A relativização do inciso IV, do artigo 1521, do código civil de 2002: O afeto capaz de superar um impedimento legal


Porbarbara_montibeller- Postado em 13 março 2012

Autores: 
NETTO, Roberta de Freitas

SUMÁRIO: 1. O FUNDAMENTO JURÍDICO E MORAL DOS IMPEDIMENTOS - 2. ARTIGO 1.521, INCIVO IV, DO CÓDIGO CIVIL DE 2002, E O DECRETO-LEI N.º 3.200/41 - 3. A RELATIVIDADE DO IMPEDIMENTO REFERENTE AOS COLATERAIS DE 3º GRAU - REFERÊNCIAS.

RESUMO: O presente artigo visa observar os reais fundamentos que devem se basear os impedimentos legais ao casamento, analisando as hipóteses que proíbem a consagração matrimonial do afeto existente entre duas pessoas. A indagação resume-se a restrição legal ao casamento entre os parentes na linha colateral de 3º grau - tios e sobrinhos - diante da existência do Decreto-Lei      n.º 3.200/41, que autoriza, excepcionalmente, a união matrimonial entre aqueles que estão impedidos legalmente. Portanto, verificar-se-á que o artigo 1.521, inciso IV do Código Civil de 2002, necessita ser relativizado quando rebatido pelo princípio da afetividade e, conseqüente, pluralismo familiar.

PALAVRAS-CHAVE: Impedimento - Relativização - Pluralismo familiar - Planejamento familiar - Afetividade.

1. O FUNDAMENTO JURÍDICO E MORAL DOS IMPEDIMENTOS

Os impedimentos possuem papel importante em nossa sociedade brasileira, por exprimir o limite moral e legal quanto a constituição de novas relações familiares através do ato matrimonial ou o reconhecimento judicial de uma união estável. O Código Civil de 2002, em seu artigo 1.521, dá continuidade a um rol de hipóteses fáticas proibidas pela norma, através das quais as uniões de determinadas pessoas especificadas pelo referido dispositivo, poderão ser alvos da ação de nulidade. Pontes de Miranda[1] define os impedimentos, de forma genérica, como "a ausência de requisito ou a existência de qualidade que a lei articulou entre as condições que invalidam ou apenas proíbem a união civil".

A verificação legal destas causas proibitivas ao reconhecimento judicial de uniões afetivas possui razões distintas que podem ser averiguadas conforme a origem da proibição.  Afinal, os impedimentos têm a sua motivação desdobrada em alguns aspectos, como: o parentesco, o estado civil, e ainda, razões de ordem moral.

Carlos Alberto Bittar dispõe que:

Construída sob a influência do direito canônico, a teoria dos impedimentos matrimoniais objetiva conferir ao instituto do casamento a dignidade de que se revestir, em função de seus efeitos. Considerações de ordem moral, religiosa, política, sociológica e jurídica inspiram sua elaboração, tendo ingressado a matéria nas codificações modernas, sob regras impeditivas à realização do casamento e taxativamente enumeradas no respectivo corpo. São normas de cunho imperativo e que, tomando em consideração a defesa da espécie, a proteção da moralidade da família e outros valores éticos de realce, obstam à efetivação do casamento, em razão de problemas relacionados às pessoas dos interessados.[2]

Importante a colocação do mencionado autor, mas digna de questionamento quanto à real função que a espécie matrimonial deve representar para o Direito de Família constitucionalizado. Se o alvo de proteção deve ser direcionado ao próprio instituto, ou, a um ambiente adequada a troca de afeto, fato propulsor das relações familiares. O autor continua dispondo que:

De fato, laços de consangüinidade são, por exemplo, determinantes de impedimento, em virtude de considerações morais e eugênicas e em razão da própria dignidade da pessoa humana, pois a combinação de genes próximos pode produzir, como infelizmente tem se detectado, em casos reais, deformidades psíquicas ou físicas irreparáveis, e de espectro infinitamente doloroso (como taras fisiológicas e malformações psíquicas).[3]

Paulo Nader ratifica tal entendimento, dispondo que:

O impedimento matrimonial entre colaterais de terceiro grau - tios e sobrinhos - funda-se em razões de ordem biológica, dado o perigo de uma prole vitimada por doenças físicas e mentais decorrentes da incompatibilidade sangüínea.[4]

Conclui-se que, a razão para o impedimento legal em razão de parentesco nesta hipótese específica, possui fundamento na existência de laços consangüíneos entre os mesmos, capaz de potencializar um risco de ordem genética a eventual descendência do pretenso casal.

