Querela nullitatis e coisa julgada inconstitucional no Direito brasileiro


Porwilliammoura- Postado em 12 novembro 2012

Autores: 
GANEM, Fabricio Faroni
ZETTEL, Bernardo

Por meio da querela nullitatis, a desconstituição da coisa julgada taxada de inconstitucional deve estar orientada pelos critérios estabelecidos para a ponderação entre valores constitucionais, bem como deve atentar para os efeitos da desconstituição sobre o sistema jurídico como um todo.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar os principais aspectos processuais envolvendo a chamada ação de querela nullitatis (ação de nulidade de sentença), e sua recepção e aplicação pela jurisprudência brasileira. A partir dessa análise, pretende-se buscar subsídios para compor uma estrutura teórica capaz de lidar com o problema da chamada “coisa julgada inconstitucional”. Para tanto, serão utilizados os postulados da teoria dos princípios jurídicos – sobretudo a partir de textos de Ronald Dworkin e Humberto Ávila – bem como elementos processuais referentes ao sistema de controle de constitucionalidade brasileiro.

Palavras-chave: Querela nullitatis; coisa julgada inconstitucional; sistema de controle de constitucionalidade; teoria dos princípios jurídicos. 

Sumário: Considerações Iniciais; I. Conceito, Natureza Jurídica e Objeto da Querela Nullitatis; II. O Sistema de Nulidades Processuais e o Instituto da Querela Nullitatis; III. A Ação Rescisória e a Querela Nullitatis; IV. Coisa Julgada Inconstitucional; IV. 1. O Sistema de Controle de Constitucionalidade Brasileiro e sua Repercussão sobre o Momento de Constituição da Coisa Julgada; IV. 2. Desconstituição da coisa julgada: a querela nullitatis como instrumento para afirmação de valores constitucionais; Considerações Finais; Bibliografia.


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal estabelece que a “lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, erigindo estes institutos à qualidade de direitos fundamentais. Com efeito, a coisa julgada é um direito fundamental relacionado à segurança jurídica e a previsibilidade característica do Estado de Direito. Sem o fenômeno da coisa julgada a jurisdição perde força, uma vez que impossibilitada a afirmação de forma definitiva do direito do cidadão[1]. Por outro lado, assim como qualquer direito fundamental, a coisa julgada não tem caráter absoluto. Alguns instrumentos permitem a sua relativização em casos excepcionais, tais como a ação rescisória, a impugnação de sentença inconstitucional (artigo 475-L, §1º e artigo 741, parágrafo único do CPC[2]) e a chamada querela nullitatis (ação de nulidade de sentença). O que autoriza a relativização desse direito fundamental é a gravidade de uma eventual nulidade processual, que poderia até mesmo macular a própria existência do devido processo legal no caso concreto. Em uma ponderação de princípios fundamentais, o ordenamento jurídico optou por afastar a coisa julgada em detrimento da segurança jurídica em determinadas situações. Cada um dos instrumentos mencionados abarca uma situação específica de impugnação. A ação de nulidade da sentença visa atacar a decisão judicial dotada de vícios transrescisórios[3], como a ausência de citação ou citação defeituosa do réu. Nesse contexto, o presente trabalho tem por objetivo analisar a possibilidade no ordenamento pátrio em se ajuizar a querela nullitatis para desconstituir a coisa julgada inconstitucional.


I. CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E OBJETO DA QUERELA NULLITATIS

Sobre a definição da querela nullitatis a doutrina processual brasileira ainda encontra campo fértil para divergências. Em linhas gerais, os seus principais característicos podem ser assim elencados: é o remédio adequado para impugnar os vícios de atividades (errores in procedendo) mais graves, relacionados com os pressupostos de existência do processo, que não são acobertados pela coisa julgada. 

A natureza jurídica da querela nullitatis é de ação autônoma de impugnação da decisão judicial. É uma ação de natureza constitutiva que busca invalidar uma decisão judicial. Para Teresa Arruda Alvim Wambier, é uma ação de natureza declaratória, que busca declarar a inexistência de uma sentença.

