jornalismo do “tempo real”. Sala de Prensa – Web para profesionales de La comunicación iberoamericanos, año III, vol. 2, nº 38, dez 2001. Disponível em: Acesso em 26 mai 2008.

__________. O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã”. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, ano 7, nº 12, p. 291-314, 2º semestre de 2002.

NALINI, José Renato. A formação do juiz e seu relacionamento com as partes, servidores e a imprensa. Revista CEJ. Brasília, nº 13, p. 163-167, jan-abr 2001. Disponível em: . Acesso em 30 mai 2008.

PALMA, Marcio Gestteira. Os tribunais da mídia. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 13, n. 158, p. 10-11, jan. 2006.

ROCHA, Fernando Luiz Ximenes. Mídia, processo penal e dignidade humana. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 11, n.n. esp., p. 2-3, out. 2003.

SCHREIBER, Simone. A Publicidade Opressiva de Julgamentos Criminais. 1 ed. São Paulo: Renovar, 2008.

SENA, Marta Pinheiro de Oliveira. Lei de Crimes Hediondos: Um Modelo de Legislação Simbólica. Disponível em: . Acesso em 08 out 2008.

SENDEREY, Israel Drapkin. Imprensa e Criminalidade. Trad. Ester Kosovski. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1983.

SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. A Finalidade da Sanção Penal. In: __________. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 124-150.

__________. Mídia e Crime. In: __________. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 374-392.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. A mídia e o Direito Penal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n. 45, p. 16, ago. 1996.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A mídia e a lei da mordaça. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n. 94, set. 2000.

SODRÉ, Muniz. A sedução dos fatos violentos. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Instituto Carioca de Criminologia, ano 1, nº 1, p. 207-214, 1º semestre de 1996.

SOUZA, Sérgio Ricardo de. Controle Judicial dos Limites Constitucionais à Liberdade de Imprensa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

STOPPINO, Mario. Ideologia. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (Org). Dicionário de Política. Vol. 1. Trad: Carmem C. Varriale et. al. 7. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995. p. 585-597.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Série Concursos Públicos. Vol. 1. 2ª Ed. São Paulo: Editora Método, 2006.

TORON, Alberto Zacharias. Imprensa investigativa ou instigativa? Revista CEJ. Brasília, nº 20, p. 9-16, jan-mar 2003. Disponível em: . Acesso em 26 mai 2008.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.

VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo Penal e Mídia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad: Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.