Propriedade intelectual digital e o cenceito de uso razoável


Porjeanmattos- Postado em 17 outubro 2012

 

Um tanto insana a guerra contra a pirataria de conteúdo digital. Fácil de copiar, e igualmente fácil de repassar, o conteúdo digital está alimentando uma disputa de gato e rato que parece não ter fim. E tudo isso numa época em que não só a pirataria na internet como também a pirataria “offline” (i.e., na rua, no mundo real) também campeia. Numa audiência no congresso americano realizado na última segunda-feira (06/04/09), legisladores e executivos da indústria de conteúdo (gravadoras, estúdios cinematográficos, etc.) quase em uníssono descreveram uma situação que se deteriora a olhos vistos, e na qual US$20 bilhões anuais em filmes, músicas e outros produtos do entretenimento protegidos por direitos autorais estão sendo perdidos para as redes mundiais de pirataria que são toleradas ou encorajadas por países como China, Rússia, India e, surpreendentemente, Canadá. (No Canadá está em vigor uma norma que diz que grandes carregamentos de filmes e músicas ilegais são permitidos passar daquele país para os EUA.)
Richard Cook, o chairman da Walt Disney Studios, descreveu uma intrincada seqüência de eventos em que seu sucesso de animação “Wall-E” foi duplicado por uma camcorder num cinema em Kiev (Ucrânia) em Julho passado, e em menos de um mês a cópia já havia sido reproduzida para venda ilegal em mais de uma dúzia de países. A “International Federation of Phonographic Industry”, um grupo baseado em Londres que representa a indústria global de música, declarou recentemente que 95% de todas as músicas baixadas na internet em 2008 foram através de downloads ilegais. Em escala global, downloads ilegais de música custam US$12,8 bilhões em vendas, conforme o grupo.
Até mesmo o desenvolvimento de ferramentas para evitar que um internauta tenha seu endereço de internet rastreado tem sido motivado por essa guerra cibernética. A ferramenta denominada IPREDator é um novo serviço de rede privada virtual (VPN) criada por aqueles que estão por trás do serviço “The Pirate Bay”: com ela é possível permanecer anônimo na rede. Seu tráfego de internet será criptografado e protegido – até mais que uma VPN típica oferece. Dessa forma, a polícia não vai poder apanhar um internauta que baixe conteúdo digital de forma ilegal. O pior é que, como se pode imaginar, uma ferramenta como essa pode ser usada para outros fins bem mais perigosos à sociedade.
Conforme relata Sarah Perez em um artigo no portal ReadWriteWeb.com (“IPREDator, the Terrifyingly Awesome Privacy Tool Prepares to Launch”, 07/04/09), há anos o portal “The Pirate Bay” tem sido um dos principais eixos de compartilhamento ilegal de arquivos protegidos por direitos autorais, para a tristeza e o descontentamento das gravadoras, estúdios de cinema, e outros produtores de conteúdo que vêem o portal como uma das razões pelas quais seus negócios não estão dando dinheiro como costumavam dar. Independentemente de ser ou não ser verdade, é mais provável que as indústrias de conteúdo não tenham conseguido se adaptar de modo suficientemente rápido à entrada em cena da internet, uma força global que não deixa ilesos os modelos tradicionais de negócio e, em alguns casos, simplesmente os leva à destruição completa. Uma série de razões fazem da “The Pirate Bay” tão popular. O portal não apenas é fácil de usar, mas também provê conteúdo digital para se baixar quando não é possível localizá-lo legalmente. 
Por exemplo, no intervalo entre o momento em que um filme deixa de ser exibido nos cinemas e o seu lançamento em DVD, não há como assistir ao filme. E aí entra a “The Pirate Bay”. Até quando apareceram portais como o iTunes, os proprietários de conteúdo digital ainda criavam dificuldade de acesso a seus produtos, tornando o “The Pirate Bay” o lugar onde encontrar o que não se poderia acessar através dos canais “legítimos”. Para o cidadão americano, hoje esse ainda é o caso, pois alguns shows não estão disponíveis no portal iTunes. Além do mais, pasme-se, às vezes o conteúdo pirateado é até de melhor qualidade que o conteúdo legitimamente baixado. Fundado em 2003, o “The Pirate Bay” rapidamente se tornou “o portal” onde ir para encontrar qualquer arquivo na rede, muitos dos quais são protegidos por direitos autorais. Ainda assim, os operadores do portal afirmam que o que eles estão fazendo é perfeitamente legal.
Mesmo sendo réu num processo por violação de direitos autorais na Suécia (país que abriga seus servidores), cujo veredito final é esperado em 17 de Abril próximo, um porta-voz do Pirate Bay, Peter Sunde Kolmisoppi, declarou que 80% dos “downloads” do portal são conteúdos que podem ser compartilhados legalmente online. O argumento para a defesa da legalidade do que faz o “The Pirate Bay” é parecido com uma velha expressão: “as armas não matam pessoas, são pessoas que matam outras pessoas”. Somente porque o “The Pirate Bay” provê a infraestrutura que aponta para onde os arquivos estão armazenados, seria o portal o culpado quando é utilizado para apontar para conteúdo ilegal?
