PROCEDIMENTO E NOVO RITO DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL


Porpedrolobato- Postado em 30 outubro 2012

Autores: 
PEDRO LUIZ MELLO LOBATO DOS SANTOS

Pedro Luiz Mello Lobato dos Santos

PROCEDIMENTO E NOVO RITO DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

     A Lei 11.719/2008 instituiu novo rito ao procedimento comum ordinário, quando alterou o art.394 e seguintes do Código de Processo Penal.

Duas alterações são muito interessantes, pois divergem dos ritos instituídos nos procedimentos especiais constantes tanto do Código de Processo Penal quanto da legislação especial em vigor. Senão vejamos:

Antes da alteração instituída pela lei apontada, o art.394 do CPP determinava que o juiz, após receber a denúncia ou a queixa, designaria dia e hora para interrogatório do réu.

Agora, o art.396 do mesmo Código determina que o julgador, uma vez recebida a peça acusatória, ordenará a citação para que o acusado ofereça a resposta àquela exordial.

Sobre o momento para recebimento da acusação, há certa divergência sobre a qual nos manifestaremos ao final, já que é diverso o momento de recebimento constante da norma supracitada e aquele descrito no art.399 também do CPP.

Ainda, outra alteração interessante constante da reforma diz respeito ao momento de realização do interrogatório do réu, já que o novo art.400 do CPP institui que tal ato seja realizado ao final da instrução criminal.

A reforma, como se vê, privilegiou o direito de ampla defesa, bem como consagrou o interrogatório como sendo meio de defesa, abandonando-se a tese de que se trataria de mero meio de produção de prova.

Outrossim, a reforma asseverou a importância da decisão que recebe a inicial acusatória penal, quando, igualmente, ampliou o direito de defesa do acusado, ao permitir que se manifeste por meio da resposta prevista no art.396-A do CPP.

A apresentação da resposta privilegia a ampla defesa conforme já afirmado, no sentido de que permite ao acusado levantar questões que ensejam a rejeição da denúncia, tais como a sua inépcia, falta de pressuposto processual ou condição para o regular exercício do direito de ação e, por fim, alegar a falta de justa causa da ação penal.

Da mesma forma, pode o acusado, naquela defesa preliminar, que a reforma fez chamar de resposta, ventilar as hipóteses que fazem ensejar a absolvição sumária, para que o julgador, tão logo assim se convença, possa verificar que o fato resta configurado por causa excludente de ilicitude, causa excludente de culpabilidade, atipicidade manifesta, ou existência de causa de extinção de punibilidade. Irá apresentar, em apartado, exceções dilatórias e peremptórias, conforme o que descreve o rol do art.95 do CPP: suspeição, incompetência, litispendência, ilegitimidade da parte ou coisa julgada.

Logo, ampliado foi o âmbito de defesa, quando a reforma elevou certos atos constantes do rito procedimental a tal categoria, abandonando aquela visão inquisitiva que considerava o interrogatório como mero meio de prova.

Acontece que muitos procedimentos especiais ou classificados dentro da legislação especial ainda adotam a forma inquisitiva, fazendo ser aplicado o procedimento neles disciplinado.

É o que ocorre na Lei 11.343/2006, no art.55, o qual pretende seja o acusado notificado para responder a acusação antes de o juiz se manifestar sobre o recebimento da mesma, bem como o art.57 o qual faz inaugurar a instrução criminal com o ato de realização do interrogatório.

O Código Eleitoral no art.395 determina que, recebida a denúncia, seja determinado o depoimento pessoal do acusado.

Por sua vez, a Lei 8.038/90 a qual institui normas procedimentais para processos perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, no art.4º, determina que o acusado seja notificado para se manifestar sobre a acusação, antes do recebimento da mesma, bem como o art. 7º pretende seja realizado o interrogatório, logo em seguida ao recebimento da acusação.

