A súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça sobre embargos de terceiro


Portiagomodena- Postado em 06 maio 2019

Autores: 
Josy Stephany da Silva Queiroz

SUMÁRIO: Introdução. 1. A súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça. 1.1. A súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça e seu conteúdo. 1.2. A relação da súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça com a súmula 621 do Supremo Tribunal Federal. 2. O conceito de posse à luz do Código Civil de 2002. 2.1. Teoria subjetiva. 2.2. Teoria objetiva. 2.3. A teoria adotada pelo Código Civil Brasileiro. 2.4. O princípio da boa-fé: objetiva e subjetiva. 2.5. Posse de boa-fé e posse de má-fé. 3. Contratos preliminares: a promessa de compra e venda. 4. Os embargos de terceiro do promitente e seus efeitos. Conclusão. Referências.

RESUMO:  O presente artigo busca explorar o conteúdo da súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça, como esta se relaciona com a súmula 621 do Supremo Tribunal Federal e com alguns outros institutos do Direito e sua repercussão atual devido ao cenário propício à fraude que essa súmula traz. Através de pesquisa bibliográfica, procura-se nesse trabalho qualitativo esclarecer qual é a ligação entre essa súmula e o fenômeno da posse, além das teorias que tentam conceituar este último. Nessa obra interdisciplinar, que trata de diferentes ramos do Direito, correlacionando-os com o Direito Civil, é trazido o conceito de diversos institutos para iluminar o caminho do real significado dessa súmula.

PALAVRAS-CHAVE: súmula, posse, promitente comprador, embargos de terceiro.


INTRODUÇÃO

Há uma relação intensa entre a súmula em questão e um primordial conceito do Direito das Coisas – o conceito de posse. Através de vasta pesquisa bibliográfica, busca-se responder uma série de indagações que recaem na conexão dos embargos de terceiro com a posse, pois um só existe em virtude do outro.  O princípio da boa-fé objetiva, grande corolário do Direito Civil, tem grande importância nesse trabalho, pois é com base nele que observaremos quando a referida súmula traz benefícios ou malefícios à sociedade.

A ocorrência da posse de má-fé no momento da constituição do contrato de compra e venda é importante fator que leva ao não provimento dos embargos de terceiro opostos por promitente comprador, pois tal má-fé compromete os direitos do possuidor, inclusive os de opor embargos a situações jurídicas que não lhe são favoráveis.

A atual situação jurídica brasileira, com casos cada vez mais frequentes de fraude, encontra problemas na execução do preceito da referida súmula, sendo necessário o exame do momento da realização do contrato, do início da ação judicial, enfim, de todos os elementos que levam à constituição – ou não – da fraude.


1.A SÚMULA 84 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1.1. A SÚMULA 84 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E SEU CONTEÚDO

A súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça traz em seu corpo o seguinte preceito: “é admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido de registro”.

A admissão trazida por essa súmula é clara manifestação do princípio da boa-fé, pois presume-se que o promitente age de boa-fé ao interpor embargos de terceiro em decisão judicial, para defender a res que tem pretensão de tornar sua.

A súmula em questão gera imensa insegurança jurídica, pois ao conceder qualidade de direito real ao promitente comprador sem registro, ela o equipara ao promitente comprador devidamente registrado. Isso, além de afrontar o artigo 1.417, que requer o registro no Cartório de Registro de Imóveis para a aquisição de direito real do promitente sobre o imóvel, causa uma desvalorização dessa formalidade, uma vez que quem não registra acaba por ter os mesmos direitos e a mesma proteção jurídica de quem o faz.

1.2. A RELAÇÃO DA SÚMULA 84 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA COM A SÚMULA 621 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

A súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça revogou a súmula 621 do Supremo Tribunal Federal que afirma que “não enseja Embargos de Terceiro à penhora a promessa de compra e venda não inscrita no registro de imóveis”.

 

Afirmam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino que “a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula vinculante exige decisão de 2/3 (dois terços) dos membros do Supremo Tribunal Federal (oito ministros) em sessão plenária”. Como o STF, que foi quem elaborou a súmula, precisou aprovar sua revogação pela súmula 84 do STJ, entende-se que a Suprema Corte adotou essa segunda opinião, até porque, segundo o artigo 105, inciso III, a, cabe ao Superior Tribunal de Justiça “contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência”.

Essa súmula trata de contrato de gaveta, nome que se dá ao contrato que não foi devidamente registrado porque a lei 8.004/90 exige a anuência da instituição financeira que financiou o imóvel na primeira venda para vendas subsequentes, o que não raras vezes dificulta ou impossibilita o negócio. Nasce assim o contrato de gaveta.