O artigo 1.521, do Código Civil de 2002, prevê expressamente quais são as pessoas que não podem casar entre si, tais como: os parentes em linha reta, constituídos pela forma natural ou civil; os parentes por afinidade em linha reta, independentemente do parentesco originário, ser natural ou civil; os parentes em linha colateral de 2º grau - irmãos -, bilaterais ou unilaterais, sendo constituídos, natural ou civilmente; os parentes em linha colateral de 3º grau - tios e sobrinhos -; as pessoas que já são casadas, e; o cônjuge sobrevivente com a pessoa condenada por homicídio ou sua tentativa contra o outro cônjuge.

Como se vê, os impedimentos também se justificam pela existência de laços de parentesco, mesmo quando não coincidentes com o vínculo biológico, por serem originados civilmente ou por afinidade, importando em uma razão que transcende a consangüinidade, alcançando as razões de ordem moral e de segurança jurídica. Mas, a causa impeditiva de uniões afetivas que possam ser reconhecidas judicialmente é o que interessa ao presente estudo, tratando-se daquela que se refere a relação entre parentes em linha colateral de 3º grau, que são os tios e sobrinhos.

2. ARTIGO 1.521, INCIVO IV, DO CÓDIGO CIVIL DE 2002, E O DECRETO-LEI N.º 3.200/41

O dispositivo legal, objeto de estudo, prevê o impedimento entre os tios e sobrinhos, consagrado no artigo 1.521, inciso IV, do Código Civil de 2002.

O presente trabalho ganha relevância quando observado o Decreto-Lei n.º 3.200/41 que, com a sua redação, prevê uma exceção aos impedimentos considerados como absolutos, no que diz respeito a proibição prevista no inciso IV, do artigo 1.521, do novo Código Civil. Tal permissão excepcional é citada por Eduardo de Oliveira Leite, ao dispor que:

Quanto aos colaterais até o terceiro grau (tios e sobrinhos) a regra precisa ser interpretada com as atenuantes introduzidas pelo Decreto-Lei 3.200/41; se apresentado o exame pré-nupcial que afirme não existir inconveniente para o casamento, sob o ponto de vista da saúde dos cônjuges e da prole, permite-se o casamento.[5]

Mas, antes de expor a parte literária do texto da referida norma, vale ressaltar a divergência, já superada, acerca da sua vigência. Afinal, com o advento no novo Código Civil, alguns consideraram como revogado o Decreto-lei n.º 3.200/41. Doravante, a doutrina majoritária pacificou o referido conflito, posicionando-se a favor da vigência do Decreto-lei concomitantemente com o artigo 1.521, inciso IV, do Código Civil. Segundo Paulo Lobo:

Com relação ao casamento entre tios e sobrinhos (parentesco colateral de terceiro grau) a proibição também os alcança, porém tem sido entendido que o art. 1.521, IV, do Código Civil de 2002 não teria revogado o art. 2º do Decreto-Lei n. 3.200/41, que o permite, quando o laudo médico demonstrar que não há risco de natureza genética ou sanitária para a prole, nem a Lei n. 5.891/73, que disciplina o respectivo exame médico. [6]

Afinal, seria incongruente defender a revogação do Decreto-lei n.º 3.200/41 pelo Código Civil de 2002, se aquele convivia pacificamente com o artigo 183, inciso IV do Código Civil de 1916, que também previa o impedimento entre parentes colaterais de 3º grau.