Pois bem, a reforma do Código de Processo Penal, atenta a estas divergências, fez inserir no art.394 daquele Código os §§ 4º e 5º os quais definem que as disposições constantes nos artigos 395 a 398 devem ser aplicadas a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados pelo CPP; assim como aplicar-se-ão subsidiariamente aos procedimentos especial, sumario e sumaríssimo as disposições do procedimento ordinário.

Apesar de a reforma processual ter alterado a posição topográfica do ato de interrogatório, alocando-o ao final da instrução criminal, os procedimentos especiais de primeira instância e o procedimento previsto para processo originário em instância superior definem o ato de interrogatório como sendo o primeiro da instrução probatória.

Isto é, aqui, o acusado ostenta a qualificação jurídica de réu, uma vez aceita a denúncia, bem como o mesmo é citado para ser interrogado, mas não para apresentar resposta.

Com relação ao procedimento originário dos Tribunais, o art. 7º da Lei 8.038/90 define procedimento especial em relação ao rito comum ordinário previsto no CPP.

Entendeu-se que, em razão da especialidade, os casos de processo e julgamento nas instâncias superiores deveriam afastar aplicação do rito comum do Código. Logo, não se poderia pretender a aplicação do art.400 do CPP naquele procedimento. Dessa forma, decidiu o Superior Tribunal de Justiça, 5º turma, no HC 121.171/SP, Relator Ministro Jorge Mussi.

Todavia, o Supremo Tribunal Federal destacou que a nova ordem ritual, mais favorável ao acusado, deve reger o procedimento penal, quer se trate de delito submetido ao rito procedimental do Código de Processo Penal, quer seja submetido a rito especial definido em legislação especial. Inaugurou esta perspectiva o julgamento do Agravo Regimental na Ação Penal 528, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski.

Ficou decidido que a nova redação do art. 400 do CPP propicia maior eficácia à defesa, devendo ser afastado o previsto no art. 7º da Lei 8.038/1990, quanto à designação do interrogatório.

Naquela oportunidade, manifestou-se o Ministro Celso de Mello, para o qual:

“agora, de outro lado, tal seja a compreensão que dê ao ato de interrogatório, que, mais do que simples meio de prova, é um ato eminente de defesa daquele que sofre a imputação penal e é o instante mesmo em que ele poderá, no exercício de uma prerrogativa indisponível, que é o da auto defesa e que compõe o conceito mais amplo e constitucional do direito de defesa, tal seja a compreensão então que se dê ao ato de interrogatório...”

“hoje, o interrogatório como sendo um ato que precede a própria instrução probatória muitas vezes não permite ao réu que apresente elementos de defesa que possam suportar aquela versão que ele pretende transmitir ao juízo processante.”

Assim, tem-se que o acusado terá maiores condições de apresentar sua defesa, ainda que ele não tenha o ônus de provar a sua inocência. Significa dizer que o ato de interrogatório, caso praticado no final da instrução probatória, permitirá ao réu eleger com melhor qualidade de escolha os fatos sobre os quais pretende calar e manifestar o seu silêncio.

O processo penal é salvaguarda de direitos do réu, instrumento que deve permitir a ele a melhor oportunidade de defender-se, por isso a possibilidade de ficar em silêncio, quando prestigiada com total conforto da norma procedimental, faz a legislação processual adequar-se ao Princípio Constitucional da Ampla Defesa.

Não cabe aqui ao Estado, quer por meio da atuação legiferante, quer por meio da atuação jurisdicional, enquanto detentor do Poder Público, sobrepor-se ao caro preceito constitucional da ampla defesa, consagrado no art. 5º, LV, da Carta de Lei Maior, fazendo impor um rito que desprestigie o direito de autodefesa consubstanciado no brocardo da Ampla Defesa.

A legislação processual, quando interpretada sistema-ticamente, esclarece no art.186 do CPP, que o acusado no ato de interrogatório deve ser informado pelo juiz do seu direito constitucional ao silêncio, possibilidade de permanecer calado, direito este que não pode ser interpretado em seu desfavor.

