A prova pericial como instrumento destinado à anulação de questão de concurso público


PorJeison- Postado em 18 fevereiro 2013

Autores: 
MENEZES, Raphael Vianna de.

 

  A interferência do Poder Judiciário em questões de concursos públicos é medida cada vez mais corriqueira no âmbito dos pretórios pátrios, quando os critérios de correção adotados pelo examinador caminham na contramão da legislação vigente ou das normas editalícias eleitas para reger o certame.

 

            Impende salientar que não se desconhece o fato de que o Poder Judiciário não deve se imiscuir na função afeta ao examinador de provas de concursos, vez que, em assim o fazendo, adentraria no denominado mérito administrativo, o que, como cediço, culminaria por violar o princípio da separação dos poderes insculpido no art. 2º da Carta Magna de 1988.

 

            No entanto, afigura-se possível, com espeque nos princípios da legalidade, do devido processo legal e da inafastabilidade da jurisdição, que o Poder Judiciário anule quesitos mal formulados pela banca examinadora. Em tais situações, o controle judiciário seria estritamente legal.

 

            Nessa esteira, é a jurisprudência do STJ:

 

ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. IMPUGNAÇÃO A QUESTÃO OBJETIVA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO CONFIGURAÇÃO. HOMOLOGAÇÃO DO RESULTADO FINAL DO CERTAME. PERDA DO OBJETO. NÃO OCORRÊNCIA. CONTROLE JURISDICIONAL. ANULAÇÃO DE QUESTÃO OBJETIVA. POSSIBILIDADE NA HIPÓTESE DE VÍCIO EVIDENTE. 3. Na hipótese de flagrante ilegalidade de questão objetiva de prova de concurso público ou ausência de observância às regras previstas no edital, tem-se admitido sua anulação pelo Judiciário por ofensa ao princípio da legalidade. Precedentes do STJ. 4. Tendo a Corte de origem consignado pela anulação da matéria por comportar "erro manifesto e invencível", prejudicando assim o candidato, rever tal entendimento implica reexame do contexto fático-probatório dos autos, o que é vedado em Recurso Especial ante o disposto na Súmula 7/STJ. 5. Agravo Regimental não provido. (AgRg no AREsp 165.843/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/08/2012, DJe 22/08/2012)

 

            Em que pese a postura retrógrada ainda remanescente em alguns poucos magistrados, hodiernamente é assente na jurisprudência dominante a possibilidade de atuação do Judiciário visando a anulação de quesito de concurso público, à vista de ilegalidade perpetrada pela banca examinadora na confecção da prova, seja objetiva ou discursiva.

 

            O vício presente na questão atacada pelo acionante, à luz do posicionamento do STJ, deve ser perceptível de plano, ou seja, manifesto a ponto de permitir a pronta intervenção do julgador, verbis:

 

ADMINISTRATIVO – RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA – CONCURSO PÚBLICO – CONTROLE JURISDICIONAL – ANULAÇÃO DE QUESTÃO OBJETIVA – POSSIBILIDADE – LIMITE – VÍCIO EVIDENTE – PRECEDENTES – PREVISÃO DA MATÉRIA NO EDITAL DO CERTAME. 1. É possível a anulação judicial de questão objetiva de concurso público, em caráter excepcional, quando o vício que a macula se manifesta de forma evidente e insofismável, ou seja, quando se apresente primo ictu oculi. Precedentes. 2. Recurso ordinário não provido. (RMS 28.204/MG, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/02/2009, DJe 18/02/2009)

 

            A título ilustrativo, poder-se-ia mencionar a elaboração de questões com equívocos gritantes (vislumbrados numa primeira leitura pelo magistrado), bem como aquelas em franca dissonância com as regras insertas no edital do certame.

 

            Mas como ficariam os quesitos que escapam às regras comuns de experiência da autoridade judiciária? Como anular questões herméticas de interpretação de textos presentes em uma prova de português? Como demonstrar a existência de vícios em provas de informática, língua estrangeira, matemática ou raciocínio lógico?

 

            Com efeito, a resposta a tais indagações passa ao largo da jurisprudência supracitada, visto que não são factíveis “ictu oculi”.

 

            A nosso sentir, apenas prova pericial (prevista no art. 420 e seguintes do Digesto Processual Civil) teria o condão de dirimir a controvérsia oriunda de questões viciadas por erros não reconhecíveis de plano.

