A questão da validade jurídica dos atos negociais por meios eletrônicos.


Porjeanmattos- Postado em 17 outubro 2012

 

Autor: Demócrito Reinaldo Filho 
 

Um dos pressupostos de validade de todo e qualquer negócio jurídico é a forma com que o ato se reveste. Para alcançar um resultado juridicamente protegido, a declaração de vontade deve observar a forma prevista em lei, sempre que esta exigir forma especial. A forma do ato assume tal importância porque serve sempre à documentação do ato, facilitando sua prova, dando-lhe publicidade ou impedindo que a declaração de vontade venha a ser conspurcada.
Praticamente todas as exigências de forma presentes nas leis dos Estados nacionais estão relacionadas com conceitos decorrentes da documentação em papel. De fato, as exigências de forma "escrita", "assinada" e em "original" (exigidas para certos atos solenes) partem do pressuposto de que os atos jurídicos são registrados tendo o papel como suporte material. O nosso Código Civil, só para exemplificar, exige escritura pública lavrada em notas de tabelião e assinada pelas partes para a validade de certos atos (como p. ex., contratos constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis acima de certo valor - art. 134, II, par. 1º, f). A Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) complementa o sentido dessas exigências, ao estabelecer que toda "a escrituração será feita em livros encadernados" e impõe, desde logo, os modelos, dimensões e métodos de autenticação desses livros. Ou seja, existe todo um conjunto de exigências quanto à forma e documentação dos atos jurídicos, para que produzam validamente os seus jurídicos efeitos. O mesmo ocorre na maioria dos sistemas jurídicos alienígenas.
A pergunta que sobressai imediatamente após a compreensão dessa realidade é: como ficam essas exigências legais de forma e documentação dos atos jurídicos diante das novas modalidades contratuais por meios eletrônicos? Contratos formalizados por meio eletrônico e documentados em meio digital geram obrigações e deveres para as partes? A resposta parece bem clara: não, não tem valor jurídico contrato que não seja reproduzido num suporte material e tangível como o papel. A permanecer as regras atuais, somente os atos cujo registro possa ser documentado na forma de papel têm valor jurídico.
A conseqüência dessa constatação é que toda a funcionalidade permitida com avanço das tecnologias da informação nenhum benefício traz no campo jurídico, se não for alterada a legislação dos países. As partes contratantes podem se utilizar de meios eletrônicos de comunicação, como o eletronic mail (e-mail) ou o EDI (eletronic data interchange), nas discussões comerciais, mas não formarão contratos nem assumirão direitos e obrigações se não reduzi-los a um meio material (papel) e arquivá-los segundo os tradicionais métodos de documentação cartorária.
Isso é simplesmente inconcebível na nova sociedade virtual, onde sabemos que uma grande parcela das informações legalmente significantes são hoje transmitidas em forma de "paperless messages". O desenvolvimento das tecnologias de comunicação proporcionou paralelamente um rápido e inesperado aumento das transações comerciais a nível global. O uso dos meios eletrônicos de comunicação, utilizando como suporte a Internet ou qualquer outro tipo de rede informática, deu lugar a uma expansão comercial que não conhece fronteiras territoriais - o comércio eletrônico (eletronic commerce). Os sistemas jurídicos dos Estados nacionais não estavam preparados para lidar com esse fenômeno, na medida em que prescrevem regras de validade dos negócios jurídicos fundadas na concepção de documentos escritos e arquivados em papel, trazendo insegurança jurídica quanto à natureza e efeitos dos documentos eletrônicos. Essa situação representa hoje um dos maiores empecilhos ao desenvolvimento do comércio eletrônico. Por essa razão, os países precisam reformular suas leis para adaptá-las à nova realidade, provendo tratamento jurídico igualitário para o uso da documentação tradicional e da digital.
Antecipando-se na visão dessa necessidade, a UNCITRAL - United Nations Commission on International Trade Law (http://www.uncitral.org/) resolveu elaborar um modelo de lei sobre comércio eletrônico, a fim de ajudar os Estados nacionais a adaptar a legislação doméstica. E o que é melhor é que todo esse trabalho foi desenvolvido muito inteligentemente, sem a necessidade de se remover o arsenal de leis nacionais que tratam dos requisitos legais de forma e documentação dos atos jurídicos. Em outras palavras, os fundamentos do documento em papel escrito, assinado e original permanecem íntegros, devendo os documentos eletrônicos alcançarem as funções que esses conceitos procuram garantir.