A importância do ato de interrogatório já era destacada por autores clássicos.

Em comentários ao Código de Processo Penal, Eduardo Espínola Filho, apontando a orientação da exposição de motivos do CPP, aduzia que o ato de interrogatório teria fundamental importância para fins de individualização da pena, já que o juiz, ao fixar a pena, não deveria ter em conta somente o fato delituoso nas suas circunstâncias objetivas. Por isso, deveria ser o réu avaliado sobre o enfoque de todos os fatores, inclusive os de ordem subjetiva.

Em sua obra, Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, citando Altavilla – MANUALE DI PROCEDURA PENALE, 1935, pg. 239, o insigne autor informa que:

“do ponto de vista formal, a relação processual se instaurou no momento em que a ação penal dirige a pretensão punitiva contra um indiciado, fazendo-lhe assumir a qualidade de acusado, somente no interrogatório adquire existência o contraste entre a acusação e a defesa, com que se concretiza o contraditório, visando ao qual se realizam os atos anteriores ao interrogatório (mandados e citações).”[1]

E, no campo das nulidades, assevera que o ato de interrogatório é indispensável à validade do processo, quando concordou Eduardo Espínola Filho com a 1ª C. do Tribunal de Apelação de São Paulo, 1943, na ap. criminal n. 10686, relator Renato Gonçalves, o qual anulou o processo em que o interrogatório do réu não fora realizado pelo juiz.

Ora, no campo das nulidades, segundo o brocardo do Pas de Nullité Sans Grief, a nulidade somente se configuraria, se promovesse prejuízo a uma das partes no processo. Acrescenta-se que a nulidade aqui é de ordem absoluta e prejudica a defesa, porque a ausência do ato de interrogatório é suficiente a não permitir ao réu explicar-se ou apontar provas que demonstrem a sua defesa ou mesmo calar-se e nada dizer. Direito de Defesa, noutras palavras. Ainda, o prejuízo à defesa é presumido, já que tal ofensa desgasta princípio constitucional.

O processualista Hélio Tornaghi, em seu COMPÊNDIO DE PROCESSO PENAL, afirma que o interrogatório pode assumir a natureza jurídica, ou de meio de prova, ou de meio de defesa, conforme define a opção legislativa.

Para o clássico doutrinador:

“Note-se que se trata de política criminal. O interrogatório do acusado tanto pode ser aproveitado pela lei para servir como método de prova quanto como instrumento de defesa. No primeiro caso, o juiz pondera tudo aquilo que o réu afirma, a seu favor ou contra si. As alegações do acusado podem demonstrar alguma coisa, podem até, convencer o juiz e, embora isto seja raro, é possível que o réu, por sua sinceridade, pela verossimilhança do que afirma, pela firmeza e convicção com que fala, logre não deixar qualquer dúvida no espírito do julgador. Na segunda hipótese (meio de defesa), o interrogatório é apenas oportunidade que a lei dá ao réu para fazer alegações e citar fatos que possam exculpá-lo...”[2]

Sobre esta questão, acrescentamos que o ato de interrogatório é, conforme a alteração da legislação processual, importante meio de defesa, ótima oportunidade de o réu manifestar interesse pelo silêncio, calar-se e nada dizer.

O direito ao silêncio, conforme as lições do Ministro Celso de Mello, nos seus julgados no Supremo Tribunal Federal, consagra o nemo tenetur se detegere. Observemos o julgado do HC 99.289-MC, quando o relator assegura que a falta de cooperação do acusado em responder ao interrogatório judicial traduz comportamento legitimado pelo princípio constitucional que protege a pessoa contra a autoincriminação.

O Estado não tem o poder de tratar o acusado como se condenado fosse, não podendo, nesta hipótese, constrangê-lo a produzir provas contra si próprio.

