A RESPONSABILIDADE POR ATAQUES Á PROBIDADE ADMINISTRATIVA, ESPECIALMENTE EM SEDE DE POLÍTICA ECONÔMICA


Porjulianapr- Postado em 26 março 2012

Autores: 
Ricardo Antônio Lucas Camargo

A RESPONSABILIDADE POR ATAQUES Á PROBIDADE ADMINISTRATIVA, ESPECIALMENTE EM SEDE DE POLÍTICA ECONÔMICA

 

Ricardo Antônio Lucas Camargo

Doutor em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais
Membro da Fundação Brasileira de Direito Econômico

 

Tradicionalmente, os atentados à probidade administrativa são elencados como crimes de responsabilidade do Chefe do Executivo. A importância do tema para o Direito Econômico se coloca quando se tem em vista a situação descrita por WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOUZA, a respeito dos problemas decorrentes do modo como disciplinado o processo eleitoral na legislação vigente, em que "mesmo que nela se incluam, como recentemente, os analfabetos, porém sujeita como é a todas as formas de influências e corrupções, especialmente aquelas vinculadas ao poder econômico e aos 'lobbies' de toda espécie, ao domínio da informação, dos transportes, ao despreparo político da própria pobreza ou miséria, se sua vulnerabilidade compromete os próprios resultados do resultado eleitoral. Refletidos na eleição dos representantes, estes fatores inevitavelmente multiplicam os seus efeitos em dispositivos constitucionais comprometedores da soberania em geral e consagradores da dependência econômica, do colonialismo e do atraso em todas as suas manifestações. Completa-se este efeito quando os enunciados de política econômica e de conquistas sociais incutidos no texto constitucional são esvaziados na política e anulados pelos expedientes de regulamentação restritiva das leis ordinárias elaboradas pelo Poder Legislativo composto do mesmo modo, pela ação autoritária do Poder Executivo, pelas facilidades à desídia e prevaricação de legisladores e administradores, assim como pelo despreparo e falta de sensibilidade dos julgadores" (Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 189-190).

 

Como atentado à probidade administrativa, chamamos a atenção para a negativa do Chefe do Executivo em prestar contas de suas atuações (Lei 1.079, de 1950, artigo 9º, 2; Decreto-lei 201, de 1967, artigo 4º, III). Isto porque, no Estado de Direito, não se pode conceber a ação irresponsável, inconseqüente, carente de qualquer justificativa ou, pelo menos, explicação na gestão da coisa pública (CAVALCANTI, Themistocles. A Constituição Federal comentada. Rio de Janeiro: José Konfino, 1948, v, 2, p. 106; CRETELLA JR., José. Do impeachment no Direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 49-50; CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Fomento à iniciativa privada. Prestação de contas. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul – Caso Ford: em Defesa do Interesse Público. Porto Alegre, v. 25, n. especial, p. 151-152, mar 2002; FERREIRA, Luís Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1992, v. 3, p. 391; MENDES, Gilmar Ferreira. Arts. 48 a 59. in: PLURES. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 340). Também se configura como atentado contra a probidade administrativa a desarrazoada demora no envio do projeto sancionado ou vetado à publicação (Lei 1.079, de 1950, artigo 5º, I; Decreto-lei 201, de 1967, artigo 4º, III).

 

