A REDUÇÃO DO CUSTO DO HOMEM COMO EXERCÍCIO ABUSIVO DO PODER ECONÔMICO


Porjulianapr- Postado em 26 março 2012

Autores: 
Ricardo Antônio Lucas Camargo

A REDUÇÃO DO CUSTO DO HOMEM COMO EXERCÍCIO ABUSIVO DO PODER ECONÔMICO

 

Ricardo Antônio Lucas Camargo

 

Doutor em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais

Membro da Fundação Brasileira de Direito Econômico

 

O trabalho subordinado, em regra, é computado no custo da atividade econômica. Entretanto, o custo do homem pode ser reduzido por várias formas. Uma delas está prevista no artigo 149 do Código Penal – a redução a condição análoga à de escravo -. De acordo com a doutrina de Celso Delmanto, Roberto Delmanto & Roberto Delmanto Júnior, “para a tipificação não se exige que haja verdadeira escravidão nos moldes antigos. Contenta-se a lei com a completa submissão do ofendido ao agente” [Código Penal comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 281-282]. Poucas vezes tal crime, que é da competência da Justiça Estadual, por não se dirigir à tutela do bem jurídico “organização do trabalho”, mas sim à da liberdade pessoal, veio à apreciação dos tribunais brasileiros: aponta-se para os seguintes arestos do STJ [Resp 263.238. Relator: Min. Gilson Dipp. Lex – STJ 153:340; HC 10.698. Relator: Min. Edson Vidigal. RSTJ 129:404; RHC 5.831. Relator: Min. José Dantas. Lex – STJ 104:305]. Também a frustração de direito assegurado na legislação trabalhista – artigo 203 do Código Penal -, que, nas palavras do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, “é prática comum por determinados empregadores, sejam eles urbanos ou rurais, com intuito de se burlar a legislação trabalhista e previdenciária, evitando-se o pagamento e as exigências mínimas dos direitos legais dos empregados” [Apelação Cível 95030046297. Relator: Juiz Manoel Álvares. DJ – seção II - 4 ago 1999]. De acordo com o Desembargador Fernando Whitaker da Cunha, “frustrar direito, nos termos da lei, é colocar óbice para que seu titular o exerça (ato) ou goze (potência)” [Direito Penal do Trabalho. Revista de Informação Legislativa. Brasília, v. 20, n. 80, p., out/dez 1983]. Tânia da Silva Pereira enfoca esta conduta como forma ilícita de redução de custos que também atinge crianças e adolescentes: “na busca de lucro fácil e de maior produtividade, a necessidade de intensificação de mão de obra vem impondo o sacrifício, quase sempre,dos períodos de descanso e refeições, sem falar na baixa remuneração. Estas irregularidades, nocivas a qualquer ser humano, atingem frontalmente o desenvolvimento de crianças e jovens envolvidos nestas atividades” [Direito da criança e do adolescente – uma proposta interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 334]. Novamente, reduzido o custo em duas frentes – a trabalhista e a previdenciária – de modo ilícito, tem-se o aumento arbitrário dos lucros, especialmente nas hipóteses em que o crime recai sob a competência da Justiça Federal, quando o dano é praticado em relação a toda uma coletividade de trabalhadores e não apenas a um grupo reduzido. Flávio Dino de Castro & Simone Schreiber trazem, entretanto, um fundamento interessante para que se entenda atraída, no caso, a competência da Justiça Federal para o processo e julgamento do crime: “os trabalhadores submetidos à situação análoga à de escravo são segurados obrigatórios da Previdência Social, a teor do art. 11 da Lei 8.213/91. Negam-se a eles, então, não somente direitos trabalhistas, mas também direitos previdenciários, o que corresponde a crimes tais como os previstos nos artigos 297, § 4º, e 337-A do Código Penal. Assim, mesmo que se despreze toda a argumentação expendida, ainda haveria a conexão com crimes contra a Previdência Social, como elemento gerador da competência federal” [Trabalho escravo. Revista Consulex. Brasília, v. 6, n. 142, p. 23, 15 dez 2002]. No que tange ao concurso com o crime do § 4º do artigo 297 do Código Penal, que é a omissão do nome, dos dados pessoais, remuneração, vigência do contrato de trabalho ou de prestação de serviços na folha de pagamento, nos documentos contábeis, na CTPS, em regra, não será suficiente para atrair a competência da Justiça Federal, como emerge da Súmula 62/STJ. O objeto jurídico do § 4º do artigo 297 do Código Penal, segundo Henrique Geaquinto Herkenhoff, “consiste, inversamente, em deixar de constar como segurado obrigatório quem tem essa condição ou omitir informações juridicamente relevantes a seu respeito ou a respeito da relação jurídica mantida com o tomador do serviço. Se a conduta tem por finalidade a supressão de contribuição social, aplica-se o art. 337-A, do Código Penal. Se o segurado trabalha em condições subumanas, se lhe negam os mínimos direitos, especialmente o de ir-e-vir, pode configurar-se a redução a condição análoga à de escravo (CP, art. 149). Se a falta do registro ou anotação visa a frustrar direito trabalhista, aplica-se o art. 203 do Código Penal” [Novos crimes previdenciários. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 40]. Quanto à conexão, Hélio Tornaghi oferta os elementos para que se a possa entender: “existe conexão quando mais de um fato configura mais de um crime e: 1º) as várias infrações estão ligadas por laços circunstanciais; ou 2º) a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influi na de outra” [Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1991, v. 1, p. 114]. Fernando da Costa Tourinho Filho oferta conceituação semelhante: “a conexão de que trata o art. 76 é o nexo, a relação recíproca que os fatos guardam entre si, e, em face do vínculo existente entre eles, devem ser apreciados num só processo, possibilitando um só quadro probatório e, ao mesmo tempo, evitando decisões díspares ou conflitantes” [Código de Processo Penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2001, v. 1, p. 193]. Tomada a conexão tal como conceituada pela doutrina, não será raro, efetivamente, que esteja acompanhada a prática das condutas previstas nos artigos 149 e 203 do Código Penal com aquela prevista no respectivo artigo 337-A. Far-se-á, contudo, mister que, para deixar bem caracterizada a atração da competência pela Justiça Federal, que fique bem individualizado na denúncia, sob pena de a efetividade na repressão de tais condutas se ver comprometida por uma discussão acerca da competência. Agora, a identificação do potencial para a eliminação da concorrência, em sede de Direito Econômico, depende, também, de uma atividade probatória mais dilatada. O caráter danoso à concorrência é identificado por João Marcello de Araújo Júnior: “os empregadores infratores das normas trabalhistas prejudicam àqueles que não infringem a lei. Por exemplo, os que violam as condições mínimas de trabalho concorrem deslealmente com os demais, pois operam com custos de produção mais baixos, por empregarem trabalhadores em condições diferentes daquelas estabelecidas nas disposições legais e nas convenções coletivas de trabalho” [Dos crimes contra a ordem econômica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 82]. Uma das hipóteses em que se verifica o tipo do artigo 203 é justamente a adoção do truck system. Com efeito, mediante fraude – e às vezes violência -, frustra-se o direito do trabalhador receber o estipêndio que lhe seja devido e, ainda, impede-se-o não só de livremente mudar de emprego como também de adquirir os gêneros onde melhor lhe aprouver, prejudicando, assim, eventuais fornecedores concorrentes. Esta hipótese, aliás, é versada por Altamiro J. dos Santos, se bem que, erroneamente – porque a fraude integra o tipo do artigo 203 e, aqui, o princípio da especialidade arredaria o tipo geral – visualize a presença do estelionato, previsto no artigo 171 do Código Penal [Direito Penal do Trabalho. São Paulo: LTr, 1997, p. 196]: “o truck system interessa ao Direito Penal do Trabalho. Pode configurar o crime de estelionato[...]. Trata-se de fácil tipificação da conduta do empregador que, por força do induzimento conduz o empregado a erro, sempre que ele possa exercer a sua liberdade de livre escolha das mercadorias que pretende adquirir onde bem entender (sic)”. Poder-se-ia, entretanto, falar em concurso formal com o tipo do artigo 149, porquanto a criação artificial de dívida dos empregados em relação ao empregador pode, sim, permitir a redução à condição análoga à de escravo. Mas, de qualquer sorte, o caráter danoso à concorrência se faz presente, pela observação posta pelo douto Professor paranaense por último transcrito. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, aliás, vislumbra também este aspecto: “este prévio e insolúvel endividamento garantia a situação monopolista do patrão, que exigia, pelo contrato, que o seringueiro comprasse apenas no seu barracão, estipulando multas se a exigência não fosse cumprida” [O extrativismo como atividade agrária. In: LARANJEIRA, Raymundo (org.). Direito Agrário brasileiro – em homenagem à memória de Fernando Pereira Sodero. São Paulo: LTr, 1999, p. 95]. Raquel Elias Ferreira Dodge oferta uma explicação original para o problema: “a escravidão contemporânea resulta da intolerância, cujas ‘formas mais evidentes são a exclusão ou o aniquilamento de grupos inteiros’. ‘Existe uma lógica da intolerância’ no mundo. ‘Ela serve aos interesses que se julgam ameaçados’. Na expressão de Françoise Héritier, um arraigado mecanismo de intolerância e do racismo ... consiste na convicção de que os outros não pensam, não sentem, não reagem como nós (qualquer que seja esse "nós"), que nos consideramos a essência da humanidade e da civilização. O que vai da crença na insensibilidade à dor física, que seria própria dos africanos, à crença em uma forma de insensibilidade afetiva em relação ao destino do próximo, à morte dos pais, dos filhos, recebida com indiferença, ou menos profundamente sentida. No fundo, é preciso negar o Outro como verdadeiro humano para excluí-lo, causar-lhe mal, destruí-lo, e até mesmo negar-lhe uma ‘sobrevida’ post mortem... A intenção primeira não é humilhar, mas negar, pura e simplesmente, o status de ser humano ao Outro.’(Héritier, 2000). Para superar a servidão por dívida no Brasil é preciso tolerar o outro, no sentido de ‘aceitar a idéia de que os homens não são definidos apenas como livres e iguais em direito, mas que todos os humanos sem exceção são definidos como homens’.(Héritier, 2000).” [Escravidão contemporânea no Brasil – quem escraviza? In: www.pedrojorge.org.br/escrava_raquel.doc, acessado em 16 de abril de 2003]. Pensamos que a eminente integrante do Ministério Público Federal identificou o ponto: a questão ultrapassa, em realidade, o mero descumprimento de obrigações trabalhistas, para vir a se converter, mesmo, numa das manifestações mais claras do problema da exclusão social enquanto exclusão de direitos, como bem ponderou Washington Peluso Albino de Souza: “a enumeração dos objetivos constitucionais, em nossa Carta, sem dúvida reflete a realidade brasileira, composta dos problemas de um País continental, com uma população multirracial, condições culturais, econômicas e sociais diversificadas, qualidades de vida e horizontes de oportunidades afirmados em termos opostos, variando entre a ‘dominação’, pela plena fruição de vantagens da ‘inclusão’, e a ‘exclusão’, pela ausência de atenções à sua própria existência” [Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 537]. O enfoque trabalhista do tema pode ser ilustrado pelas seguintes ementas do Tribunal Superior do Trabalho, produzidas, entretanto, a partir de litígios em que envolvidas categorias do setor urbano:

“RECURSO ORDINARIO EM DISSIDIO COLETIVO. A instituição de cláusula relativa à autorização para descontos no salário do obreiro, sem qualquer limitação, dá ensejo a adotar-se o "truck system", combatido pelo Direito Laboral pátrio. Conveniente, então, reformar a condição para limitar o desconto autorizado a setenta por cento do salário do empregado. Recurso ordinário em dissídio coletivo conhecido e parcialmente provido” [ TST ACÓRDÃO NUM: 916 DECISÃO: 09 09 1996 PROC: RODC NUM: 276166 ANO: 1996 REGIÃO: 04 UF: RS – Relatora: Min. Regina Fátima Abrantes Rezende Ezequiel. DJU 6 dez 1996].

A instituição de cláusula relativa a autorização para descontos no salário do obreiro, sem qualquer limitação, dá ensejo a adotar-se o "truck system", combatido pelo direito laboral pátrio. Conveniente, então, reformar a condição para limitar o desconto autorizado a setenta por cento do salário do empregado [TST ACÓRDÃO NUM: 1193 DECISÃO: 04 11 1996 PROC: RODC NUM: 280454 ANO: 1996 REGIÃO: 04 UF: RS. Relator: Min. José Luiz de Vasconcellos. DJU 29 nov 1996].

