Prisão do depositário infiel e sua inconstitucionalidade


Pormathiasfoletto- Postado em 22 maio 2013

Autores: 
MAIA, Luciana Andrade

 

 

Introdução

Dispõe o art. 5º, LXVII, da Constituição Federal: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.

A questão da prisão por dívidas do devedor de alimentos sempre foi pacífica em nosso ordenamento e tal regra considerada cláusula pétrea da Constituição.

Contudo, a previsão da prisão do depositário infiel sempre foi um assunto questionado quanto à sua constitucionalidade, principalmente, pela doutrina após a assinatura do Pacto de San Jose da Costa Rica, o qual admite apenas a prisão do inadimplente de alimentos.

Tendo em vista que o Brasil aceitou as disposições constantes no referido Tratado Internacional, a contrariedade entre o dispositivo da Constituição Federal, que admite a prisão do depositário infiel, e a do Pacto de San Jose, que a veda, passaram a ser alvo de grande estudo e criação de várias teses entre os internacionalistas.

Em 22 de novembro de 2006, o Ministro Gilmar Mendes, em sede de recurso extraordinário (RE 466343/SP), entendeu pela inconstitucionalidade da prisão do devedor em alienação fiduciária, reacendendo a discussão.

Passamos, assim, a analisar os principais aspectos da prisão civil no tocante ao depositário infiel, bem como a inovadora posição do Supremo Tribunal Federal trazida pelo Ministro Gilmar Mendes. Pacto de San José da Costa Rica

A Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, dispõe em seu artigo 7º, 7, que: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandatos de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemente de obrigação alimentar”. Tem-se, assim, que a Convenção veda qualquer tipo de prisão civil (prisão por dívidas), excetuando-se, apenas, a prisão civil do devedor de alimentos.

Esse tratado passou a vigor no Brasil, a partir de 25 de setembro de 1992, quando foi ratificado pelo Congresso Nacional, portanto, após o início da vigência da Constituição Federal (5 de outubro de 1988).

Ao ratificar a Convenção sem qualquer reserva ou declaração interpretativa, o Brasil aceitou a integralidade de seus dispositivos sem qualquer restrição.

Apesar de ser posterior à Constituição Federal de 1988, muitos juristas, principalmente, os ministros do Supremo Tribunal Federal, passaram a sustentar que a norma do Pacto de San Jose, que a contrario sensu, veda a prisão civil do depositário infiel não tinha aplicação no Brasil, uma vez que a própria Constituição Federal previa o contrário em uma cláusula pétrea (art. 5º, XLVII).

Diante da polêmica sobre a prevalência ou não das normas constitucionais em face das disposições estabelecidas em tratados internacionais, surgiram quatro teses acerca da hierarquia das normas dos tratados internacionais de direitos humanos em nosso ordenamento interno. Teses acerca da hierarquia das normas dos tratados internacionais

Primeiramente, é importante observar que as teses sobre a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos foram formadas antes do advento da Emenda Constitucional nº 45/04.

Segundo, cumpre esclarecer que as posições doutrinárias sobre o assunto apoiam-se no texto do art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, a saber: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. 1ª tese: Os tratados internacionais de direitos humanos possuem natureza de norma legal: No HC 72.131, entendeu o STF (por maioria de votos, sendo divergentes os Ministros: Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio, Carlos Velloso e Francisco Rezek), que os tratados de direitos humanos não possuiriam estatura constitucional, mas natureza de norma infraconstitucional, permitindo-se, assim, a prisão civil do depositário infiel, tendo em vista que a Constituição Federal deve prevalecer em face do Pacto de San Jose.

Essa é a tese sustentada pelo Supremo Tribunal Federal há muito tempo, mas que parece estar sendo revista, especialmente, após o voto do Ministro Gilmar Mendes, que abaixo será comentado.

2ª tese: Os tratados internacionais de direitos humanos possuem natureza de norma supralegal: Essa foi a posição do Ministro Sepúlveda Pertence, em um julgamento do RHC 79785 (29/03/2002). “Na ocasião, o Ministro cogitou que os tratados de direitos humanos poderiam ser considerados como de caráter supralegal. Embora esta posição não seja bem fundamentada, o Ministro Pertence afirma que seriam supralegais os tratados de direitos humanos porque a Constituição consagra uma grande abertura ao Direito Internacional dos Direitos Humanos. Considerar esses tratados como de nível legal esvaziaria o conteúdo do art. 5o, § 2o. Não seriam de caráter constitucional, contudo, pois, baseando-se em Kelsen, afirma que a prevalência da ordem jurídica internacional é uma questão extra-jurídica. O lugar dos tratados deveria ser buscado na Constituição de cada Estado. E, para o Ministro Pertence, a Constituição Brasileira não concede primazia aos tratados sobre ela mesma. Para essa posição, somente os tratados de direitos humanos seriam supralegais. Os demais gozariam do grau meramente legal" [1].