Ainda no que tange à improbidade administrativa, é a lei ordinária que a torna causa de inelegibilidade e não a Constituição Federal, embora esta a considere causa de pedir da ação popular de impugnação de mandato (BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Acórdão 11.864. Recurso especial 11.864. Relator: Min. Marco Aurélio Mendes de Farias Mello. Jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral. Brasília, v. 7, n. 2, p. 224-227, abr/jun 1996). O que importa assinalar é que, como salienta M. MADELEINE HUTYRA DE PAULA LIMA é que “especialistas em economia, no mundo todo, compartilham a opinião sobre os efeitos desastrosos que a corrupção exerce em economias que passam por dificuldades. [...] O gravame imposto pela corrupção sobre a economia é a soma dos custos de cada forma de corrupção. Ainda que alguns países apresentem ligeiro crescimento com a corrupção sistêmica, é improvável sua sustentabilidade, já que o cumprimento dos objetivos sociais ficará solapado” (Corrupção: obstáculo à implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, v. 8, n. 33, p. 199, out/dez 2000). As relações com o Poder Público muitas vezes dão ensejo a que o agente econômico privado se venha a colocar em posição de vantagem em relação a seus concorrentes. Daí por que a Lei Federal 8.429, de 1992, em seu artigo 9º, se preocupou com a situação em que “o agente público aufere vantagem econômica indevida, em razão do exercício ímprobo do cargo, mandato, função, emprego ou atividade pública. É o tráfico da função pública” (PAZZAGLINI FILHO, Marino, ROSA, Márcio Fernando Elias & FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade administrativa. São Paulo: Atlas, 1997, p. 57). Por outro lado, consoante assinalam Antonio Pagliaro & Paulo José da Costa Jr., “aquele que exercita uma função pública poderá, licitamente, fazer valer sua condição de funcionário público em suas relações sociais para assegurar melhor exercício de sua função ou para obtenção de maior prestígio pessoal. Poderá ainda de forma ilícita, com a finalidade de prevaricar ou de alterar em sua vantagem a condição de paridade que deveria existir entre os cidadãos diante da administração pública” (Dos crimes contra a administração pública. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 152-153). Podemos citar cmo exemplo a utilização em obras e serviços particulares de recursos materiais e humanos afetos à Administração. Esta hipótese, descrita no inciso IV do artigo 9º da Lei 8.429, de 1992, volta-se a impedir o aproveitamento de veículos, máquinas, equipamento, material de qualquer natureza e de servidores em “atividades que não guardam nenhuma relação com o serviço público” (PAZZAGLINI, Marino, ROSA, Márcio Fernando Elias & FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Op. cit. p. 61). Outra hipótese é a do inciso XII do artigo 9º da mesma Lei, de caráter mais genérico: a do inciso IV visa evitar a utilização dos recursos materiais e humanos em obras e serviços particulares, enquanto a previsão que se põe ora sob comentário se contenta com o uso no proveito próprio do agente fora dos casos particularizados no inciso anteriormente referido. Pode-se falar, aquí, em uma “privatização de fato”, fora da hipótese de peculato, uma vez que o bem público passa a ter o seu uso governado pela conveniência privada. O peculato estaria previsto no inciso XI do artigo 9º da Lei 8.249, de 1992. No Código Penal, vários tipos podem dizer respeito a benefícios outorgados ao poder econômico privado. O artigo 313-a toca a inserir ou facilitar o funcionário autorizado a inserção de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados da Administração Pública com o fim de obter vantagem ilícita para si ou outrem ou causar dano. Henrique Geaquinto Herkenhoff esclarece em que consiste o tipo, tornando, assim, intuitiva a gravidade da conduta quando efetivada por autoridade que esteja sujeita ao processo político: “a inserção de dados falsos em sistemas de informações geralmente se pratica para realizar pagamentos indevidos, e outras vezes para diminuir ou mesmo dar por quitados débitos do particular com a administração pública” [Novos crimes previdenciários. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 45]. Claro que uma conduta desta natureza pode ter repercussão, inclusive, no momento da elaboração das medidas de política econômica, dado que a partir de informações errôneas, torna-se impossível a verificação da adequação do meio empregado ao fim perseguido. Paulo José da Costa Júnior esclarece, com relação ao sujeito ativo: “não se trata, porém, de um funcionário público qualquer, mas de um funcionário autorizado, que estiver em repartição incumbida de manter os sistemas informatizados ou a base de dados da administração pública” (Comentários ao Código Penal. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 1.003). Partindo a ordem do Chefe do Poder Executivo, com o objetivo de dificultar a seu sucessor a elaboração do plano, ou de dificultar o controle de sua atuação, caberá, além do processo pelo crime comum, o processo por crime de responsabilidade.