Conforme Paulo Nader:

O impedimento, todavia, é relativo, superável em alguns casos, pois o Decreto-Lei n.º 3.200/41 admite a realização do casamento nos casos em que o exame pré-nupcial exclua risco para a saúde da prole eventual. A doutrina se revela homogênea quanto à vigência do Decreto-Lei, embora o atual Códex não se manifeste a respeito. Prevalece o entendimento de que "legi speciali per generalem non abrogator". Neste sentido, a Jornada de Direito Civil, promovida por órgão cultural da Justiça Federal, em 2002, emitiu Enunciado nº 98: "O inciso IV do art. 1.521 do novo Código Civil deve ser interpretado à luz do Decreto-lei n.º 3.200/41 no que se refere à possibilidade de casamento entre colaterais de 3º grau".[7]

Dessa forma, o Enunciado n.º 98, da I Jornada de Direito Civil, em 2002, já havia publicado a proposição que permitia a união legal entre as pessoas vinculadas pelo parentesco colateral do 3º grau. E ainda, de forma explícita, declara que tal permissão ficaria condicionada ao exame pré-nupcial, conforme prevê o Decreto-lei n.º 3.200/41, gerando a inquestionável conclusão acerca do fundamento deste impedimento, que é a preservação da saúde dos filhos provenientes desta união.

O Decreto-lei n.º 3.200/41 preocupou-se com assuntos específicos relacionados ao Direito de Família, dentre eles, o casamento de colaterais do 3º grau, direcionando os seus primeiros dispositivos para permitir, em caráter excepcional, a união entre estas pessoas, atualmente, proibida pelo novo Código Civil. Aqui, resta-nos destacar os artigos do mencionado Decreto-lei que interessam ao presente estudo, como se segue:

Art. 1º O casamento de colaterais, legítimos ou ilegítimos do terceiro grau, é permitido nos termos do presente decreto-lei.

Art. 2º Os colaterais do terceiro grau, que pretendam casar-se, ou seus representantes legais, se forem menores, requererão ao juiz competente para a habilitação que nomeie dois médicos de reconhecida capacidade, isentos de suspeição para examiná-los e atestar-lhes a sanidade, afirmando não haver inconveniente, sob o ponto de vista, da saúde de qualquer deles e da prole, na realização do matrimônio.

§ 1º Se os dois médicos divergirem quanto à conveniência do matrimônio, poderão os nubentes, conjuntamente, requerer ao Juiz que nomeie terceiro, como desampatador.

§ 2º Sempre que, a critério do Juiz, não for possível a nomeação de dois médicos idôneos, poderá ele incumbir do exame a um só médico, cujo parecer será conclusivo.

§ 3º O exame médico será feito extrajudicialmente, sem qualquer formalidade, mediante simples apresentação do requerimento despachado pelo Juiz.

§ 4º Poderá o exame médico concluir não apenas pela declaração da possibilidade ou da irrestrita inconveniência do casamento, mas ainda pelo reconhecimento de sua viabilidade em época ulterior, uma vez feito, por um dos nubentes ou por ambos, o necessário tratamento de saúde. Nesta última hipótese, provando a realização do tratamento, poderão os interessados pedir ao juiz que determine novo exame médico, na forma do presente artigo.

§ 5º Quando não se conformarem com o laudo médico, poderão os nubentes requerer novo exame, que o juiz determinará, com observância do disposto neste artigo, caso reconheça procedentes as alegações.

[...]

§ 7º Quanto o atestado dos dois médicos, havendo ou não desempatador, ou do único médico, no caso do § 2º deste artigo, afirmar a inexistência de motivo que desaconselhe o matrimônio, poderão os interessados promover o processo de habilitação, apresentando, com o requerimento inicial, a prova de sanidade, devidamente autenticada. Se o atestado declarar a inconveniência do casamento, prevalecerá em toda a plenitude, o impedimento matrimonial.

§ 8º Sempre que na localidade não se encontrar médico que possa ser nomeado, o juiz designará profissional de localidade próxima a que irão os nubentes.