3ª tese: Os tratados internacionais de direitos humanos possuem natureza de norma constitucional: Essa é a posição dos juristas Antônio Augusto Cançado Trindade, Flávia Piovesan e Ingo Sarlet. Sustentam que, diante da redação do art. 5º, §2º, da Constituição Federal, existem três espécies de direitos e garantias:

1) os expressos na Constituição;

2) os implícitos, decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição;

3) os decorrentes de tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Dessa forma, quando o Brasil ratifica um tratado internacional de direitos humanos, as disposições deste passam a “integrar e complementar o catálogo de direitos já disposto na Constituição, afinando-se, portanto, como o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais. Por conterem normas sobre direitos fundamentais, tais tratados seriam protegidos pelo art. 60, § 4º (que trata das cláusulas pétreas)" [2].

4ª tese: Os tratados internacionais de direitos humanos possuem natureza de norma supraconstitucional: Essa posição, quase isolada, de Celso de Albuquerque Mello, defende que os tratados de direitos humanos são superiores à própria Constituição quando consagram normas mais benéficas. Voto do Ministro Gilmar Mendes

O inovador voto do Ministro Gilmar Mendes em relação à prisão do depositário infiel foi proferido no Recurso Extraordinário 466.343-1 São Paulo, “interposto pelo Banco Bradesco S.A., com fundamento no art. 102, III, “a”, da Constituição, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, negando provimento ao recurso de apelação n° 791031-0/7, consignou entendimento no sentido da inconstitucionalidade da prisão civil do devedor fiduciante em contrato de alienação fiduciária em garantia, em face do que dispõe o art. 5º, inciso LXVII, da Constituição" [3].

A alienação fiduciária em garantia tem fundamento dos art. 1.361, do Código Civil e na Lei 4.728/68, com redação alterada pelo Dec-lei 911/69. Referida lei prevê, em seu art. 66, que: “A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal(g.n.). Dessa forma, a doutrina passou a sustentar que o devedor de alienação fiduciária em garantia deveria ser considerado depositário em todos os aspectos, direitos e deveres, podendo, assim, em caso de inadimplemento na restituição do bem alienado, ser submetido à prisão civil, nos termos do art. 5º, LXVII, da Constituição Federal.

Embora recepcionado pela CF/88, tal dispositivo foi redigido em 1969, portanto, antes da ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos pelo Brasil em 1992, sendo que esse tratado veda qualquer prisão civil por dívidas, exceto a do inadimplente de alimentos.

Ainda que o Pacto de San Jose tenha sido ratificado pelo Brasil, o Supremo Tribunal Federal entende que os tratados internacionais possuem natureza de norma legal, de mesma hierarquia das leis ordinárias, de forma que estão sujeitos ao controle de constitucionalidade. Assim, se incompatíveis com as normas da Constituição Federal, estas devem prevalecer....parece que a posição começou a mudar...

Diante do referido recurso extraordinário, o relator, Ministro Cezar Peluso, analisou o caso e proferiu seu voto pela inaplicabilidade do Dec-lei 911/69, no tocante à prisão civil do inadimplente, por entender que o devedor em alienação fiduciária não pode ser equiparado ao depositário para efeitos de tal sanção.

Percebe-se, assim, que apesar de rejeitar a prisão do devedor, o ministro Peluso não adentrou no mérito da prisão do depositário infiel.

Após o voto do relator, foi aberta vista ao Ministro Gilmar Mendes para que proferisse seu voto do recurso, o qual passamos a citar alguns trechos [4]:

Se não existem maiores controvérsias sobre a legitimidade constitucional da prisão civil do devedor de alimentos, assim não ocorre em relação à prisão do depositário infiel. As legislações mais avançadas em matéria de direitos humanos proíbem expressamente qualquer tipo de prisão civil decorrente do descumprimento de obrigações contratuais, excepcionando apenas o caso do alimentante inadimplente.