 

O tipo do artigo 314 do Código Penal é o extravio ou sonegação de documento oficial, de que tenha a guarda o servidor. Como se sabe, a reconstituição de fatos relevantes para a gestão da coisa pública, bem como a possibilitação do desenvolvimento dos negócios privados, depende, em larga escala, de documentos dotados de credibilidade tal que poupem mais demorada atividade probatória. Já no Brasil Império, o CONSELHEIRO ANTÔNIO JOAQUIM RIBAS doutrinava no sentido de que a conservação de livros e manuscritos de bibliotecas e arquivos públicos, bem como dos registros, correspondências e mais papéis das repartições públicas traduzia manifestação da atividade administrativa posta no mesmo patamar que a arrecadação da receita pública e a defesa judicial do erário (Direito Administrativo brasileiro. Brasília: Ministério da Justiça, 1968, p. 93, com remissão aos Decretosnº 2, de 2 de janeiro de 1838, 215, de 30 de abril de 1840, artigo 56, § 6º, 433, de 3 de julho de 1847, 1283, de 26 de novembro de 1853, 736, de 20 de novembro de 1850, artigo 31, 870, de 22 de novembro de 1851, artigos 28 e 38, § 1º, 2478, de 16 de fevereiro de 1861, artigos 8º, § 5º, e 19, § 5º, e 2749, de 16 de fevereiro de 1861, artigos 10, § 1º, e 11, § 1º, e ainda o Aviso de 19 de janeiro de 1853). Explicitando os elementos do tipo, Heleno Cláudio Fragoso observa: “exige-se assim que o livro ou documento tenha sido confiado para guarda ao agente ratione officii,isto é, por força do cargo público que ocupa” (Lições de Direito Penal – Parte Especial. Rio de Janeiro: Forense, 1989, v. 2, p. 423). De acordo com a lição de Luís Regis Prado, “sujeito ativo do delito é o funcionário público encarregado do livro ou documento em epígrafe, nada obstando o concurso de agentes com o particular” (Curso de Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. 4, p. 365). A responsabilidade do servidor, neste caso, é muito similar à responsabilidade do depositário, assim descrita nesta passagem por Arnoldo Wald: “as obrigações básicas do depositário consistem em guardar a coisa e restituí-la quando exigida. A diligência do depositário na guarda da coisa é a que costuma ter com suas próprias coisas” (Direito das obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 388). Pontes de Miranda vai por idêntico diapasão: “custodiar é conservar materialmente, ou, pelo menos, tomar as providências para isso. Supõe-se, portanto, o estado em que o bem foi recebido. A atividade que se tem de exercer depende da natureza do bem em custódia. Essa é que dá os limites do conteúdo do dever de fazer e de não fazer que o custodiar implica” (Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1963, t. 42, p. 328). Para Nelson Hungria, “para que o livro oficial ou documento (público ou particular) seja idôneo objeto do crime do art. 314, basta que, de qualquer modo, afete o interesse administrativo ou de qualquer serviço público ou de particulares” (Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. 9, p. 355). Pois bem. A importância do tipo em tela, no que tange à configuração da improbidade administrativa ligada à formulação e execução das medidas de política econômica diz com os próprios dados voltados à verificação de os engajamentos da iniciativa privada nos projetos do Poder Público não se configurarem como meros favorecimentos. Tanto assim o é que o inciso VII do artigo 10 da Lei 8.429, de 1992, tipifica como improbidade administrativa a concessão de benefícios administrativos ou fiscais, sem que observadas as formalidades legais ou regulamentares. Dentre elas, avultam as concernentes aos meios destinados à reconstituição dos fatos aptos a gerarem o direito ao benefício. Por outro lado, medite-se o caso da destruição dos arquivos concernentes à Ferrovia Madeira-Mamoré. O artigo 337 do Código Penal versa o crime de subtração ou inutilização de livro ou documento fora da hipótese prevista no artigo 314.

 

No artigo 317 do Código Penal está definido o crime de corrupção passiva, consistente em solicitar ou receber o servidor público vantagem indevida, correspondente, por seu turno, à descrição posta no inciso I do artigo 9º da Lei Federal 8.429, de 1992, que é receber o agente público, para si ou para outrem, qualquer vantagem econômica, direta ou indireta, de quem tenha interesse suscetível de ser atingido ou beneficiado pela atuação do agente beneficiado. De acordo com MARINO PAZZAGLINI FILHO, MÁRCIO FERNANDO ELIAS ROSA & WALDO FAZZIO JÚNIOR, “não há necessidade de que o interesse do terceiro que corrompe o agente público venha a ser efetivamente amparado ou escape de ser atingido. Para a configuração da improbidade, basta a percepção da vantagem pelo agente público, ou sua entrega a outrem, em virtude da ação ou omissão ilícitas daquele” (Op. cit. p. 59).