Conforme lição de Alexander dos Santos Macedo, a chamada querela nullitatis constitui gênero dos remédios utilizáveis para impugnação de sentença eivada de vício de nulidade ou falta de citação do réu. Comentando essa questão ainda com base nos dispositivos do CPC anteriores à reforma promovida pela Lei Federal n. 11.232 de 2005, as espécies seriam:

“a) os embargos do executado do art. 741, inciso I, do CPC, nos quais a querela está inserta; e b) a ação declaratória da nulidade do processo, ou seja, a actio nullitatis, que consubstancia propriamente a querela nullitatis. Na hipótese mencionada por Pontes de Miranda e acima referida, entendemos que a exceptio nullitatis, de que se fala, há de ser arguida, não como defesa apenas, mas sob a forma de actio nullitatis incidental. Por seu pedido de declaração incidente formulada pelo autor, ela assumirá a feição de ação conexa.” [4][5]

Nesse sentido, caso se entenda correta a posição assumida por Pontes de Miranda, a querella nullitatis deverá ser compreendida como um instituto processual destinado a impugnar a formação da coisa julgada em uma relação processual que se desenvolveu de forma irregular, sem a citação do réu para apresentação de defesa.[6] Nesse sentido, em uma situação em que o réu está sendo executado com base em sentença condenatória proferida em processo no qual não foi citado, poderá impugnar a execução com base no art. 475-L, I do CPC. Essa impugnação exercerá, então, o papel da querela nullitatis, e poderá desconstituir a decisão ainda durante o prazo da ação rescisória:

“Mesmo se ainda estiver em curso o biênio relativo à ação rescisória, entendemos que esta deixa de ser necessária diante do ajuizamento da ação de embargos do executado; esta ação propicia ao devedor o mesmo resultado prático e algo mais. Propicia o mesmo resultado, porque faz cair a relação processual a partir da citação, que terá de ser renovada, e com ela, obviamente, a sentença.” [7]

Com relação ao seu objeto, a doutrina diverge com relação às hipóteses de cabimento da chamada querela nullitatis, ou ação declaratória de inexistência ou de nulidade do processo.

Alguns autores entendem ser a querela nullitatis uma modalidade de ação declaratória, voltada precisamente para a impugnação de sentenças inexistentes. Nesse sentido, Humberto Theodoro Jr. afirma sua tradicional posição no sentido de que “cabe, então, a ação comum declaratória de nulidade, se o caso for de sentença nula ipso iure ou inexistente, e cabe ação rescisória se a sentença válida como ato processual tiver incorrido em uma das hipóteses que a tornam desconstituível”[8].  

Para Teresa Arruda Wambier, as sentenças inexistentes são fruto de processos inexistentes, e não podem transitar em julgado, razão pela qual contra elas não seria cabível a ação rescisória. Para a autora, as hipóteses de cabimento da ação de nulidade ou de inexistência abrangem[9]: (a) sentenças com ausência de decisório; (b) sentenças proferidas em processo instaurado com a falta de uma das condições da ação; (c) sentenças proferidas em processos aos quais tenha faltado pressuposto processual de existência: citação, petição inicial, jurisdição e capacidade postulatória; (d) sentenças em processo formado com citação nula aliada à revelia; (e) sentença em que não tenha sido citado um litisconsórcio necessário; (f) sentença que não contenha assinatura do juiz ou não esteja escrita.

Para outros autores, como Roque Komatsu[10] e Vicente Greco Filho[11], as sentenças tidas por inexistentes não são convalidadas pela coisa julgada, e, com isso, não precisam ser impugnadas via ação de nulidade específica. Para esses autores, o âmbito de incidência da querela nullitatis se restringe aos casos de sentença proferida por quem não é magistrado, quando há falta de procuração do advogado e, em regra, quando não houve citação.

Em um dos trabalhos pioneiros sobre o tema na literatura brasileira, Adroaldo Fabrício Furtado[12] restringe ainda mais o cabimento da querela nullitatis. Para o autor, somente serão impugnadas por essa ação aquelas sentenças em cujo processo não tenha havido citação da parte contrária ou em que essa seja nula. Esse também o entendimento de Alexander dos Santos Macedo, conforme acima exposto, e de Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha[13] [14].


II. O SISTEMA DE NULIDADES PROCESSUAIS E O INSTITUTO DA QUERELA NULLITATIS

O estudo sobre a função da chamada querela nullitatis no sistema processual civil brasileiro perpassa pela compreensão das nulidades processuais[15]. Duas modalidades de vícios podem ocorrer no processo civil: os vícios in iudicando e os vícios in procedendo. Os primeiros estão relacionados com o conteúdo da decisão judicial, ou seja, decorrem de um julgamento em que houve a má apreciação da prova ou da aplicação equivocada da lei ao caso concreto. Os vícios ou errores in procedendo, por sua vez, são identificados por uma falha no procedimento de julgamento. Essa segunda categoria é também conhecida sob a denominação de vícios de atividade, por estar relacionada com a forma ou o modo como se opera um julgamento.