(...)

Com a ratificação pelo Brasil desta convenção [Pacto de San Jose],assim como do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos1, sem qualquer reserva, ambos no ano de 1992, iniciou-se um amplo debate sobre a possibilidade de revogação, por tais diplomas internacionais, da parte final do inciso LXVII do art. 5o da Constituição brasileira de 1988, especificamente, da expressão “depositário infiel”,e, por conseqüência, de toda a legislação infraconstitucional que nele possui fundamento direto ou indireto.

(...)

Desde a promulgação da Constituição de 1988, surgiram diversas interpretações que consagraram um tratamento diferenciado aos tratados relativos a direitos humanos, em razão do disposto no § 2o do art. 5o, o qual afirma que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Essa disposição constitucional deu ensejo a uma instigante discussão doutrinária e jurisprudencial – também observada no direito comparado...

(...)

...parece que a discussão em torno do status constitucional dos tratados de direitos humanos foi, de certa forma, esvaziada pela promulgação da Emenda Constitucional no 45/2004, a Reforma do Judiciário (oriunda do Projeto de Emenda Constitucional no 29/2000), a qual trouxe como um de seus estandartes a incorporação do § 3º ao art. 5o, com a seguinte disciplina: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

Em termos práticos, trata-se de uma declaração eloqüente de que os tratados já ratificados pelo Brasil anteriormente à mudança constitucional, e não submetidos ao processo legislativo especial de aprovação no Congresso Nacional, não podem ser comparados às normas constitucionais.

Não se pode negar, por outro lado, que a reforma também acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre os Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico.

(...)

A tese da legalidade ordinária dos tratados internacionais foi reafirmada em julgados posteriores (RE n° 206.482-3/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgado em 27.5.1998, DJ 5.9.2003; HC n° 81.319-4/GO, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 24.4.2002, DJ 19.8.2005)24 e mantém-se firme na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

É preciso ponderar, no entanto, se, no contexto atual, em que se pode observar a abertura cada vez maior do Estado constitucional a ordens jurídicas supranacionais de proteção de direitos humanos, essa jurisprudência não teria se tornado completamente defasada.

(...)

Importante deixar claro, também, que a tese da legalidade ordinária, na medida em que permite ao Estado brasileiro, ao fim e ao cabo, o descumprimento unilateral de um acordo internacional, vai de encontro aos princípios internacionais fixados pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, a qual, em seu art. 27, determina que nenhum Estado pactuante “pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”.

Por conseguinte, parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade.

 

Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.

(...)

Assim, a premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional torna imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos na ordem jurídica nacional.

É necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano.

(...)

Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.

Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, inciso LXVII) não foi revogada pela ratificação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei n° 911, de 1º de outubro de 1969.

(...)

Enfim, desde a ratificação pelo Brasil, no ano de 1992, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5º, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel.

De qualquer forma, o legislador constitucional não fica impedido de submeter o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, além de outros tratados de direitos humanos, ao procedimento especial de aprovação previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição, tal como definido pela EC n° 45/2004, conferindo-lhes status de emenda constitucional”.

Após analisar a natureza dos tratados internacionais de direitos humanos em face aos novos anseios da comunidade internacional, o Ministro Gilmar Mendes passou a analisar a (des)proporcionalidade da prisão civil em relação ao devedor em alienação fiduciário. Vejamos suas palavras [5]:

(...)Na condição de sujeitos ativo e passivo da relação contratual, fiduciante e fiduciário possuem obrigações recíprocas. Se o fiduciante paga a dívida, o que importa em implemento da condição resolutiva, o fiduciário perde a condição de proprietário e é obrigado a restituir o domínio do bem alienado em garantia. Por outro lado, se o fiduciante se torna inadimplente, cabe ao fiduciário – possuidor de todos os direitos e pretensões que lhe correspondem pela condição de proprietário, ainda que não pleno, do bem – optar por um dos seguintes meios para garantia do crédito:

a) se o devedor entrega o bem, pode o credor fiduciário aliená-lo a terceiros (venda extrajudicial) e aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da cobrança, entregando ao devedor o saldo porventura apurado, se houver (§ 4º do art.1º do Decreto-Lei n° 911/69);

b) pode também o credor ajuizar ação de busca e apreensão para a retomada da posse direta do bem (art. 3º do Decreto-Lei n°911/69);

c) se o bem alienado não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, poderá o credor requerer a conversão do processo de busca e apreensão em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil (art. 4º do Decreto-Lei n° 911/69);

d) pode o credor, ainda, optar pelo ajuizamento de ação de execução (art. 5º do Decreto-Lei n°911/69).