 

O artigo 319 do Código Penal prevê conduta assim definida por Antônio Pagliaro & Paulo José da Costa Júnior: “prevaricação é infidelidade ao dever de ofício. É o descumprimento de obrigações atinentes à função exercida. Em outras palavras: é um abuso dos poderes inerentes ao cargo, seja na forma comissiva, seja na forma omissiva. O delito consiste, dessarte, em não exercitar o poder, quando deveria ser exercitado, ou exercitá-lo segundo critérios diversos daqueles impostos pela lei” (op. cit. p. 134). Observe-se que pode ser configurada, por exemplo, pela dispensa da prestação de contas em se tratando de subsídios à atividade econômica privada. Um tipo especial de prevaricação está desenhado no inciso V do artigo 9º da Lei 8.429, de 1992, em que o agente recebe vantagem econômica para tolerar exploração ou prática de jogos de azar, lenocínio, narcotráfico, contrabando, usura ou outra atividade ilícita.“o ato de improbidade contemplado no inciso V supõe agente público que tem o dever de reprimir as atividades ilícitas nele elencadas, todas caracterizadoras do chamado crime organizado” (PAZZAGLINI FILHO, Marino, ROSA, Márcio Fernando Elias & FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Op. cit. p. 63). Não deve causar estranheza a referência a esta hipótese num texto de Direito Econômico, pois não se pode esquecer que as organizações criminosas constituem, elas próprias, fontes de poder econômico, no sentido de garantirem aos que delas se valem posição de supremacia consistente em fonte de recursos adicionais para enfrentar os custos de atividades lícitas (CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. A “lavagem de dinheiro” e o problema da igualdade dos agentes econômicos no mercado. In: http://www.fbde.org.br/lavagem.html, acessado em 1 de janeiro de 2004; idem. Crime organizado como atividade econômica. In: http://www.fbde.org.br/crime.html, acessado em 1 de janeiro de 2004).

 

No artigo 332 do Código Penal está tipificado o tráfico de influência, cuja objetividade jurídica é assim descrita por Antônio Pagliaro & Paulo José da Costa Jr.: “são tutelados o bom andamento e a imparcialidade da administração, porque do pretexto de obsequiar um agente público poder-se-ia facilmente passar a uma ingerência efetiva. Mas também é tutelado o prestígio, que certamente é lesado, quando as pessoas são induzidas a acreditar que podem ser praticados atos contrários aos deveres do funcionário público, desfrutando-se de uma ingerência ilícita” (op. cit. p. 218.). Com efeito, muito comum no âmbito do exercício da função de fomento é a busca de obtenção de condições privilegiadas para se alcançarem as benesses da legislação incentivadora. Tal conduta, que se traduz como uma das facetas do denominado “jeitinho”, configura, em tese, improbidade administrativa, justamente porque implica considerar o uso da coisa pública de modo que uns sejam mais iguais do que os outros. Literalmente, o inciso IX do artigo 9º da Lei 8.429, de 1992, configura como ato de improbidade a percepção de vantagem para intermediar a liberação ou aplicação de verba de qualquer natureza (PAZZAGLINI FILHO, Marino, ROSA, Márcio Fernando Elias & FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Op. cit. p. 67-68.).