E, finaliza o nobre ministro: “A prática do direito ao silêncio, que se revela insuscetível de qualquer censura policial e/ou judicial, não pode ser desrespeitada pelos órgãos e agentes da persecução penal, porque o exercício concreto dessa prerrogativa constitucional – além de não importar em confissão – jamais poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.”

Leandro Galluzzi dos Santos, no livro AS REFORMAS NO PROCESSO PENAL, aduz:

“Somente no final da instrução, isto é, após as declarações do ofendido, de todas as testemunhas, dos peritos, realizados os reconhecimentos e eventuais acareações, é que se passará ao interrogatório do acusado. É evidente que não se obriga o acusado a se manifestar, mas, para que ele possa verdadeiramente exercer o seu direito à autodefesa, era primordial que houvesse essa modificação legislativa, iniciada na Lei 9099/1995, a fim de permitir que ele pudesse dar sua versão dos fatos.”[3]

Neste sentido, José Frederido Marques, em sua clássica obra ELEMENTOS DE DIREITO PROCESSUAL PENAL, embora tenha defendido a tese de ser o ato de interrogatório um meio de prova, explica:

“o interrogatório constitui meio de defesa para o próprio criminoso, visto que lhe dá oportunidade de explicar os motivos de sua conduta e por em foco circunstâncias do delito que lhe podem ser úteis na graduação da pena e aplicação de outras sanções previstas na lei penal.”[4]

Ora, o acusado é citado para defender-se tecnicamente, ou seja, por meio de advogado. Sendo assim, o ato de interrogatório, decorrente do princípio da ampla defesa, meio de autodefesa, fica reservado para ser exercido como último ato de instrução. Dessa forma, o acusado terá maiores condições de conhecer de todas as provas existentes nos autos.

Para Walter Nunes da Silva Júnior:

“o interrogatório, dentro de uma visão acusatória/ inquisitória, era, até então, considerado, a um só tempo, como meio de defesa e de prova. Mais de prova, é verdade, pois, conquanto fosse assegurada a possibilidade de o acusado ficar em silêncio, essa faculdade era menos um direito do que um ônus processual, com repercussão direta na valoração da prova, uma vez que o juiz podia interpretá-lo em prejuízo da defesa. Ou seja, o silêncio podia valer como prova para refutar os argumentos da defesa... o acusado não era chamado para se defender, mas para ser inquirido sobre a imputação delituosa narrada na ação penal.”[5]

Sendo assim, a nova perspectiva ritual adotada pelo Código de Processo Penal, deve ser aplicada por todos os procedimentos de persecução penal em juízo, ainda que tais procedimentos estejam definidos na legislação especial, conforme explicou o art.394, §§ 4º e 5º, do CPP.

É bem verdade que a Teoria Geral do Direito ensina que a norma de caráter geral, embora superveniente, não pode revogar a norma especial de mesma graduação. Por isso, a legislação especial não deveria ser atingida pela reforma ordinária que sofreu o CPP.

Assim, o Código de Processo Penal somente seria aplicável subsidiariamente, caso o procedimento não fosse explicado naquelas normas especiais. Sendo assim, deveriam prevalecer aquelas regras que instituem o interrogatório como primeiro ato da fase de instrução.

Por isso, na aplicação de normas de igual hierarquia, deveria prevalecer sempre a de caráter específico para os fins a que se destina a sua aplicação.