Acerca da grande questão da possibilidade de oposição de embargos de terceiro de imóveis sem registro, essa súmula adotava posição negativa, como se pode ver nessa jurisprudência:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE TERCEIRO. PROMESSA DE COMPRA E VENDA NÃO REGISTRADA. A jurisprudência hoje vitoriosa no Alto Pretório e no sentido de que o compromissário comprador, portador de promessa de compra e venda não inscrita no registro competente, não tem qualidade para requerer embargos de terceiro, na condição de possuidor por não ter título oponível "erga omnes". Precedentes do STF. Deu-se provimento ao recurso voluntário condenando os embargantes a honorária de 10% (dez por cento).

E também:

COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA - Contrato não registrado - Penhora do imóvel - Embargos opostos pelo terceiro adquirente - Impossibilidade - Falta de inscrição no Registro Imobiliário que impede a oposição "erga omnes" de direito real não constituído - Irrelevância da existência ou não de fraude à execução ou contra credores - Aplicação da Súmula 621 do STF.


2. O INSTITUTO DA POSSE À LUZ DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Existem duas teorias que buscam conceituar a posse.

2.1. TEORIA SUBJETIVA

A teoria subjetiva, de Savigny, define a posse como “poder direto ou imediato que tem a pessoa de dispor fisicamente de um bem com a intenção de tê-lo para si e de defende-lo contra a intervenção ou agressão de quem quer que seja”.

Para este autor, a posse apresenta dois elementos constitutivos:

  • Corpus: é o poder físico da pessoa sobre a coisa, a detenção desta, ou o simples fato de tê-lo à sua disposição. É o elemento material, que se faz presente quando o indivíduo pode do bem se apoderar, servir e dispor, podendo ainda exercer seu poder sobre a coisa em face da exclusão em fase de terceiros.

  • Animus: é a intenção do indivíduo de ter a coisa para si, de exercer sobre ela o direito de propriedade. É o elemento volitivo, a vontade do sujeito de ser dono da coisa. Só haverá posse onde houver o animus possidendi.

Percebe-se o cunho subjetivo dessa teoria devido à importância que ela dá ao elemento animus, determinando este como caracterizador da posse, embora reconheça que há a necessidade da combinação dos dois elementos para que esteja configurada. Se houver somente o corpus, haverá apenas a mera detenção, uma posse “natural” e não jurídica.

Essa teoria não admite a posse indireta, pois nesta modalidade de posse o sujeito não deseja ter a coisa para si, faltando então o elemento animus para a configuração da posse. Estamos diante, então, de um caso de mera detenção, não existindo a possibilidade de invocar os interditos possessórios.

A teoria subjetiva de Savigny, apesar de ser alvo de muitas críticas devido à exacerbação do papel da autonomia da vontade pela extrema relevância do animus, inovou ao projetar a autonomia da posse, trazê-la como situação fática merecedora da tutela do Estado.

2.2. TEORIA OBJETIVA

Essa teoria foi desenvolvida por Ihering, e analisa o instituto da posse sob outro ângulo. Para este autor, a posse é mero exercício da propriedade, bastando que haja o corpus, sendo o animus dispensável por estar atrelado no poder de fato exercido sobre o bem. Nas palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Ihering “traz para o direito o determinismo darwiniano que expressa a evolução biológica pela necessária precedência na natureza dos seres inferiores aos superiores”.

 

O corpus é manifestação externa do animus, sendo possuidor aquele que concede destinação econômica à propriedade, uma vez que qualquer pessoa é capaz de reconhecer a posse pela forma econômica que este se relaciona com a pessoa.  Ihering vê a posse como um meio para se atingir um fim maior: a propriedade.

Ihering discorda de Savigny quanto à conceituação do elemento corpus. Enquanto para este o corpus pode ser definido como o poder físico da pessoa sobre o bem, a possibilidade deste de se apoderar, servir e dispor da coisa, para aquele corpus seria a simples visibilidade da coisa em seus elementos caracterizadores. A questão da detenção da coisa torna-se secundária, destacando-se prioritariamente a questão econômica. O sujeito pode não ser o proprietário e ainda assim ser o possuidor, se der à coisa destinação econômica, como seu proprietário faria.

Segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

Ihering considerava que o interesse jurídico movimenta a vontade. É o interesse da realização da destinação econômica da propriedade que justifica a proteção à posse, pois em si mesma ela não teria qualquer valia. A posse só se converte em direito, em homenagem ao direito superior de propriedade.

Essa teoria permite admitir-se como possuidores os chamados possuidores indiretos, como o locatário, o arrendatário, o depositário etc.

2.3. A TEORIA ADOTADA PELO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

Nosso Código Civil de 2002 adota a teoria de Ihering, embora não conceitue a posse. Extrai-se o significado desta pelo conceito de possuidor, presente no artigo 1.196, onde se lê: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Sabe-se que estes poderes são o de uso, gozo e fruição.

Assim sendo, vemos que a utilização econômica do bem tem grande importância, pois possuidor não é aquele que é proprietário da coisa – embora posse e propriedade possam e geralmente se encontram nas mesmas mãos – e sim aquele que tem o direito de gozar, usar e fruir da res.