[...][8]

Após a citação parcial dos dispositivos acerca da possível união entre os colaterais de 3º grau, com o intuito de expor os fundamentos legais pertinentes, verifica-se a permissão de forma condicionada. Isto porque, a lei inicia autorizando o casamento entre tios e sobrinhos, desde que, ao tempo do requerimento do procedimento de habilitação, os nubentes possam comprovar através de laudo médico a conveniência desta união, na verdade analisando a proteção da saúde da prole. Segue a norma, concedendo o direito aos nubentes de requerer a revisão de qualquer atestado que venha a frustrar a intenção inicial, que é a união dos mesmos. Percebe-se ainda, a tentativa de ampliar a permissão do matrimônio, como exceção ao impedimento do artigo 1.521, inciso IV, do Código Civil de 2002, ao prever uma posterior permissão caso os nubentes se submetam a tratamento médico necessário. Mas, ao final, a norma perpetua o impedimento em tela, caso o atestado médico declare uma possível inconveniência quanto à saúde dos eventuais filhos do pretenso casal.

Maria Berenice Dias dispõe, resumidamente, que:

Mesmo que seja proibido o casamento de parentes até o terceiro grau (CC 1.521 IV), por exemplo, entre tio e sobrinha, o DL 3.200/41 suaviza a vedação, tornando possível a sua realização mediante autorização judicial. Como dita lei não foi revogada, modo expresso, não havendo incompatibilidade com o Código Civil, persiste a possibilidade do casamento com a chancela judicial.[9]

Arnaldo Rizzardo[10] frisa que "quanto aos tios e sobrinhos, o enlace matrimonial é autorizado, na forma da Lei n.º 3.200, de 1941, conforme já referido, desde que atendidas certas exigências estabelecidas no seu art. 2º".

Mas, o presente estudo não poderia deixar de questionar o porquê do texto legal do Decreto-lei        n.º 3.200/41 destacar, em seu artigo 2º, que o exame pré-nupcial é direcionado a verificação quanto a ausência de dano a saúde dos nubentes e da prole. Quanto à prole, não resta dúvida sobre a existência de fundamentos biomédicos que possam atestar uma eventual anomalia genética; mas quanto aos nubentes, fica a indagação sobre qual o dano à saúde que a união dos mesmos poderia ocasionar a si próprios.

Dessa forma, o impedimento encontra a sua essência no grau de parentesco dos nubentes, considerados pela lei como próximos quanto ao laço consangüíneo. Esta afirmativa motiva-se pelo fato de, há todo momento, afirmar-se que o casamento entre os colaterais em 3º grau poderá ser causador de algum tipo de anomalia genética da prole. Afinal, se tal mal for afastado por meio do laudo médico, a união do pretenso casal será permitida por lei.

3. A RELATIVIDADE DO IMPEDIMENTO REFERENTE AOS COLATERAIS DE 3º GRAU

Chega-se a uma prévia conclusão: a existência de uma possível relativização do absolutismo direcionado a um dos impedimentos matrimoniais. Afinal, conforme a previsão do Decreto-lei           n.º 3.200/41, presume-se de forma inquestionável que o único motivo que fundamenta a proibição da união entre os tios e sobrinhos, seria um eventual dano à prole.

Ocorre que, diante do Direito de Família Constitucionalizado que ampliou e alterou o conceito clássico da família, alguns efeitos antes considerados como naturais na união entre um homem e uma mulher, foram excluídos como um fator necessário nas relações familiares contemporâneas. Isto significa afirmar que, a tradicional família moderna na qual a prole era uma conseqüência quase que obrigatória da união, já é considerada como um elemento opcional na vida de um casal.

A liberdade e a autonomia de vontade, unidos ao princípio da afetividade e da paternidade responsável, nos remete a necessidade de uma democrática e justa decisão dos próprios nubentes acerca dos futuros integrantes de sua relação familiar. Afinal, o mais importante é percebermos que a proibição ao matrimônio não afasta a possibilidade deste mesmo casal perpetuar a sua espécie, independente da existência ou não de um laudo médico que aprecie, individualmente, a situação de cada um, e ainda, preveja um possível e adequado tratamento médico, se necessário.