A ação de querela nullitatis está voltada para a correção de vícios de atividade. Estes podem ser agrupados conforme a intensidade com que geram seus efeitos sobre a relação processual. Segundo Alexander Macedo, esses vícios estão divididos em quatro grupos[16]:

(a) Os vícios de peso 1: aqueles caracterizados pela nulidade relativa, e se tornam sanados pela simples ocorrência da preclusão temporal, como dispõe o artigo 245 c/c os artigos 183 e 473, todos do CPC. Caso não tenham sido alegados tempestivamente pela parte interessada, não podem mais ser rediscutidos, quer no mesmo processo, ou em qualquer outro. São exemplos a incompetência relativa, que deve ser arguida pela parte, em apartado, no prazo de quinze dias (artigos 112 e 305 do CPC) ; assim também o compromisso arbitral, que será renunciado na medida em que o autor ajuíza a ação e o réu, deixa de arguir a questão em preliminar de contestação.

(b) Os vícios de peso 2: são mais graves e subsistem ao efeito sanatório da simples preclusão temporal, mas não resistem à eficácia preclusiva da coisa julgada material, caso não sejam arguidos em recurso. Exemplo dessa modalidade de vício consiste na omissão de ponto sobre que deveria se manifestar a sentença (omissão de decisão sobre um dos capítulos do pedido), que deve ser alegada em embargos de declaração ou apelação.

(c) Vícios de peso 3: são aqueles vícios de extrema gravidade que podem ser conhecidos de ofício pelo juiz e subsistem ao efeito sanatório da coisa julgada, podendo servir como causa de pedir da ação rescisória, como faculta o artigo 485 do CPC. Estão nesta classe, por exemplo, a incompetência absoluta (inciso II), a ofensa à coisa julgada (inciso IV), a violação de literal disposição de lei processual. São vícios que podem e devem ser reconhecidos de ofício pelo juiz; em relação a eles não se aplica a preclusão pro iudicato[17], podendo ser alegados em recurso ou mesmo em ação rescisória.

(d) Vícios de peso 4: podem ser impugnados mesmo após a perda do prazo da ação rescisória. José Carlos Barbosa Moreira agrupa-os na classe dos vícios que, dispensando o exercício da rescisória, são alegáveis como óbices à execução, através de embargos. Encontra-se nessa classe aquele que é considerado o mais grave vício de atividade: a falta ou nulidade de citação do réu, no processo de conhecimento, se a ação lhe correu à revelia.

A ausência ou a irregularidade na citação do réu é o mais grave erro de atividade que pode acometer a relação processual. No CPC, em relação ao processo de conhecimento, estatui o artigo 214 que “para a validade do processo é indispensável a citação inicial do réu”; no artigo 485, que “a sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: V - violar literal disposição de lei”; no artigo 475-L que “a impugnação somente versará sobre: I – falta ou nulidade de citação, se o processo correu à revelia”; e no artigo 741, que “na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre: I - falta ou nulidade da citação, se o processo correu à revelia”. Caso o vício ocorra em execução, o CPC determina que ela será nula (artigo 618, II).

Alguns autores consideram que a sentença proferida em processo de cognição no qual tenha ocorrido o vício na citação é inexistente. Essa é a posição de Liebman, Moniz de Aragão e Vicente Greco Filho. Dessa posição diverge Cândido Rangel Dinamarco, para quem a citação não pode ser vista como um pressuposto de existência do processo, porquanto no momento em que é realizada já existe processo. Segundo esse autor, a citação seria apenas condição de eficácia do processo em relação ao réu, e requisito de validade dos atos praticados no processo que lhe seguirem.

A questão que deve ser colocada, portanto, diz respeito ao réu que não foi citado para o processo de conhecimento, que correu à sua revelia, e que somente veio a tomar conhecimento do processo de execução contra si após mais de dois anos do trânsito em julgado da sentença. Moniz de Aragão coloca o problema da seguinte maneira:

“Suponha-se, no entanto, que o autor, maliciosamente, usa de um ardil para evitar a citação do réu e com isso, por não ter sido feita ou ser nula, obtenha, ante a revelia, sentença favorável. Contra esta também cabe, é natural, ação rescisória, para ser decretada a nulidade da sentença, como a de todo o processo. Admita-se que o vencido, todavia, não a proponha e, decorridos dois anos, a autor execute a sentença; pois bem, nessa ocasião, em embargos (art. 741, I), opor-lhe-á o vencido – independentemente de se haver escoado o prazo para a ação rescisória – que a sentença e bem assim o processo todo, é juridicamente inexistente, podendo o juiz, se acolher a alegação, decretar-lhe a invalidade.” [18]