 

            De fato, à míngua de conhecimento técnico do juiz, é obrigatória a produção da prova pericial, conforme se depreende do art. 145 do CPC, não sendo crível admitir o julgamento improcedente do pleito ao argumento de que se mostra impossível aferir, de chofre, a ilegalidade ventilada, sob pena de hialina negativa de prestação jurisdicional, o que, em última análise, malferiria o devido processo legal.

 

            Deveras, é difícil (senão impossível) imaginar um magistrado que anularia determinada questão complexa de matemática, informática, língua estrangeira ou raciocínio lógico sem o auxílio de expert de sua confiança.

 

            Demais disso, a avaliação técnica aperfeiçoada por perito nomeado pelo Juízo, à evidência, traria segurança ao julgador no momento do julgamento do feito, porquanto ao experto é auxiliar imparcial da Justiça, não possuindo, assim, interesse na causa.

 

            Despiciendo frisar que, malgrado não esteja adstrito ao laudo pericial (art. 436 do Código de Ritos), a conclusão exarada pelo perito judicial, na prática, auxilia sobremodo o juiz na formação de seu livre convencimento.

 

            Noutra seara, insta asseverar que não há que se fazer distinção entre ilegalidade teratológica (de fácil percepção) e ilegalidade posteriormente constatada através da perícia judicial. Em ambos os casos, a ilegalidade foi praticada pelo examinador, sendo contrário ao espírito do direito tratar de forma desigual o ato ilícito. Afinal, o ato não deixa de ser ilegal pela simples necessidade de dilação probatória.

 

            Nessa toada, a prova pericial vem sendo amplamente admitida na esfera jurisdicional. Confiram-se os arestos a seguir:

 

ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CARGO DE AUDITOR-FISCAL DA RECEITA FEDERAL. ANULAÇÃO DE QUESTÃO DE PROVA OBJETIVA. EXAME PERICIAL. CONSTATAÇÃO DE INCONGRUÊNCIAS NO QUESITO. INEXISTÊNCIA DE RESPOSTA CORRETA. INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO: POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. 1. A questão mal formulada, não apresentando resposta correta, constatada em exame pericial, deve ser anulada pelo Poder Judiciário, em defesa dos princípios da legalidade e da razoabilidade, de modo a afastar o prejuízo causado ao candidato. Precedentes. 2. Na hipótese, a perícia apontou a existência de vícios, na elaboração do quesito impugnado, o qual não indicava resultado preciso, o que efetivamente deve ocorrer quando o objetivo do examinador é aferir a habilidade do candidato em lidar com cálculos matemáticos. 3. Anulada a questão, os pontos correspondentes devem ser conferidos à recorrente, para que, na hipótese de aprovação, possa ela participar do próximo Curso de Formação Profissional a ser realizado. 4. Sentença reformada. 5. Apelação parcialmente provida. (AC 200635000022984, DESEMBARGADOR FEDERAL DANIEL PAES RIBEIRO, TRF1 - SEXTA TURMA, e-DJF1 DATA:25/04/2012 PAGINA:105.)

 

CONCURSO PÚBLICO. AUDITOR FISCAL DO TRABALHO - 2009. PROVA OBJETIVA. RACIOCÍNIO LÓGICO QUANTITATIVO. ANULAÇÃO DE QUESTÕES. PROVA PERICIAL FAVORÁVEL. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. (…) 3. Contatado, por meio de perícia oficial, que as alternativas "c" e "e" da questão nº 02 da prova de Raciocínio Lógico e Quantitativo estão corretas, enquanto a Banca apontou como única correta a letra "c"; e que a questão de nº 08 não há resultado 100% correto, é de se determinar a anulação de ambas as questões, viabilizando a alteração da nota final da autora para 213 pontos, para que preenchendo o mínimo de pontos referente a prova de Raciocínio Lógico e Quantitativo, possa ela participar da segunda fase do concurso.4. Apelação e remessa oficial improvidas. (PROCESSO: 00053283020104058100, APELREEX20937/CE, RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO WILDO, Segunda Turma, JULGAMENTO: 06/03/2012, PUBLICAÇÃO: DJE 15/03/2012 - Página 505)

 

            Considerando que o ônus da prova do fato constitutivo, de acordo com a teoria clássica adotada pelo CPC, incumbe ao demandante (art. 333, I), é recomendável, na hipótese vertente, que sejam acostadas, já com a petição  inicial, as provas que indiquem o equívoco material ocorrido na assertiva hostilizada, sem prejuízo do protesto pela prova pericial.