 

Merece destaque o artigo 359-a acrescido ao Código Penal pela Lei 10.028, de 19 de outubro de 2000, e que tipifica a irregular contratação de operações de crédito. Parte-se do pressuposto de que o endividamento público teria como conseqüência o incremento do processo inflacionário, e, por outro lado, à vista de regramento especial posto para a cobrança dos créditos entre as unidades federadas {BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cautelar nº 6/RJ. Relatora: Min. Ellen Gracie. Diário de Justiça da União. Brasília, 29 ago 2003), bem como da necessidade de o Poder Público desempenhar competências das quais não se pode desvencilhar (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.544/RS. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Diário de Justiça da União. Brasília, 8 nov 2002), a tutela à regularidade das operações é algo que não pode ser postergado. O artigo 359-e, acrescido ao Código Penal pela mesma Lei 10.028, criminaliza a prestação de garantia graciosa. Tem-se aqui, indubitavelmente, disposição voltada a evitar que recursos que já são destinados a finalidades específicas, notadamente aqueles que se conceituam como despesas obrigatórias de caráter continuado, no artigo 17 da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, sejam inviabilizados pela submissão do interesse público ao atendimento de interesse particularizado de quem venha a ser beneficiário da operação financeira. Reforça-se, assim, a repressão à conduta descrita no inciso VI do artigo 10 da Lei 8.429, de 1992. O artigo 359-h do Código Penal, que também a ele foi acrescido pela Lei 10.028, tipifica a oferta pública ou colocação irregular de títulos da dívida pública no mercado, com o objetivo de impedir que se elevem as taxas de juros sem qualquer controle das autoridades monetárias, como observado por LEONARDO CANABRAVA TURRA: "se não elevam a inflação no mesmo curto prazo nos mesmos valores, como o faz a expansão monetária, os títulos elevam as taxas de juros, aumentando o custo do investimento, que fica, obviamente, desestimulado" [A política econômica inflacionária: fundamentos jurídicos da expansão da dívida pública. In: PLURES. Direito e processo inflacionário. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 23].

 

Walter Jone dos Anjos e Luís Henrique Martins dos Anjos recordam outro campo fecundo para os ataques à probidade administrativa: “ao contrário da empresa privada, o Poder Público não tem a liberdade, a chamada autonomia da vontade, como princípio, para as suas contratações ou aquisições. O Poder Público está sujeito ao dever de licitar – cotejar, comparar produtos e ofertas. Este dever se assenta em duas finalidades: uma econômica, que significa maior vantagempara a administração; a outra isonômica, que implica iguais oportunidades aos particulares que oferecem serviços, obras, bens à administração” (Manual de Direito Administrativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 151). Diz o insuspeito MIGUEL REALE JÚNIOR: “merece, a nosso ver, destaque a criminalidade dourada corruptora, ou seja, a praticada por empresas detentoras de poder econômico e político, que, em geral mancomunadas com agentes oficiais, atingem a Administração Pública, por exemplo, cartelizando a participação em processos licitatórios, ou uniformizando preços e elevando-os injustificadamente na prestação de serviços ao Estado” (Crime organizado e crime econômico. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v. 4, n. 13, p. 189, jan/mar 1996).

 

No que tange especificamente às licitações, quando ocorra a dispensa ou a declaração de inexigibilidade fora das hipóteses legais, tem-se claramente a submissão do interesse público ao interesse privado de quem pretende contratar com a administração pública. Justamente para se evitar que o agente privado passe a comandar o funcionamento do serviço público em seu próprio e exclusivo proveito é exigida toda uma gama de formalidades, evitando, assim, o estabelecimento de condições privilegiadas, como se pode ver deste julgado do Supremo Tribunal Federal:

 

“HABEAS-CORPUS. DISPENSA DE LICITAÇÃO FUNDADA EM DOCUMENTO INIDÔNEO. ARTIGOS 25, 83, 89 E 99 DA LEI Nº 8.666/93 E 29 E 304 DO CÓDIGO PENAL. DENÚNCIA. ALEGAÇÕES DE FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL, AUSÊNCIA DE EXAME DE CORPO DE DELITO, INEXISTÊNCIA DE RESULTADO LESIVO E DE FALTA DE INTIMAÇÃO DO ADVOGADO QUANDO SE PROSSEGUE NO JULGAMENTO, APÓS PEDIDO DE VISTA. 1. Denúncia que satisfaz as exigências do artigo 41 do CPP. Eventual erro na classificação do crime pode ser corrigido até a prolação da sentença (CPP, artigo 383). O réu deve se defender dos fatos que lhe são imputados, e não do tipo penal mencionado na denúncia. 2. Ausência de qualquer das hipóteses que autorizam a rejeição da denúncia in limine (CPP, artigo 43). 3. A juntada do exame de corpo de delito, quando necessária, pode ser feita até a prolação da sentença, visto que o artigo 525 do CPP só se aplica ao rito procedimental relativo aos crimes contra a propriedade imaterial. Precedentes. 4. A existência, ou não, de dolo ou culpa, e a exigência de resultado lesivo para a tipificação da conduta são matérias próprias da instrução criminal. 5. Tanto no STF como no STJ não é necessária a publicação de pauta quando se prossegue no julgamento de processo após pedido de vista. 6. Habeas-corpus conhecido, mas indeferido”[HC 80.306. Relator: Min. Maurício Corrêa. DJ 4-05-2001].