Com efeito, um documento em papel tem diversas funções, tais como: garantir uma tangível evidência da existência da vontade contratual das partes; providenciar que possa ler lido por todos; possibilitar que permaneça inalterado ao longo do tempo e fornecer um permanente registro da transação, permitindo sua reprodução por meio da extração de cópias; permitir a autenticação por meio de uma assinatura; permitir o fácil arquivamento dos dados em forma tangível e facilitar o controle e auditagem para fins de contabilidade, tributação ou outros propósitos regulatórios. Como se vê, a exigência da apresentação de documento em papel na forma escrita, que pode ser combinada com outros requisitos como assinatura e apresentação na forma original, ou ainda a autenticação legal do ato, visam a emprestar maior confiabilidade e segurança jurídica ao documento.
Em respeito a todas essas funções que o documento em papel proporciona, a Lei modelo da Uncitral estabelece que os registros eletrônicos, para que recebam o mesmo nível de reconhecimento legal, devem satisfazer no mínimo o exato grau de segurança que os documentos em papel oferecem, o que deve ser alcançado através de uma série de recursos técnicos. Em suma, a Lei modelo estabelece uma série de requisitos para que um documento eletrônico ("non paper based document") alcance uma função equivalente ao documento escrito, assinado e original.
Inicia estabelecendo (no artigo 6, do Capítulo II) que, onde a lei (entenda-se lei nacional) prevê forma escrita para o ato, essa exigência considera-se satisfeita se a informação contida no documento eletrônico ("data message") é acessível para ulterior consulta. Trata-se do standard básico para que uma informação de dados gerada, enviada ou recebida por computador possa ter a mesma funcionalidade de um documento escrito. O termo "acessível" focaliza a necessidade indispensável de que a informação possa ser reproduzida e lida, do mesmo modo como ocorre com um documento escrito.
Já o artigo 7 (do mesmo Capítulo II) prescreve que onde a lei exige a assinatura de uma pessoa, esse requisito considera-se satisfeito se um método é utilizado para identificar a pessoa e indicar que ela aprovou a informação contida na mensagem de dados. Com esse tipo de exigência, a lei visa a preencher a mesma função de uma assinatura em documento tradicional: identificar a pessoa do assinante. Estabelece o princípio de que, dentro do ambiente eletrônico, a função básica de uma assinatura é suprida pela existência de método que identifique o remetente ("originator") e confirme sua aprovação quanto ao conteúdo da mensagem de dados.
Por fim, a questão da originalidade do documento constituiu um dos maiores entraves que a Lei Modelo da Uncitral tentou remover. Isso porque se "original" fosse definido como o meio material no qual a informação é fixada pela primeira vez, seria impossível se falar em mensagem de dados de computador original, desde que o destinatário na verdade sempre receberia uma cópia digital. Por essa razão, resolveu-se que a função equivalente à originalidade de um documento tradicional seria atingida pela garantia da permanência da integridade da informação eletrônica quando esta chega ao destinatário. É o que prevê o art. 8 da Lei modelo, ao estatuir que onde a lei nacional exige que a informação (documento) seja apresentada na sua forma original, essa exigência é satisfeita se existe garantia de sua integridade ao tempo em que ela foi gerada na sua forma final (como uma mensagem de dados) pela primeira vez.
Esses são, em síntese, os requisitos mínimos que devem ser atendidos para se alcançar o nível de certeza e de reconhecimento legal para os vários tipos de mensagens de dados usadas na prática do comércio eletrônico como substitutos para a documentação em papel. É claro que, no nosso país, ainda falta muito avanço da técnica para possibilitar a criação de um ambiente digital assim tão seguro. É preciso se ter sofisticados equipamentos de sistemas de comunicação e potentes softwares que viabilizem os procedimentos de autenticação digital.
Mas o futuro não está assim tão longe como se pode pensar. As instituições bancárias e empresas de cartões de crédito já estão se preparando para serem os cartórios da nova sociedade virtual. Por isso, é bom que as autoridades do nosso país comecem a trabalhar no sentido de adaptar a legislação pátria à realidade do comércio eletrônico, sob pena de aprofundarmos ainda mais o fosso que nos separa dos países do "primeiro mundo". Na Europa, Alemanha e França adotaram a lei-modelo da Uncitral. Nos Estados Unidos, os estados de Utah e da Califórnia já têm lei sobre a assinatura eletrônica. Até a Colômbia e a Argentina já adotaram uma lei para regulamentar o comércio eletrônico, seguindo também o modelo proposto pela Uncitral. O governo argentino regulamentou o uso da assinatura eletrônica para a administração pública, o que deve reduzir a burocracia estatal. O Brasil esteve afastado dessa discussão e só agora está retomando as negociações sobre comércio eletrônico nas Nações Unidas.

 

 

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