 

            No particular, curial ressaltar que o mandado de segurança não seria a via adequada para tanto, na medida em que, no writ, a prova da violação a direito líquido e certo deve ser pré-constituída, não comportando, destarte, dilação probatória.

 

            Orientando-se pelo mesmo norte, é iterativa a jurisprudência do STJ:

 

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. ANALISTA JUDICIÁRIO DO TJDFT (ÁREA JUDICIÁRIA, ESPECIALIDADE EXECUÇÃO DE MANDADOS). PROVA OBJETIVA. ANULAÇÃO DE QUESTÃO. CORREÇÃO E MÉRITO DAS FORMULAÇÕES.  COMPETÊNCIA DA BANCA EXAMINADORA. INADMISSIBILIDADE DE REVISÃO JUDICIAL. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. CORRELAÇÃO TEMÁTICA COM O CONTEÚDO PROGRAMÁTICO DO EDITAL. POSSIBILIDADE DE EXAME PELO PODER JUDICIÁRIO. INEXISTÊNCIA DE INCONSISTÊNCIA. (…) 4. O Poder Judiciário pode examinar se a questão objetiva em concurso público foi elaborada de acordo com o conteúdo programático previsto no edital do certame, pois tal proceder constitui aspecto relacionado ao princípio da legalidade, e não ao mérito administrativo. Em se tratando de mandado de segurança, a prova deve vir pré-constituída, sendo vedada a dilação probatória. (AgRg no RMS 29.039/DF, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 25/09/2012, DJe 02/10/2012)

 

            No mesmo sentido, o TRF da 2ª região:

 

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. ANULAÇÃO DE QUESTÃO. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. (...) não merece reforma a sentença ao consignar que, mostrando-se necessária a dilação probatória para a apuração da alegação de haver mais de uma resposta correta para a questão em tela, com a realização de perícia por profissional com qualificação específica na matéria, visto não ser possível se aferir, de pronto, a existência da suposta irregularidade, inadequada é a via eleita, tendo em vista a ausência de prova pré-constituída quanto à existência do direito líquido e certo dos impetrantes. 4. Frise-se que o parecer técnico particular juntado pelos impetrantes não tem o condão de comprovar suas alegações, porquanto formulado em razão de questionamento de apenas uma das partes litigantes, inexistindo quanto ao seu subscritor presunção de imparcialidade, como ocorre em relação ao perito oficial. 5. Assim, em razão da ausência de comprovação prévia do direito líquido e certo a ser assegurado por meio da via escolhida, o recurso revela-se manifestamente improcedente, restando prejudicada a questão referente à composição do polo passivo da presente ação. 6. Recurso conhecido e desprovido. (AC 200951010114386, Desembargador Federal JOSE ANTONIO LISBOA NEIVA, TRF2 - SÉTIMA TURMA ESPECIALIZADA, E-DJF2R - Data::24/05/2011 - Página::321/322.)

 

            Não se pode olvidar, outrossim, que é bastante usual a impetração da ação mandamental pelos advogados com o fito de anular questão de concurso público. As vantagens do manejo do mandamus seriam, em tese, a tramitação mais célere e a ausência de condenação do vencido nos honorários advocatícios (art. 25 da lei 12.016/2009).

 

            Sucede que, por vezes, pairam dúvidas acerca da necessidade ou não de dilação probatória quando da apreciação do caso concreto. Em casos deste jaez, o ajuizamento da ação ordinária com pedido de tutela antecipada ou mesmo ação cautelar preparatória com pedido liminar evitaria maiores delongas acerca do cabimento ou não da ação mandamental, evitando, ademais, eventual perecimento de direito.

 

            É forçoso concluir que, em se tratando de demanda concernente à anulação de questão de concurso público que envolva conhecimento técnico ou científico, é imprescindível o pedido de prova pericial por meio da ação competente para tanto, sendo incabível o uso do mandado de segurança, via que não comporta dilação probatória. A par disso, o deferimento da prova pericial pelo magistrado é medida que se impõe, encontrando eco nos princípios da legalidade, do devido processo legal e do acesso à justiça, afigurando-se como importante meio de concretização de direitos.

 

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