Para Guilherme de Souza Nucci, em sua obra LEIS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS COMENTADAS, ao comentar o art.55 da Lei 11.343/2006, aduziu:

“a modificação do procedimento comum..., ocorrida no Código de Processo Penal, em nossa visão, não deve afetar o procedimento especial descrito na Lei de Drogas. Afinal, lei especial afasta a aplicação de lei geral... a previsão feita no art.396, caput, do CPP, é incompatível com o procedimento da Lei de Drogas, afinal, seguindo-se o disposto no Código de Processo Penal, recebida a denúncia ou queixa, ordena-se a citação do réu para responder à acusação, por escrito, em dez dias. Após, pode-se absolvê-lo sumariamente. Não sendo o caso, prossegue-se com a instrução. No art.55, caput, desta Lei de Drogas, o juiz, antes de receber a peça acusatória, deve ouvir o denunciado. Somente após, rejeitada a defesa preliminar, recebe a denúncia ou queixa, prosseguindo-se na instrução. Em virtude da contradição, parece-nos correta a aplicação da lei especial, até porque é mais benéfica ao acusado. Outro ponto de dúvida diz respeito ao momento do interrogatório. Segundo o disposto no art.57, caput, desta Lei de Drogas, será o primeiro momento da instrução. Caso seja seguido o previsto no art.400, caput, do CPP, o interrogatório será realizado ao término da instrução. Voltamos a insistir que lei especial deve afastar a aplicação da lei geral, logo o correto é seguir o previsto no art.57, caput, desta Lei.”[6]

Ocorre, no entanto, data venia, que a reforma de caráter geral fez previsão expressa de aplicação do novo rito comum ordinário aos procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados pelo CPP. De qualquer maneira, o novo sistema inaugurado pela regra do art.400 do CPP demonstra-se mais compatível com a ordem constitucional vigente a qual dá relevância ao direito de ampla defesa, consubstanciado no devido processo legal substantivo.

A reforma processual penal estabelecida pela Lei 11.719/2008 consagra as exigências estabelecidas pelo moderno processo penal, o qual passa a ter contornos democráticos, cuja natureza coloca em perspectiva a plenitude de defesa e a presunção de inocência.

O ônus da prova sempre incumbe ao órgão acusatório, não se admitindo que vigore no sistema processual constitucional norma que faça prevalecer procedimento que restrinja o direito de autodefesa, permitindo-se que as provas incriminadoras sejam buscadas exclusivamente no interrogatório pessoal do acusado.

Por isso, o Supremo Tribunal Federal, no julgado do HC 107.795 MC/SP, de relatoria do Ministro Celso de Mello, destaca que: “tendo presente as inovações produzidas pelos diplomas legislativos que introduziram expressivas reformas em sede processual penal, veio adequar, mediante construção jurisprudencial, a Lei 8.038/90 ao novo modelo ritual, fazendo incidir, nos processos penais originários, a regra que, fundada na Lei 11.719/2008, definiu o interrogatório como sendo o último ato da fase de instrução probatória, por entender que se tratava de medida evidentemente mais favorável ao réu.” Daí, porque, deveria tal interpretação alcançar também o rito estabelecido na lei especial preconizada no art.359 do Código Eleitoral.

Para efeitos práticos, cumpre esclarecer e ratificar afirmação anteriormente colacionada por nós no presente trabalho que a inobservância de rito procedimental com estes contornos constitucionais pode gerar ao processo uma nulidade de caráter absoluta, por ofensa ao direito de defesa.

A nulidade consubstanciada na norma do art.564, III, e), do CPP, deve ter aplicação concomitante com a norma constitucional petrificada no art.5º, LV. Por isso, podemos inferir que a sua violação, não aplicação correta do rito que aloca o ato de interrogatório no final da instrução, tem presunção absoluta de prejuízo à defesa, já que ofende princípio constitucional da ampla de defesa.

Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes, na clássica obra AS NULIDADES NO PROCESSO PENAL, acrescentam:

“Sendo a norma constitucional-processual norma de garantia, estabelecida no interesse público, o ato processual inconstitucional, quando não juridicamente inexistente, será sempre absolutamente nulo, devendo a nulidade ser decretada de ofício, independente de provocação da parte interessada.”[7]

O due process of law é garantia constitucional e identifica a qualidade do próprio processo, no sentido de que a sua violação é sempre grave e não comporta ser interpretada como mera irregularidade. Por isso, assegurar a ampla defesa traduz o correto exercício da função jurisdicional.