Os descontos a título de compras feitas no próprio estabelecimento constitui o chamado "truck system", repelido pela doutrina por ensejar situação que representaria parcial retorno, ao próprio empregador, do salário pago. Em face do alto risco de nocividade, não deve constar como condição de acordo coletivo, máxime qiando apresentado à homologação judicial [TST ACÓRDÃO NUM: 1452 DECISÃO: 17 11 1997 PROC: RODC NUM: 368272 ANO: 1997 REGIÃO: 04 UF: RS – Relator: Min. Armando de Britto. DJU 13 fev 1998].

Não surpreende que os precedentes tenham sido construídos a partir de questões em que interessadas categorias urbanas, porquanto em relação ao meio rural cabe perfeitamente a assertiva posta por Roberta Arabiane Siqueira, assertiva que integra o rol das obviedades que têm de ser ditas, sob pena de se esquecer convenientemente que são óbvias: “num país com a dimensão geográfica do nosso, assolado pela miséria, pela analfabetização, por doenças endêmicas, que convive e fomenta uma cultura de alienação programada, a simples existência de instrumentos e mecanismos processuais de ação não basta para cumprir a determinação constituciona de livre acesso ao Judiciário. Faz-se imprescindível que a população excluída socialmente tenha amplo conhecimento de seus direitos. Um analfabeto desinformado é presa fácil para injustiças e arbitrariedades. [...] De outra banda, também é presa fácil o cidadão informado de seus direitos quando estes são tratados como velas ao vento, à mercê do oportunismo legislativo que, no Brasil, configura-se principalmente através de uma tendência freqüente para revisar o texto constitucional e produzir legislação excepcional em série (haja vista o problema enfrentado atualmente com a questão das Medidas Provisórias. Essa ‘inflação jurídica’ que assola o país, cujas razões encontram-se na política econômica neoliberal, acaba por transformar os cidadãos em servos. Servos do poder econômico, que move as ações dos governos e encomenda normas que lhes sirvam aos propósitos, servos do poder político, que se curva diante do poder monetário dos grandes grupos empresariais, servos da cultura massificadora difundida pelas oligarquias que detêm o monopólio dos meios de comunicação, servos das políticas públicas que se abastecem de epidemias e viroses contagiosas, servos da falta de educação, servos do desconhecimento de seus direitos” [Construindo um direito à jurisdição social. Revista de Direito Social. São Paulo, v. 2, n. 5, p. 51, 2002]. Neste sentido, a talentosa mestranda gaúcha vem a trazer uma demonstração empírica do que já fora asserido, no plano teórico, por Washington Peluso Albino de Souza: “nossa proposta de reflexão sobre ‘exclusão social’ aponta para a necessidade de acrescentar à enumeração textual dos excluídos também a denúncia dos expedientes capazes de impedir a eficácia dos direitos dos próprios ‘incluídos’” [op. cit. p. 536]. Foi dito em outra oportunidade que “não se pode ignorar também a existência de campos em que se estabelecem relações de emprego francamente anômalas em face da Constituição brasileira de 1988, bem como de suas predecessoras, no meio rural, em que aparece a figura do intermediário entre os trabalhadores sazonais e o proprietário de terras, o gato, bem como a do cidadão que mantém sob seu jugo trabalhadores a ele vinculados mercê de um complexo mecanismo em função do qual se convertem em seus eternos devedores” [CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Ordem jurídico-econômica e trabalho. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998, p. 31-32; PRUNES, José Luiz Ferreira. Contratos triangulares de trabalho. Curitiba: Juruá, 1992, p. 258-260].