 

No artigo 90 da Lei 8.666/93, o que se tem , de acordo com Diógenes Gasparini, é a criminalização do gentlemen’s agreement: “a frustraçãoe a fraude ao princípio da competitividade devem ocorrer mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente. Há que existir, assim, uma ação combinada ou ajustada para alcançar esse intento entre, no mínimo, duas pessoas. Esses agentes podem ser participantes (pessoas físicas ou jurídicas ou uma e outra) do certame ou um concorrente (pessoa física ou jurídica) e um servidor, desde que responsável pela licitação” (Crimes na licitação. São Paulo: NDJ, 2001, p. 192). Quando diga respeito ao engajamento de particular em programa financiado por recursos estrangeiros, o crime cai sob a competência da Justiça Federal, como se pode ver deste julgado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região:

 

“HABEAS CORPUS. APROPRIAÇÃO DE RECURSOS PÚBLICOS, OBTIDOS PELA UNIÃO MEDIANTE CONTRATO DE MÚTUO FIRMANDO COM O BIRD. FRAUDE EM PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. 1. Competência da Justiça Federal, não só por se tratar de crime que atinge bens e interesses da União, que se endividou externamente para obtenção dos recursos e se responsabilizou pela sua fiel aplicação, mas porque se trata de recursos federais sujeitos a prestação de contas perante o TCU. Precedentes. 2. O crime previsto no artigo 90 da Lei 8.666/93 não é necessariamente plurissubjetivo e, de qualquer forma, o princípio da indivisibilidade da ação penal não incide quando ela é pública. 3. De qualquer sorte, ainda que assim não se entendesse, remanesceria o delito de estelionato, já que a hipótese, na ótica do acusador, cuida de concurso material, da competência, também, da Justiça Federal. 4. Ilegitimidade ativa que não se caracteriza, pois a denúncia foi oferecida por quem tem a titularidade da ação penal por crimes praticados em detrimento dos bens, serviços e interesses da união. 5. Cerceamento de defesa incomprovado. 6. Aplicação do princípio da consunção deverá ser pleiteado a benefício do paciente, se assim persistir o entendimento de sua defesa, na ocasião própria, em sua sede natural, que é o processo de conhecimento condenatório. 7. Denegação da ordem de habeas corpus.” [HC 199701000184370. Relator: Des. Fed. Hilton Queiroz. Diário de Justiça da União – seção II – 3-10-1997].

 

Sob o enfoque da probidade administrativa, o inciso VIII do artigo 10 da Lei 8.429, de 1992, em sua primeira parte, desenha precisamente a hipótese da frustração da licitude de processo licitatório. Com efeito, mesmo o fornecimento de bens e serviços à administração pública, num certo sentido, pode ser considerado uma forma de manifestação da participação no exercício do poder desta mesma administração. Nisto, aliás, é que se pode ter uma idéia do que significou a revogação do artigo 171 da Constituição Federal, no qual se estabelecia para a empresa brasileira de capital nacional inclusive preferência em licitações.

 

O crime definido no artigo 91 da Lei 8.666/93 é, consoante Diógenes Gasparini, “muito semelhante ao consignado no art. 321 do Código Penal chamado advocacia administrativa. O preceptivo em comento não abrange todo e qualquer interesse privado junto à administração pública, mas unicamente os ligados à instauração da licitação e à celebração do contrato” (op. cit. p. 107-108). Mostra-se evidente a razão de ser da criminalização da conduta e a própria importância para que se não criem situações privilegiadas no mercado, de tal sorte que a concorrência, enquanto valor constitucionalmente protegido, se derrua.