Sobre o momento de recebimento da denúncia ou queixa, há três posições divergentes. Isso porque, o art.396 do CPP define que, após o recebimento da denúncia, o acusado será citado para apresentar resposta, enquanto o art.399 do CPP afirma que, recebida a denúncia, o juiz designará dia e hora para a audiência de instrução e julgamento.

A primeira posição indica que o ato de recebimento formal e técnico dá-se no momento designado no art.399, preservando-se a possibilidade de o acusado apresentar sua defesa preliminar por escrito, em momento anterior ao recebimento da peça acusatória. Aqui, o acusado é notificado a apresentar a defesa prévia.

Noutra ideia, o recebimento previsto no art.399 significa apenas uma sequência do procedimento, na hipótese de não se ter identificado o cabimento de absolvição sumária. Aqui, o recebimento formal da acusação ocorreria no momento indicado pelo art.396.

Por fim, a última posição pretende explicar que o ato de recebimento declarado no art.396 do CPP é provisório, pois a sua fundamentação apenas analisa a viabilidade da acusação. Por isso, seria o ato de recebimento da acusação complexo. O juiz recebe a denúncia e sujeita este ato de recebimento à confirmação, conforme proporia o art.399 do mesmo diploma.

Gustavo Badaró, em sua obra PROCESSO PENAL, invocando técnica de interpretação de Norberto Bobbio, para a qual, no caso de normas divergentes de mesma hierarquia, cronologicamente similares e que não se distinguem em razão da especialidade, deve o intérprete assegurar o melhor interesse constitucional para solucionar o conflito.

Para o autor, a escolha deve prevalecer eliminando-se uma das normas, já que as duas não podem coexistir, devendo a prevalecente ser informada por critério que:

“em maior ou melhor grau, implemente o programa constitucional. Neste caso, considerar que há apenas um único recebimento da denúncia, no caso, aquele previsto no art.399 do CPP, é a interpretação mais adequada e consentânea com um ordenamento jurídico que, por expresso mandamento constitucional, tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (CR,art.1º, III).”[8]

 Sendo assim, proceder-se-á a rejeição da acusação injusta e infundada, para se evitar os prejuízos irreparáveis que uma ação penal instaurada irregularmente pode acarretar. E, para este autor, a melhor forma de fazer isso acontecer seria por meio de operar a defesa prévia como forma de resposta à acusação, anteriormente ao recebimento da denúncia.

Interessante lição propõe o doutrinador Aury Lopes Jr. para o qual o modelo de reforma pretendido previa o contraditório prévio, anterior ao recebimento da peça acusatória, todavia tal interpretação para este autor não poderia, por si só, ilidir o texto de lei, portanto o procedimento resta inaugurado com o recebimento da denúncia e segue com o posterior chamamento do réu por meio da citação para apresentar a resposta. Vejamos:

“o recebimento da denúncia é imediato e ocorre nos termos do art.396. Esse é o marco interruptivo da prescrição e demarca o início do processo, que se completa com a citação válida do réu (art.363). Tanto que o réu é citado nesse momento para apresentar sua resposta e, posteriormente, intimado para audiência de instrução. (...). Ademais, a absolvição sumária (art.397), em que pese recorrer àquilo que consideramos serem as condições da ação processual penal, pressupõe a existência do processo. Como absolver antes do início do processo?A absolvição (mesmo sumária) somente é possível após o recebimento da acusação. Antes desse recebimento da acusação, o que pode haver é rejeição, não absolvição. Quanto ao art.399, nada mais faz do que  remeter para o recebimento anterior, sendo a expressão ‘recebida’ desnecessária. Mas, já lá está, deve ser interpretada como remissão ao recebimento já realizado e não uma nova decisão.”[9]

As exposições do nobre autor espancam dúvidas acerca da divergência sobre a matéria. Tentar programar qualquer teoria que propõe o ato de recebimento da acusação em uma forma complexa, em dois atos, umanterior à apresentação da resposta e outroposterior que ratifique aquele, não é razoável. Tal proposta gera insegurança sobre o momento exato do recebimento da inicial acusatória, porquanto não identificaria com precisão o marco interruptivo da prescrição.