Talvez a indagação acerca deste impedimento nos motive a questionar as demais causas proibitivas ao matrimônio, mas este não é o objetivo. Cabe salientar apenas o fato de existir uma norma que prevê a permissão da relativização de um determinado impedimento quando este não importar no prejuízo dos filhos. Então, como proibir um casal de constituir a sua família, neste caso, matrimonial, se a prole não é um requisito essencial, e nem sempre tem feito parte dos planos dos casais contemporâneos? Poderíamos ir mais adiante, ao afirmar que, se a razão motivadora de tal impedimento resume-se ao eventual mal da prole, qual casal, independente da existência ou não do laço consangüíneo, está a salvo deste destino? Afinal, como qualquer casal que constate a impossibilidade genética, ou, neste caso, uma possível anomalia genética de sua prole, poderá recorrer ao instituto da adoção ou da reprodução assistida heteróloga[11].

Interessante salientar que os impedimentos matrimoniais previstos no artigo 1.521 são aplicados, identicamente, às uniões estáveis, conforme prevê o artigo 1.723, § 1º, do Código Civil de 2002. Nos dizeres de Paulo Lôbo:

Assim, configurando-se o impedimento para o casamento, igualmente será estendido à união estável. O relacionamento afetivo que o viole não será considerado entidade familiar, não gerando efeitos próprios da união estável, que jamais poderá ser declarada pelo juiz.[12]

Dessa forma, havendo a união de fato entre colaterais de 3º grau, que independe de qualquer intervenção judicial ou necessário laudo médico como requisito constitutivo, a relação de afeto existente entre os mesmo e uma possível prole, não poderá ser reconhecida judicialmente como uma entidade familiar.

O escopo do presente estudo não é retirar a importância jurídica dos impedimentos matrimoniais, também abrangidos no caso das causas proibitivas da união estável, mas sim, adequá-lo a realidade contemporânea que importa em um novo molde familiar que, independe da existência de prole, e mais, pode ter a filiação constituída através de formas alternadas e desprovidas de vínculo biológico. Portanto, se a permissão legal deste laço afetivo reside na inexistência de um inconveniente genético proveniente do parentesco de 3º grau entre os nubentes, a família contemporânea não comporta mais tal proibição.

Por conseguinte, ressalta-se a presença de uma causa motivadora da anulabilidade do casamento que, por seu caráter, resulta no mesmo prejuízo a uma eventual prole. Isto porque, o nosso Código Civil prevê como hipótese de anulação o erro sobre a identidade do outro cônjuge, em seu artigo 1.556, e ainda, no caso de moléstia grave transmissível. Inclui então, o equívoco acerca do outro cônjuge e a existência de doenças consideradas como graves e transmissíveis, que muitas vezes não é de conhecimento nem do próprio enfermo.

Mas, nestes casos, o ordenamento jurídico vigente traz efeitos mais amenos, acarretando a anulação do casamento e, desde que, alegados dentro de determinado prazo decadencial previsto na lei.         O que importa é perceber que a eventual prole de um casal pode ser afetada geneticamente nas mais variadas situações, permitidas ou não pela lei, tornando-se mais seguro e precavido na união entre os colaterais de 3º grau, que já se casariam cientes de um potencial problema genético no caso de uma procriação naturalmente concebida. Paulo Nader[13] faz uma importante observação, alertando que "os portadores de doenças graves, incuráveis e contagiosas, mais do que o legislador, devem ter o cuidado de impedir a transmissão".

Guilherme Calmon Nogueira da Gama afirma que:

Desse modo, a responsabilidade - normalmente associada ao elemento anímico da vontade - se juridiciza e se objetiva para abarcar o fundamento do risco inerente ao exercício dos direitos reprodutivos.[14]

Portanto, a responsabilidade originada pelos direitos reprodutivos está vinculada a autonomia de vontade que não encontra, necessariamente, coincidência com a juridicização da união entre duas pessoas. A relevância da intervenção estatal nas íntimas relações de família devem justificar-se apenas se, visar uma efetiva e concreta proteção daqueles a quem se pretende tutelar, neste caso a eventual constituição da filiação biológica. Assim, havendo o interesse afetivo entre parentes colaterais de terceiro grau, a preocupação deveria se pautar em formas e procedimentos legais capazes de prevenir a procriação irresponsável, e não a união matrimonial.