 

O artigo 92 da Lei 8.666/93 criminaliza as condutas de admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, bem como a de pagar fatura com preterição da ordem cronológica. De acordo com Paulo José da Costa Júnior, “com o processo inflacionário brasileiro, o pagamento da fatura antes da data devida configura vantagem econômica indiscutível ao adjudicatário” (Direito Penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 31).

 

O artigo 93 tipifica a conduta de impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato do procedimento licitatório. Em se verificando qualquer das condutas descritas no tipo – comentando, embora, o revogado artigo 335 do Código Penal, que se referia a elas, também –, diz Nelson Hungria: “deixará de ser alcançada a finalidade de uma ou outra dessas formalidades, isto é, a apuração do justo preço a ser pago ou recebido pela administração estatal ou paraestatal, bem como a necessária relação dos competidores, do ponto de vista de sua aptidão e solvabilidade” (op. cit. p. 441). Paulo José da Costa Júnior, quanto à consumação do fato típico, anti-jurídico e culpável, doutrina: “a norma penal em tela não previu causas excludentes de criminalidade específicas, que venham a justificar o impedimento, a turbação ou a fraude. Basta que o ato do procedimento licitatório venha a ser impedido, perturbado ou fraudado para o aperfeiçoamento do tipo penal” (Direito Penal das licitações, cit. p. 38).

 

O artigo 94 da Lei 8.666/93 define como crime devassar o sigilo de proposta em licitação ou ensejar a terceiro que o faça. Nelson Hungria, embora com os olhos postos no revogado artigo 326 do Código Penal, ensina: “a preservação do sigilo em torno de propostas de concorrência pública é uma condição do êxito ou eficiência de tal expediente contratual no interesse da administração, isentando-o de fraudes, assegurando a lealdade da competição e evitando que se frustre o objetivo desta” (op. cit. p. 399). Paulo José da Costa Júnior complementa: “o sigilo das propostas no procedimento licitatório é mantido pelo inciso I do art. 3º da presente lei, assegurando a competitividade e a plena igualdade do certame entre os concorrentes” (Direito Penal das licitações, cit. p. 44). Também se há de cogitar de configurar tal conduta crime de responsabilidade além de crime comum, em se tratando de ato determinado por quem esteja no ápice da hierarquia funcional. É uma das formas de tornar, por exemplo, as privatizações verdadeiros procedimentos com resultado predefinido. Já nos debruçamos sobre o tema do papel do sigilo no Estado Democrático de Direito em outra oportunidade (CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. A publicidade, o segredo e as fronteiras entre o público e o privado no regime jurídico da atividade econômica. In: http://www.fbde.org.br/publicidade.html, acessado em 6 de março de 2004).

 

O artigo 95 da Lei 8.666/93 criminaliza a conduta de afastar ou procurar afastar licitante, por meio de violência, grave ameaça, fraude ou oferecimento de qualquer vantagem. Heleno Cláudio Fragoso, olhos postos no revogado artigo 335 do Código Penal: “o afastamento de licitante é a forma mais eficiente de comprometer o êxito da concorrência ou da hasta pública, simplesmente porque elimina a competição”(Lições, v. 2, cit. p. 506). Aqui, poder-se-ia visualizar também a hipótese de terceirizações para determinados agentes privados, previamente determinados, de tal sorte que a alguns privilegiados – os mais iguais - fosse assegurada a forma de enriquecer à custa da necessidade coletiva.