A pirataria custa à indústria do filme e da músca na França pelo menos 1 bilhão de euros, o equivalente a um ano de vendas perdidas, conforme dados da indústria francesa. Em reação a pressões dessa indústria, o parlamento francês esteve prestes a aprovar uma lei para a criação do primeiro sistema de vigilância contra a pirataria na internet: provedores de serviço de internet seriam forçados a desconectar clientes acusados de fazer download ilegal de conteúdo digital. O projeto de lei, chamado de “Création et Internet” e conhecido informalmente como a diretiva dos “três golpes”, obteve algumas vitórias preliminares no parlamento e tinha tudo para ser aprovada em ambas as casas, pois tinha o apoio do partido do Presidente Nicolas Sarkozy.
Porém nessa 5ª feira (09/04/09), o projeto foi rejeitado por 21-15 num “show de mãos”, conforme matéria de Erif Pfanner no portal do NY Times (“France Rejects Plan to Curb Internet Piracy”), significando que a maioria dos membros da casa legislativa de 577-membros decidiram não comparecer— uma indicação do quão impopular era a proposta entre os eleitores franceses, por quem o compartilhamento não-autorizado de arquivos de músicas e filmes é largamente utilizado. “É uma vitória para os cidadãos e as liberdades civis sobre os interesses corporativos,” disse Jeremie Zimmermann, diretor do “La Quadrature du Net”, um grupo de advocacia da internet em Paris.
Caso aprovada, a lei francesa daria poderes às associações de gravadoras e estúdios para contratar empresas para analisar os registros de “download” de usuários suspeitos com vistas à detecção de pirataria, e daí reportar violações à nova agência que supervisiona a proteção ao direito autoral. A agência estaria autorizada a rastrear “downloads” ilegais até os indivíduos utilizando o endereço IP (“Internet Protocol”, identificador associado ao usuário pelo provedor de serviço). Na primeira violação a agência enviaria um e-mail de advertência. Caso o usuário fizesse um novo download ilegal dentro de três meses, uma segunda advertência seria enviada por correio certificado (com “aviso de recebimento”). No caso de uma terceira violação dentro de um ano, o provedor de serviço teria que interromper o serviço. 
Um dos diversos aspectos controvertidos do projeto dessa “lei dos três golpes” é por o ônus da prova de inocência no acusado, que somente seria capaz de protestar após ter sido desconectado pelo provedor. Por essa e por outras, ativistas de direitos civis na internet chamaram a atenção para o fato de que não havia provisões adequadas para se contestar uma ação e que a lei daria aos representantes da indústria o poder de vigiar a internet. Outros questionaram se a lei penalizaria injustamente aqueles cujas contas de acesso sem fio são utilizadas ilegalmente por terceiros. Ao que parece, o projeto de lei de alguma forma se antecipava a esse caso tornando uma infração para cidadãos que se descuidem em “tornar segura” sua rede sem fio por meio de tecnologia de filtragem aprovada. 
Apesar de rejeitado, o projeto, pelo menos em suas linhas gerais, não está necessariamente morto. Um assessor do Presidente Sarkozy, Roger Karoutchi, disse aos repórteres que uma versão modificada do projeto estaria sendo proposta dentro de algumas semanas. E a França não está sozinha nisso. Porém, é fato que enquanto sistemas de vigilância contra a pirataria têm sido discutidos em diversos países, o projeto francês tentou ir mais longe que qualquer outro país. Por exempo, em 01/04/09 uma lei na Suécia chamada de “Diretiva para a Garantia dos Direitos de Propriedade Intelectual” entrou em vigor, permitindo que grupos representantes da indústria processem mais facilmente a pirataria do direito autoral. Porém nada como a proposta francesa.
O conceito de direito autoral que prevalece em meio a essa guerra cibernética ainda é o mesmo desde que Thomas Edison inventou o gramofone e o kinetoscópio. Contudo, como diz Lawrence Lessig em seu novo livro (“Remix: Making Art and Culture Thrive in the Hybrid Economy”, Penguin Press, Outubro 2008), se a lei de propriedade intelectual não for reformada, toda uma geração será criminalizada: ironicamente, a quebra das leis do direito autoral pela juventude por meio de compartilhamento de arquivos, ao mesmo tempo em que a criminaliza, a ajuda a se tornar mais criativa e colaborativa. O fato concreto é que a juventude não parece disposta a desistir de baixar música, filme, etc.: trata-se de uma geração que nasceu e cresceu numa cultura em que a remixagem é a “arte essencial”. 
As propostas de Lessig para reforma do direito autoral são convincentes, pois convocam a repensar, e não abandonar, o conceito de propriedade intelectual em si. O argumento é baseado no fato de que a economia “híbrida”, que combina a “comercial” (por exemplo, Amazon.com) e a “compartilhadora” (por exemplo, Wikipedia.org), pode criar valores para ambos os lados. Lessig aponta para vários exemplos interessantes de como e por que a tecnologia digital e a lei do direito autoral podem promover a arte profissional e a amadora. Portanto, reformar a lei do direito autoral é a única maneira de salvá-la: "Nós, como sociedade, não vamos conseguir matar essa nova forma de criatividade. Só vamos conseguir criminalizá-la. Não vamos conseguir impedir nossa juventude de usar as tecnologias que a entregamos para remixar a cultura em torno dela. Somente vamos conseguir empurrá-la para o submundo."