Válida a presença do exame pré-nupcial como forma de informar os nubentes sobre os possíveis riscos de uma filiação originada naturalmente, oportunizando aos mesmos a concretização de seu laço de afetividade obedecida à liberdade e, conseqüentemente, o pluralismo familiar quanto às formas alternativas de constituição familiar previstas em nossa Constituição Federal de 1988, e ainda, a observância da paternidade responsável ao optar pela produção de uma relação paterno-materno-filial após um tratamento médico adequado, ou, por meio de um vínculo jurídico constituído ao lado do elo afetivo retratado pela paternidade socioafetiva.

Mencionada a liberdade, Maria Berenice Dias dispõe que:

A liberdade e a igualdade, correlacionadas entre si, foram os primeiros a serem reconhecidos como direitos humanos fundamentais, integrando a primeira geração de direitos a garantir o respeito à dignidade humana. [...] Os princípios da liberdade e da igualdade no âmbito familiar são consagrados em sede constitucional. Todos têm liberdade de escolher o seu par, [...], bem como o tipo de entidade que quiser construir sua família.[15]

Deveras, a dignidade da pessoa humana amplia o rol dos direitos fundamentais por importar na pretensão de se concretizar as necessidades capazes de promover a felicidade e a justa inclusão de uma determinada pessoa na sociedade, conforme os seus anseios afetivos. Em uma sociedade democrática, ideal seria a liberdade concedida ao ser humano em escolher como seu companheiro aquele a quem o seu afeto determina. Sérgio Resende de Barros analisa a afetividade da seguinte maneira:

Nessa conjugação de vidas, atua o afeto. O que define a família é uma espécie de afeto que - enquanto existe - conjuga intimamente duas ou mais pessoas para uma vida em comum. É o afeto que defini a entidade familiar. Mas não um afeto qualquer. [...]

Na realidade, o que identifica a família é um afeto especial, com o qual se constitui a diferença específica que define a entidade familiar. É o sentimento entre duas ou mais pessoas que se afeiçoam pelo convívio diuturno, em virtude de uma origem comum ou em razão de um destino comum, que conjuga as vidas [...].[16]

Silvana Maria Carbonera solidifica seu pensamento acerca da afetividade:

Ganhou dimensões significativas um elemento que anteriormente estava à sombra: o sentimento. E, com ele, a noção de afeto tomada como um elemento propulsor da relação familiar, revelador do desejo de estar junto a outra pessoa ou pessoas, se fez presente. Diante disto, o Direito paulatinamente curvou-se e demonstrou, através da legislação e da jurisprudência, a preocupação com este "novo" elemento, mesmo que inicialmente de forma indireta. [17]

A Constituição Federal de 1988 proclama, em seu artigo1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana, consagrando a repersonalização, inclusive no Direito de Família e, como efeito natural, a funcionalização dos institutos do Direito Privado, dentre eles o casamento. Portanto, o laço matrimonial passa a ser um instrumento que deva ser capaz de propiciar um ambiente adequado à promoção da dignidade e a concretização da felicidade dos pretensos integrantes da relação familiar.

Ana Carolina Brochado Teixeira, concluindo acerca da repersonalização e funcionalização, dispõe que:

Atualmente, independente de deter ou não patrimônio, a pessoa passa a ter relevância ímpar para a ordem jurídica, a partir do momento em que sua dignidade deve ser preservada e promovida. Importa sua realização em sua ontologia, de modo que tenha sua personalidade exaltada. Em função da pessoa, qualquer instituição merece ser sacrificada, uma vez que ela passou a ter caráter meramente instrumental.[18]

Segundo Beatriz Helena Braganholo:

[...] a qualquer interpretação do Código Civil, especialmente se falando do capítulo referente à família, insurge-se a obrigatoriedade da interpretação perfazer-se não pela letra fria da legislação infraconstitucional, mas pelo espírito da Constituição, ou seja, exige-se uma reformulação do direito apresentado no Código Civil vigente e em outras leis de cunho privatista.[19]