 

O artigo 96 da Lei 8.666/93 tipifica a conduta de fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias ou contrato dela decorrente aumentando arbitrário dos preços (inciso I), vendendo, como verdadeira ou perfeita, de mercadoria falsificada ou deteriorada (inciso II), entregando uma mercadoria por outra (inciso III), alterando substância, qualidade ou quantidade da mercadoria fornecida (inciso IV), tornando, por qualquer modo, injustamente mais onerosa a proposta ou execução do contrato (inciso V). Quanto ao inciso I, doutrina Paulo José da Costa Júnior: “a conduta punível não consiste numa elevação qualquer de preços de mercado, mas numa elevação arbitrária. Assim, a majoração haverá de ser injustificada, desmotivada, contrariando regras e princípios” (Direito Penal das licitações, cit. p. 50). Claro que a verificação da razoabilidade ou irrazoabilidade dependeria, no caso, de produção de prova técnica. Não é por outro motivo que o inciso VI do artigo 9º da Lei 8.429, de 1992, considera como ato de improbidade gerador de enriquecimento ilícito a percepção de qualquer vantagem econômica para se fazer declaração falsa sobre medição ou avaliação em obras públicas ou qualquer outro serviço: “a realização de perícias avaliatórias sobre o objeto contratado pela Administração constitui-se em importante função pública. São realizadas por profissionais detentores de formação universitária. [...] Também nesta hipótese haverá o concurso de mais de um ato de improbidade, porque ao enriquecimento ilícito corresponderá prejuízo da Administração em decorrência da declaração falsa” (PAZZAGLINI FILHO, Marino, ROSA, Márcio Fernando Elias & FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Op. cit. p. 63-64). Diógenes Gasparini, outrossim, salienta que o tipo do inciso I do artigo 96 da Lei 8.666, de 1993, se refere mais às compras que às vendas feitas pela Administração Pública: “a venda por preço inferior ao de mercado, que caracteriza prejuízo efetivo para a Fazenda Pública, não foi, como devia ser, incriminada por esse preceptivo penal, mas pode configurar o crime da Lei Federal licitatória” (op. cit. p. 148). Tem-se presente, também, a hipótese de incidência do inciso II do artigo 9º da Lei Federal 8.429, de 1992, em que “o agente público percebe a vantagem econômica, ainda que indireta, para facilitar (não criar dificuldade, abrir caminho etc.) a aquisição, permuta, locação de bem ou a contratação de serviço pela entidade a que serve, por preço superfaturado” (PAZZAGLINI FILHO, Marino, ROSA, Márcio Fernando Elias & FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Op. cit. p. 60). Quanto ao inciso V do artigo 96 da Lei 8.666, de 1993, eis o que diz Paulo José da Costa Júnior: “de algum modo, a proposta apresentada pelo concorrente ou a execução de contrato haverão de ser mais dispendiosas, o que irá gerar um prejuízo injusto em detrimento da Fazenda Pública” (Direito Penal das licitações, cit. p. 52). O Código Eleitoral prevê no seu artigo 303 o crime de majorar os preços de utilidades e serviços necessários à realização de eleições, como transporte e alimentação de eleitores, impressão de publicidade e divulgação de material eleitoral. No inciso III do artigo 9º da Lei 8.429, de 1992, está tipificada como ato de improbidade a percepção de vantagem econômica de qualquer natureza para facilitar alienação, permuta ou locação de bem público ou fornecimento de serviço por ente estatal por preço inferior ao de mercado. É a hipótese em que “a incúria do agente público em detrimento da entidade, pela alienação, permuta, locação de bem ou prestação de serviço, por valores inferiores aos cobrados por outrem” (PAZZAGLINI FILHO, Marino, ROSA, Márcio Fernando Elias & FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Op. cit. p. 60).

 

O artigo 97 da Lei 8.666, de 1993 incrimina as condutas de admitir à licitação ou celebrar contrato com empresa ou profissional declarado inidôneo. A inidoneidade é uma das modalidades de capitis deminutio admitidas no Direito atual e, efetivamente, pode afetar a própria credibilidade do desenvolvimento da prestação do serviço. Aliás, o artigo 12 da Lei 8.429, de 1992 prevê, como efeito acessório da condenação por improbidade administrativa, a declaração de inidoneidade.

 

O artigo 98 da Lei 8.666, de 1993, tipifica a conduta de obstar, impedir ou dificultar injustamente a inscrição de qualquer interessado nos registros cadastrais ou promover indevidamente a alteração, suspensão ou cancelamento do registro do inscrito. Tem-se aqui, efetivamente, a tutela penal da concorrência, posta como princípio da ordem econômica no inciso IV do artigo 170 da Constituição Federal.