Não obstante, é interessante recordar que o Estatuto da Terra – Lei 4.504, de 1964, artigo 93, IV – vedou expressamente a imposição de compra de gêneros em armazém ou barracão titularizado pelo arrendador ou parceiro-outorgante, adotando, assim, o que Oswaldo Opitz e Sílvia Carlinda Barbosa Opitz caracterizaram como “medida que tolhe a liberdade de contratar, em benefício dos arrendatários ou dos parceiros-outorgados, para evitar a exploração dos mesmos pelos proprietários de terras” [Direito da economia agrária. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 51; ALVARENGA, Octávio Mello. Política e Direito agroambiental. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 165]. Wellington Pacheco Barros também identifica a razão da norma imperativa, afastando o poder de disposição das partes neste caso: “em algumas regiões do país, a distância entre o imóvel rural e o centro de abastecimento é muito grande, o que não raro possibilita ao dono ou possuidor permanente da terra também se tornar fornecedor de gêneros e utilidades ao contratante trabalhador, estabelecendo ele o preço de seus produtos sem condição de concorrência” [Contrato de parceria rural. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 107]. O Professor Giovani Clark, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, para o exame específico da relação entre o truck system e a concentração fundiária oferta esta passagem simultaneamente precisa e irônica: “parece que quando Deus concebeu as férteis terras brasileira criou, concomitantemente, os cartórios de registros de imóveis, reservando a alguns afortunados quase todas as propriedades rurais em detrimento de uma miserável grande maioria. Atualmente, somos vice campeões mundiais na concentração de propriedades fundiárias. Segundo o INCRA, aproximadamente 62% dos imóveis rurais do Brasil são improdutivo. Os minifúndios ocupam menos 8% da área total, representado mais 62% dos imóveis cadastrados, produzindo 70% dos alimentos de nossa mesa, e os latifúndios ocupam 56,7 % da área total sendo menos de 3% dos imóveis cadastrados” [Genocídio econômico. In: http://www.fbde.org.br/genocidio.html, acessado em 17 de abril de 2003]. Mas o mais comum, nestes casos, normalmente ocorrentes em lugares em que a presença humana é escassa, é a verificação do aumento arbitrário de lucros, precisamente visualizada por Werter Faria: “a elevação dos preços, sem justa causa, com o objetivo de aumentar arbitrariamente os lucros, sem acréscimo de produção, torna-se ilícita se for executada por empresa que detenha monopólio natural ou de fato” [Constituição Econômica – liberdade de iniciativa e de concorrência. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1990, p. 158]. Fábio Konder Comparato, aliás, vai pelo mesmo diapasão: “o simples monopólio natural ou de fato, isto é, não constituído artificialmente pela eliminação da concorrência, não é ilícito, e sim o abuso dessa posição dominante, com o aumento arbitrário dos lucros” [O poder de controle na sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 383]. Aumento arbitrário de lucros, sim, considerando que, se o lucro é fundamentado justamente no risco que corre o empresário ao afetar o seu patrimônio à produção de bens e serviços e se ele é decorrente, pura e simplesmente, da redução de dois custos que gravam a atividade rural como um todo no Brasil, amesquinhando, outrossim, a dignidade humana daquele que, só por se lhe submeter, não perde a condição de pessoa – tese, aliás, nada original nem revolucionária (logo, insuspeita), porquanto, como disse Eros Roberto Grau, analisando a teoria jurídica do liberalismo, “uma sociedade, qual a sociedade burguesa, fundada na autonomia da pessoa, havia de ser hostil aos privilégios e se caracterizar pela igualdade de todos perante a lei” [O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 126]. E isto dizemos recordando o que salienta Paulo Peretti Torelly: “ainda que não seja uma regra, alguns intérpretes oficiais da lei acabam sendo pessoas impermeáveis às preocupações políticas que orientam os interesses sociais, revelando visões de mundo e sociedade que reproduzem o senso comum legitimador de estigmas e preconceitos conservadores, por vezes subservientes aos interesses políticos e econômicos dominantes” [Democracia e Poder Judiciário. Porto Alegre: Escola Superior de Advocacia da OAB/RS, 1998, p. 23]. Concluindo as citações, resta meditar esta passagem de Mário Lúcio Quintão Soares: “o princípio de maioria em uma democracia social exige que todos os cidadãos tenham permissão para participar da criação da ordem jurídica, embora o seu conteúdo seja determinado pela vontade da maioria. Não é democrático, por ser contrário ao princípio da maioria, excluir qualquer minoria da criação da ordem jurídica, mesmo que a exclusão seja decidida pela maioria” [Teoria do Estado – o substrato clássico e os novos paradigmas como pré-compreensão para o Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 351].

Vê-se, portanto, sem muito esforço, a possibilidade de se visualizar a redução arbitrária do custo do homem como forma de abuso do poder econômico. Entretanto, é necessário advertir que não é porque constitui uso fora dos limites normais do direito que ele recairia sob a competência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Nem todo abuso do poder econômico recai sob a competência desta autarquia, circunscrita pela Lei 8.884, de 1994. E, por outro lado, é mister observar que, em se admitindo a existência do abuso do poder econômico, reforça-se a idéia de que este pode ter um uso legítimo e, portanto, não está proscrito, com o que a tarja com que, nos últimos tempos, se tem utilizado para descartar certos assuntos da discussão não teria pertinência ao tema que ora examinamos.

 

 

BIBLIOGRAFIA

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