 Bem como, as hipóteses de apresentação de resposta e de absolvição sumária antes do recebimento da peça inicial acusatória vão provocar o absurdo de se absolver sem processo aquele que não ostenta a qualificação jurídica de réu. Ora, como absolver quem ainda não é réu?

Por isso, se a tese que pretende seja o recebimento da inicial posterior ao oferecimento da resposta impossibilitar a absolvição sumária, esta tese é prejudicial ao direito de defesa do acusado.

Logo, o momento mais adequado para se considerar recebida a peça acusatória é aquele definido no art.396 do CPP.

O Superior Tribunal de Justiça, no HC 138.089/SC, Rel. Min. Felix Fisher, destacou que o vocábulo ‘recebida’ utilizado no texto do art.399 do CPP foi empregado indevidamente pelo legislador, o qual teria se expressado melhor se fosse orientado por ‘não tendo ocorrido a absolvição sumária do acusado’, condição necessária para que o processo siga com os demais atos.

Não obstante, acreditamos que o art.399 do CPP, quando fez referência ao recebimento da acusatória, pretendeu afirmar que não houve justificativa para absolvição sumária, após análise da resposta do réu, como condição para o prosseguimento do feito.

Tal ato de recebimento ou rejeição da peça acusatória tem natureza jurídica de decisão interlocutória mista, decisão com força de definitiva, não terminativa quando aceita a inicial acusatória, ou terminativa quando a rejeita.

A peça acusatória deve observar os requisitos descritos no art.41 do CPP, devendo conter a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias, qualificando o acusado e a classificação do crime.

O não preenchimento de tais requisitos provocará hipótese de rejeição da acusação sob o enfoque do art.395, I, do CPP, por ser a mesma manifestamente inepta.

Ainda, deverá conter a peça acusatória um lastro probatório mínimo para que as alegações do órgão acusador demonstrem a existência do fato criminoso e indícios da autoria, pois, do contrário, a ação será carente, devendo a mesma ser rejeitada com fundamento no art.395, III, do CPP, ausência de justa causa.

Para o ilustre doutrinador Afrânio Silva Jardim, em sua obra DIREITO PROCESSUAL PENAL, esclarece que a justa causa é “um lastro mínimo de prova que deve fornecer arrimo à acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado. Tal arrimo de prova nos é fornecido pelo inquérito policial ou pelas peças de informação, que devem acompanhar a acusação penal.”[10]

Ora, tal análise deve compreender farta fundamentação, uma vez que, assim não procedendo, o julgador cria dificuldade tanto ao réu de atacar a decisão que recebe a peça acusatória quanto ao órgão de acusação atacar a decisão de rejeição por meio do recurso em sentido estrito, art.581, I, do CPP.

A petição inicial e a fundamentação da decisão que a recebe devem subsidiar de elementos o réu para apresentar argumentos de defesa, principalmente naquilo a que se refere às hipóteses do art.397 do CPP, a fim de provocar reflexão do juiz acerca da absolvição sumária.

Com isso queremos dizer que deve garantir o amplo direito de defesa do acusado a fundamentação da decisão que recebe a peça acusatória.

Como não se operou a reforma que pretende alterar a matéria de recursos no CPP, na forma do projeto de lei 4.206/2001, a decisão interlocutória que recebe a denúncia seria desafiada, na forma do art.581, I, do CPP, pelo recurso de agravo, o qual faria as vezes do recurso em sentido estrito, este que na atualidade somente é utilizado no caso de rejeição da denúncia, conforme já explicamos.