Segundo William Paiva Marques Júnior, “a adoção da Teoria Objetiva de Ihering pelo ordenamento jurídico nacional encontra representação principalmente na divisão vertical da posse (no reconhecimento da posse direta e da indireta) ”.

Importante é ressalvar que, apesar do Código Civil adotar a teoria objetiva, há exceções em que podemos ver a teoria subjetiva de Savigny sendo aplicada no nosso Direito. A primeira delas é a de usucapião, do artigo 1.238, que diz que

Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis”

Também temos a exceção do abandono, onde é necessária a observação do elemento subjetivo, a intenção do agente de abandonar a coisa. Ao abandoná-la, ele não quer mais ter a posse do bem, o animus.

Assim, temos que apesar de a teoria adotada pelo Código Civil ser a objetiva, há traços também da teoria subjetiva, não devendo esta ser desvalorizada nas hipóteses supracitadas, onde há grande importância do elemento animus para questões de Direito.

2.4. O PRINCÍPIO DA BOA FÉ: OBJETIVA E SUBJETIVA

O princípio da boa-fé é um princípio explícito, tendo sido previsto primeiramente pelo Código de Defesa do Consumidor, em seus artigos 4°, III e 57, IV, transcritos a seguir:

Artigo 4°: A Política Nacional das relações de Consumo tem por objetivos o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (...)

III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores".

 

A boa-fé objetiva também é chamada de boa-fé lealdade, e significa a obrigação que todos temos de agir seguindo um padrão ético, honesto e moral nas relações jurídicas. É necessário agir de modo a não prejudicar outrem, sendo vedado que alguém se beneficie do prejuízo alheio.

A boa-fé subjetiva – ou boa-fé crença – é aquela que se relaciona ao psicológico do agente. Ele não quer prejudicar ninguém, e se o faz, é por ignorância escusável.  Essa boa-fé é a intenção do agente de agir com lisura em suas relações jurídicas.

Quanto à distinção entre essas duas modalidades de boa-fé, Judith Maria da Costa preleciona:

Já por ‘boa-fé objetiva’ se quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao § 2"A expressão ‘boa-fé subjetiva’ denota ‘estado de consciência’, ou convencimento individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito (sendo) aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se ‘subjetiva’ justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.

42 do Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade’. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo.

Esse princípio não é exclusivo do Direito Civil. É possível ver a presunção de boa-fé em vários outros ramos jurídicos, como Direito Penal, Direito Administrativo, entre outros.

2.5. POSSE DE BOA-FÉ E POSSE DE MÁ-FÉ

É importante conceituar a posse de acordo com suas diferentes classificações. Pode ela ser classificada quanto aos seus vícios, quanto aos seus efeitos, entre vários outros critérios. Sob o prisma subjetivo, pode essa ser classificada em posse de má-fé e posse de boa-fé.

A posse de boa-fé é abordada no artigo 1.201 e seu parágrafo único do nosso Código Civil, onde se lê:

É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.

Parágrafo único: o possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.

A posse de boa-fé se dá quando o sujeito crê que realmente é dono da coisa, que esta lhe pertence, não tomando conhecimento do obstáculo que torna essa posse impossível. Essa espécie de posse é óbvia manifestação do já supracitado princípio da boa-fé. Caio Mário da Silva Pereira, sobre boa-fé, aduz:

O conceito de boa-fé é fluido. Uns entendem que ela se resume na falta de consciência de que dado ato causará dano, e, desta sorte, imprimem-lhe um sentido negativo, equiparando-a à ausência de má-fé (Ferrini). Outros exigem um fatoramento positivo, e reclamam a convicção do procedimento leal. Nem a própria incerteza satisfaz.

Nesse trabalho, vemos a boa-fé neste sentido negativo. Haverá boa-fé quando não houver a má-fé, conceito visto a seguir.

A posse de má-fé, por sua vez, é aquela em que o possuidor tem pleno conhecimento do vício que corrompe seu direito de posse e, a despeito disso, a conserva. O artigo 1.202 do Código Civil afirma que “a posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente”, aqui podendo ser percebido o elemento da presunção da má-fé quanto à posse.

Maria Helena Diniz lista as circunstâncias que levam a essa presunção da posse de má-fé, e consideramos importante o destaque de duas dessas situações, quais sejam a confissão do possuidor de que que não tem o título da posse (e nem nunca o teve, diga-se de passagem) e a violência no esbulho ou a outros atos proibidos por lei.

Para nosso estudo, é essencial a percepção do elemento subjetivo daquele que assina o contrato de promessa de compra e venda, sabendo que o objeto do referido contrato se encontra envolvido em ação judicial. Ora, é evidente que, ao conhecer da ação que corre causando o comprometimento da coisa, tal posse só pode ser considerada de má-fé, para efeitos legais. Não pode ensejar embargos de terceiro quem se encontra nessa situação fática.