Um dos conceitos mais importantes em toda discussão sobre reforma na lei de propriedade intelectual é o conceito de “fair use” (termo em inglês que pode ser traduzido como “uso razoável”). Conforme a Wikipedia, “uso razoável é uma doutrina na lei do direito autoral dos Estados Unidos que permite o uso limitado de material protegido por direito autoral sem a exigência de permissão dos detentores dos direitos, tais como o uso acadêmico ou para efeito de resenha. A doutrina provê para a citação legal, não-licenciada ou incorporação de material protegido por direito autoral no trabalho de outrem sob um teste de balanceamento de quatro-fatores. O termo ‘fair use’ tem origem nos Estados Unidos, mas foi adicionado à lei do direito autoral de Israel e da Coréia do Sul; um princípio similar, ‘fair dealing’, existe em algumas jurisdições de lei comum. Jurisdições de lei civil têm outras limitações e exceções ao direito autoral”.
Citando o “Copyright Act of 1976”, o verbete delineia os chamados quatro-fatores de balanceamento: “Ao determinar se o uso feito de uma obra em qualquer caso específico é um uso razoável os fatores a serem considerados deverão incluir: (1) o propósito e o caráter do uso, incluindo se tal uso é de uma natureza comercial ou é para propósitos educacionais sem fins lucrativos; (2) a natureza da obra protegida por direitos autorais; (3) a quantidade e a substancialidade da porção usada na relação com a obra protegida por direitos autorais como um todo; e (4) o efeito do uso sobre o mercado potencial ou valor da obra protegida. O fato de que uma obra está não-publicada não deverá por si só impedir que se encontre um uso razoável se tal achado for feito sob consideração de todos os fatores acima.” Não obstante a ênfase em questões relativas ao direito autoral, o fato é que há uma relação muito estreita entre “uso razoável” (isto é, o direito de usar uma obra protegida por direitos autorais para dizer ou criar algo novo) e a própria noção de liberdade de expressão e os valores da livre expressão.
Como declara em seu portal a Electronic Frontier Foundation (EFF), por exemplo, “os serviços de hospedagem de video online como YouTube estão dando origem a uma nova era de livre expressão online. Ao servir de repositório para ‘conteúdo gerado pelo usuário’ (em inglês, ‘user-generated content’) na internet, esses serviços permitem que os criadores atinjam uma audiência global sem ter que depender de intermediários tradicionais como redes de TV e estúdios de cinema. O resultado tem sido uma explosão de criatividade por pessoas comuns, que têm abraçado entusiasticamente as oportunidades criadas  por essas novas tecnologias para se expressarem de uma variedade incrível de formas. O coração de grande parte dessa criatividade é o uso razoável (...). Criadores naturalmente citam e reaproveitam as mídias que fazem nossa cultura, dando origem a obras que comentam, parodiam, satirizam, criticam, e homenageiam obras expressivas que vieram antes. Essas formas de livre expressão estão entre aquelas protegidas pela doutrina do uso razoável.”
Em sua resenha do livro de Lessig, L. Gordon Crovitz lembra como está difícil se travar uma conversação calma sobre a indústria da mídia hoje em dia. “As forças poderosamente perturbadoras da tecnologia estão refazendo a paisagem, produzindo enormes vencedores e outrora-poderosos perdedores, com impacto total na cultura, para o bem ou para o mal, a ser determinado. Considere a maior empresa de mídia no mundo—Google—não produz conteúdo; as receitas da Google vêm de anúncios, e mesmo assim, num sinal dos tempos, sua sede não está na Madison Avenue (avenida arterial de Nova Iorque) mas no Vale do Silício. Entrementes, a indústria da música gravada tem estado processando seus fãs por fazer cópias digitais de suas músicas, mesmo que a própria indústria ainda tenha que encontrar um modelo de negócio que funcione. E aí existe a indústria do filme, que tem medo de ser a próxima à medida que se torna amplamente possível fazer download de fluxos massivos de vídeo. 
Estações de TV, por sua vez, não têm certeza se a web é amiga ou inimiga. Com toda essa destruição no ar (tomando emprestado uma frase do grande economista Joseph Schumpeter), é compreensível que executivos de empresas da mídia tradicional tenham tido pouco tempo para uma crítica aguçada do que eles consideram como seu mais fundamental direito de propriedade—seu direito, aliás, ao conteúdo intelectual de sua música, filmes, e vídeo. Até esse mesmo direito, protegido sob leis tradicionais do direito autoral, está sob ameaça.” Resta pouca dúvida de que é preciso usar mais massa cinzenta que músculo para se vencer mais esse desafio com o qual se depara a sociedade civilizada.
 
* Postado no Blog do Jamildo em 13.04.09.
 
 


Por Ruy de Queiroz

 

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