Atualmente, a ação penal a qual não preenche os requisitos de admissibilidade do art.395 do CPP e, ainda assim, inaugura o processo criminal é desafiada pela ação constitucional de Habeas Corpus.

Portanto, o recebimento da acusação não decorre de mero despacho. A decisão que a recebe deve conter farta fundamentação. Neste sentido, demonstramos os prejuízos suportados pela defesa no caso de um processo judicial criminal inaugurado por acusação inepta e carente.

Agora, tal dificuldade compreende identificar se tal proposta deve ser aplicada aos procedimentos especiais ou não.

Eugênio Pacelli de Oliveira, ao comentar a instrução especial relativa ao procedimento de processo e julgamento do delito de tráfico de drogas, assenta:

“Como já adiantamos, a Lei 11.719/2008 trouxe grandes modificações no âmbito procedimental, com repercussões, inclusive, nos procedimentos especiais por força de ressalva expressa na nova legislação.”

“Assim, e essa é uma regra que deverá ser observada em todo procedimento da primeira instância, seja comum ou especial, por exigência da norma contida no art.394, §4º, do CPP, deverão ser cumpridas, em todos os ritos, as etapas dos arts. 395 a 397 do CPP.”[11]

Como já afirmamos, o procedimento relativo aos crimes de tráfico de drogas, por exemplo, prevê que o acusado será notificado a responder a acusação por meio da defesa prévia. Somente, após tal defesa, será proferida decisão de recebimento ou rejeição da inicial acusatória.

Entretanto, o novo procedimento instituído no art.396 do CPP, por força do art.394, §4º, do mesmo diploma, deve orientar seja aplicado tal rito constante de seus artigos 395 ao 398 a todos os procedimentos, inclusive os especiais.

Logo, não resta dúvida, em nome da segurança jurídica que estabelece o devido processo legal formal, que os procedimentos devem ser regidos por esta nova perspectiva, segundo a qual, após o recebimento da inicial acusatória, deve o juiz ordenar seja citato o réu para apresentar resposta, bem como designar audiência de instrução e julgamento, se não for o caso de absolvição sumária.

E, quanto à instrução, o ato de interrogatório do réu deve ser o último a ser realizado, para que não se ofenda o direito de ampla defesa, o que ocasionará nulidade absoluta ao processo.

Por fim, o trabalho pretendeu orientar a solução de cada uma das divergências, tendo em consideração o devido processo legal, pois, enquanto no sentido formal pretende-se garantir aos ritos procedimentais segurança jurídica, no sentido material a aplicação da razoabilidade faz operar o direito à ampla defesa, no que se refere à interpretação das normas.



[1] Espínola Filho, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro, 6ª edição, volume III, 1959, editora Rio, página 8.

[2]Tornaghi, Hélio. Compêndio de Processo Penal, tomo III, 1967, José Konfino Editor, página 809, Rio de Janeiro.

[3]As reformas no processo penal, coordenado por Maria Thereza Rocha de Assis Moura – SP, ed. Revista dos Tribunais, 2008, pg. 331.

[4]Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. II, Bookseller, 1997, pg. 299.

[5]Silva Júnior, Walter Nunes da. Reforma tópica do processo penal – Rio de Janeiro, Renovar, 2009, pg. 116.

[6]Nucci, Guilherme de Souza, Leis penais e processuais penais comentadas – 5ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, pgs. 408 e 409.

[7]Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho, As nulidades no processo penal, 12ª edição, SP, ed. Revista dos Tribunais, 2011.

[8]Badaró, Gustavo Henrique, Processo Penal, Rio de Janeiro: Campus – Elsevier, 2012.

[9]Lopes Jr., Aury, Direito Processo Penal, Volume II, 2º edição, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2009.

[10]Jardim, Afrânio Silva. Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Forense, 2002, pg. 93.

[11]Pacelli de Oliveira, Curso de Processo Penal, 10º edição, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 200, pg. 640.