Afinal, se tal impedimento encontra qualquer razão justificada por um conteúdo de caráter moral, não será a sua permissão acrescida de mais um requisito ao processo de habilitação, como o exame pré-nupcial, que irá motivar o aumento de uniões entre os colaterais de 3º grau. Dessa forma, se há uma permissão para a união destas pessoas é porque já foi aceita a existência de um laço de afeto comum entre este homem e esta mulher, mesmo que na condição de tios e sobrinhos, e não seria compatível com o nosso Direito Contemporâneo fundado na repersonalização e funcionalização das relações familiares, condená-los a exclusão através de uma decisão médica que pode não importar, necessariamente, para a história deste casal por dois fatores: a ausência de intenção quanto à concretização da paternidade e maternidade, ou, a constituição da filiação pelos vínculos jurídicos previstos em nosso ordenamento jurídico - adoção e reprodução humana assistida heteróloga.

Roberta de Freitas Netto é sócia do IBDFAM, advogada, professora de Família e Sucessões na Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim - FDCI - e de Relações de Família na Faculdade Doctum, pós-graduação em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Gama Filho - UGF - e mestrado na área de Constituição e Relações Privadas pela Faculdade de Direito de Campos - UNIFLU.

Contato: prof_robertanetto@yahoo.com.br.

REFERÊNCIAS:

BARROS, Sérgio Resende de. A Ideologia do Afeto. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, n.º 14, jul./set., 2002.

BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.): Carmen Lucia Silveira Ramos [et. al.]. Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 3. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A Nova Filiação: o Biodireito e as Relações Parentais: o Estabelecimento da Parentalidade - Filiação e os Efeitos Jurídicos da Reprodução Assistida Heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 456.

LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito Civil Aplicado - Direito de Família. V. 5 São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

LÔBO, Paulo. Curso de Direito Civil - Direito de Família. V. 5. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

NADER, Paulo. Curso de Direito Civil - Direito de Família. V. 5. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. V. 7. 3. ed. Rio de Janeiro: Editor Borsoi.

RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família. 5. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, Guarda e Autoridade Parental. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

Texto disponível no site: http://www2.camara.gov.br/internet/legislacao


[1] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. V. 7. 3. ed. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, p. 213.

[2] BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006,      p. 77.

[3] BITTAR, op. cit., p. 78, nota 02.

[4] NADER, Paulo. Curso de Direito Civil - Direito de Família. V. 5. Rio de Janeiro: Forense, 2006,   p. 101.

[5] LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito Civil Aplicado - Direito de Família. V. 5 São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005,.p. 73.

[6] LÔBO, Paulo. Curso de Direito Civil - Direito de Família. V. 5. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 87.

[7] NADER, op. cit., p. 102, nota 04.

[8] Disponível no site: http://www2.camara.gov.br/internet/legislacao

[9] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 3. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 138.

[10] RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família. 5. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 37.

[11] Segunda a definição de Heloisa Helena Barboza: A fertilização in vitro pode também ser heteróloga, ou seja, realizada com sêmen de terceiro, que não o marido, transferindo-se o embrião assim gerado para a mulher casada. Caberá aqui manter-se a presunção de paternidade? Embora a fecundação tenha ocorrido em laboratório, transferindo o embrião a situação é idêntica à que se resulta da inseminação artificial com doador: a mulher casada dará à luz um filho que biologicamente não é de seu marido. (A filiação em face da inseminação artificial e da fertilização "in vitro". Rio de Janeiro: Renovar, 1993, p. 86).

[12] LÔBO, op. cit., p. 85, nota 07.

[13] NADER, op. cit., p. 92, nota 04.

[14] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A Nova Filiação: o Biodireito e as Relações Parentais: o Estabelecimento da Parentalidade - Filiação e os Efeitos Jurídicos da Reprodução Assistida Heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 456.

[15] DIAS, op. cit., p. 53,  nota 09.

[16] BARROS, Sérgio Resende de. A Ideologia do Afeto. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, n.º 14, jul./set., 2002, p. 08.

[17] CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.): Carmen Lucia Silveira Ramos [et. al.]. Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 286.

[18] TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, Guarda e Autoridade Parental. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 60.

[19] BRAGANHOLO, Beatriz Helena. Algumas Reflexões Acerca da Evolução, Crise e Constitucionalidade do Direito de Família Brasileiro. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, n.º 28, v.6, fev./mar., 2005, p. 69.