Na situação cogitada, o réu já não teria qualquer recurso, bem como já lhe teria escoado o prazo da rescisória e, caso também não tenha sido citado em processo de execução, não poderia oferecer embargos. A solução para tais casos está somente no manejo da querela nullitatis[19][20]


III. A AÇÃO RESCISÓRIA E A QUERELA NULLITATIS

Para uma melhor compreensão acerca do cabimento da ação rescisória e da querela nullitatis convém, antes, anotar os traços que as diferenciam: (i) a ação rescisória possui um rol taxativo de causas de pedir, mais amplo, que está exposto no artigo 485, e deve ser proposta perante o tribunal; (ii) a ação rescisória permite a rescisão da sentença por motivos relacionados à sua validade e à sua justiça, enquanto a querela nullitatis restringe-se à invalidação da sentença; (iii) a ação rescisória deve ser interposta dentro do prazo de dois anos após o trânsito em julgado da decisão, conforme o art. 495 do CPC. A querela nullitatis, por sua vez, não possui prazo predeterminado para o seu ajuizamento. Com relação ao segundo ponto de diferenciação, a doutrina estabelece uma divisão entre os atos processuais inexistentes e os inválidos[21]. Para Pontes de Miranda, as decisões inexistentes são válidas, mas atacáveis por ação rescisória, enquanto as nulas são aquelas que, embora existentes, não valem e são atacáveis a qualquer tempo.

Parte da doutrina, orientada pelos trabalhos de José Carlos Barbosa Moreira, entende que a ação rescisória é cabível contra decisão que violou literal disposição de lei processual, com base no artigo 485, V, do CPC. Nesse sentido, em hipótese de processo no qual o réu não tenha sido citado para oferecer contestação, poderia este desconstituir a decisão rescindenda dentro do prazo bienal, mas o tribunal competente para a rescisória não poderá passar ao iudicium rescissorium:

“Após o julgamento de procedência no iudicium rescindens, que produz a invalidação da sentença, a regra é que, reaberto o litígio por esta julgado, caiba desde logo ao próprio tribunal emitir sobre ele novo pronunciamento, que de ordinário poderá favorecer ou não o autor vitorioso no iudicium rescindens. Em certas hipóteses, porém, não é assim que se passam as coisas. Com efeito, pode acontecer: a) que a rescisão da sentença, por si só, esgote toda a atividade jurisdicional concebível - por exemplo, se o pedido se fundou em ofensa à coisa julgada de decisão anterior sobre a mesma lide... b) que, embora insuficiente a rescisão, o remédio adequado à correção do que erradamente se fizera não consista na imediata reapreciação da causa pelo próprio tribunal que rescinde a sentença, tornando-se necessária a remessa a outro órgão - v. g., quando tiver ocorrido incompetência absoluta (art. 485, nº II, fine), hipótese em que a cognição deve ser devolvida ao juízo competente...; ou, ainda, quando a invalidade da sentença houver sido mera consequência de vício que afetara o processo anterior, de tal sorte que este precisará ser refeito, na medida em que aquele o haja comprometido (exemplos: a citação fora nula, sem convalidação; deixara de intimar-se o Ministério Público, apesar de obrigatória a sua intervenção).” [22]

Ultrapassada a análise sobre a natureza jurídica da querela nullitatis, podemos verificar que sua hipótese de cabimento mais aceita pela doutrina brasileira consiste na desconstituição da coisa julgada nas causas em que não houve citação do réu ou essa se deu de forma defeituosa. Nessa hipótese, a ação de nulidade de sentença se mostra como um instrumento essencial para assegurar garantias fundamentais do processo, como o contraditório, a ampla defesa e a isonomia entre as partes. Isso porque, a ausência da participação do réu em razão de defeitos no procedimento citatório leva à conclusão de que a relação processual não foi integralizada. Nada mais natural, que a decisão definitiva sobre essas causas possam ser revistas em sede de querela, com o objetivo de garantir a plena participação do réu – parte até então ausente – no curso do procedimento. O exame da querela nullitatis não pode se restringir, contudo, a essa única hipótese de cabimento. Precisamos, agora, avançar sobre a análise de um dos aspectos mais controvertidos na doutrina acerca do tema: a possibilidade de desconstituição da chamada coisa julgada inconstitucional.