(...)

Diante desse quadro, não há dúvida de que a prisão civil é uma medida executória extrema de coerção do devedor-fiduciante inadimplente, que não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot), em sua tríplice configuração: adequação (Geeingnetheit), necessidade (Erforderlichkeit) e proporcionalidade em sentido estrito.

(...)

Portanto, a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade.

(...)

Em conclusão, entendo que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n°911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002).

A prisão civil do devedor-fiduciante no âmbito do contrato de alienação fiduciária em garantia viola o princípio da proporcionalidade, visto que: a) o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot), em sua tríplice configuração: adequação(Geeingnetheit), necessidade (Erforderlichkeit) e proporcionalidade em sentido estrito; e b) o Decreto-Lei n°911/69, ao instituir uma ficção jurídica,equiparando o devedor-fiduciante ao depositário, para todos os efeitos previstos nas leis civis e penais, criou uma figura atípica de depósito, transbordando os limites do conteúdo semântico da expressão “depositário infiel” insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição e, dessa forma, desfigurando o instituto do depósito em sua conformação constitucional,o que perfaz a violação ao princípio da reserva legal proporcional (Vorbehalt des verhältnismässigen Gesetzes).

(...)

Com essas considerações, Senhora Presidente, nego provimento ao recurso”.

O julgamento do referido recurso encontra-se suspenso por causa do pedido de vistas do Ministro Celso de Mello. Conclusão

O mundo globalizado de hoje determina uma abertura dos Estados em prol da proteção dos direitos humanos e da cooperação dos povos.

Nesse contexto, os tratados e convenções internacionais têm ganhado grande importância para a regulamentação jurídica entre os Países do mundo.

Assim, a partir do momento que um Estado assina um tratado, comprometendo-se a seguir suas normas e aplicá-las em seu ordenamento interno, impensável deve ser seu descumprimento.

Ao dispor em seu art. 5º, § 2º, que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, a Constituição Federal passou a admitir três espécies de direitos e garantias: 1) os expressos na Constituição; 2) os implícitos, decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição; 3) os decorrentes de tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Dessa forma, quando o Brasil celebra um tratado internacional sem reservas ou sem declarações interpretativas, ele está aceitando o teor da convenção e comprometendo-se a cumprir todas as suas regras sem ressalvas.

Foi o que ocorreu em relação à Convenção Americana de direitos humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica). O Brasil, ao assinar tal tratado, passou a inadmitir a prisão civil do depositário infiel, uma vez que tal medida é vedada pelo texto internacional.

Conforme brilhantemente exposto pelo Ministro Gilmar Mendes, os tratados internacionais não podem ter um caráter puramente legal, mas devem estar acima das leis, de forma a revogá-las quando com elas incompatíveis. Em relação à Constituição Federal, os tratados não possuem o condão de revogar suas disposições, mas podem servir de base para sua interpretação.

No caso em tela, podemos entender que o preceito constitucional que permite a prisão do depositário infiel volta-se ao ordenamento jurídico interno, validando as normas até então vigentes. Contudo, com a ratificação do Pacto de San Jose, tais normas foram revogadas e harmonizadas com os ditames internacionais, não podendo mais ser reeditadas.

[1] GALINDO, Geroge Rodrigo Bandeira. A reforma do judiciário como retrocesso para a proteção internacional dos direitos humanos: um estudo sobre o novo §3º do art. 5º da Constituição Federal. Material da 2ª aula da Disciplina Constitucional Internacional, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Direito Constitucional – UNISUL–IDP–REDE LFG.

[2]  GALINDO, Geroge Rodrigo Bandeira. Obra citada.

[3] RECURSO EXTRAORDINÁRIO 466.343-1 SÃO PAULO (Rel.: Min. Cezar Peluso)

[4] RECURSO EXTRAORDINÁRIO 466.343-1 SÃO PAULO (Rel.: Min. Cezar Peluso)

[5] RECURSO EXTRAORDINÁRIO 466.343-1 SÃO PAULO (Rel.: Min. Cezar Peluso)

 

Disponível em: http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/6555/Prisao-do-depositario-i...