Prisão civil do menor emancipado


Porrayanesantos- Postado em 07 maio 2013

Autores: 
GOULART, Henrique Gouveia de Melo

 

O ato ilícito pode gerar repercussões penais, cíveis e/ou administrativas. Como são independentes, pode haver ou não condenação nas três esferas, individualmente, ou concomitantemente. 

No Direito Penal, a regra é a prisão, ou seja, a responsabilização recai sobre a liberdade do autor da infração. Já no Direito Civil, as sanções aos atos ilícitos incidem preponderantemente sobre o patrimônio do causador do dano. Nesse sentido, o artigo 927 do Código Civil de 2002:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

A Constituição Federal de 1988, no entanto, elenca dois casos em que as sanções civis incidem sobre a liberdade do devedor. Essas possibilidades estão descritas no artigo 5º, inciso LXVII, cuja redação se transcreve:

Art. 5º, LXVII. Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.

Deve ser ressaltado, no entanto, que o Supremo Tribunal Federal reformulou seu entendimento no final de 2008, no sentido de que a prisão civil se aplica somente para os casos de inadimplemento da pensão alimentícia.

 Consequentemente, houve a revogação da Súmula 619 do STF, que possuía a seguinte redação:

Súmula 619 do STF: “a prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito”.

Essa mudança ocorreu no julgamento dos Recursos Extraordinários (RE 349703) e (RE 466343) e do Habeas Corpus (HC 87585), e acabou culminando, em 2009, com a edição da súmula vinculante n. 25, que preceitua ser “ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”.

A decisão fundamentou-se no entendimento de que o direito à liberdade é um dos direitos humanos fundamentais priorizados pela Constituição Federal, e que sua privação somente pode ocorrer em casos excepcionalíssimos. E a prisão civil por dívida não se enquadraria nestas exceções.

Com o novo entendimento, o STF alinhou-se ao Pacto de São José da Costa Rica que, por sua vez, também prevê a prisão civil somente no caso de inadimplemento voluntário e inescusável de pensão alimentícia.

Assim, atualmente, a única possibilidade de prisão civil por dívida no Brasil decorre do não pagamento voluntário de pensão alimentícia, de modo que analisaremos a conduta do menor de idade apenas com relação a esta hipótese.

Nesta particular, é importante ressaltar que o Código Civil, em seu art. 5º, prevê que “a menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil”. E o próprio artigo 5º, em seu parágrafo único, cuida das exceções, a saber:

Art. 5º (omisiss)

 Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade:

I - pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos;

II - pelo casamento;

III - pelo exercício de emprego público efetivo;

IV - pela colação de grau em curso de ensino superior;

V - pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria.

O nome que se dá a essa cessação de incapacidade para os menores é emancipação.

Segundo o professor Pablo Stolze Gagliano, a emancipação é o instituto por meio do qual o menor obtém o direito de administrar os seus próprios bens. É um ato jurídico que concede a uma pessoa que não tenha atingido a maioridade, a capacidade para a prática dos atos da vida civil, sem a tutela dos pais ou tutor[1].

Ainda segundo o professor Gagliano, podemos enquadrar todas as hipóteses acima na seguinte classificação:

a)   Emancipação voluntária (inciso I, primeira parte): concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial;

b)   Emancipação judicial (inciso I, parte final): por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos;

c)   Emancipação legal (incisos II a V): pelo casamento; pelo exercício de emprego público efetivo; pela colação de grau em curso de ensino superior; pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria.

Pois bem, à exceção da emancipação legal, que independe de qualquer ato do menor, as emancipações voluntária e judicial carregam em si o elemento volitivo.

Sobre a emancipação voluntária, o STF[2] já se manifestou no sentido de que a responsabilidade dos pais não fica afastada. Esse entendimento busca evitar que eventual vítima fique sem ressarcimento: 

RESPONSABILIDADE CIVIL. COLISÃO DE VEÍCULOS. MOTORISTA MENOR EMANCIPADO. IRRELEVÂNCIA. PAI CO-RESPONSÁVEL. AÇÃO PROCEDENTE. O fato de o motorista culpado ser menor emancipado não afasta a responsabilidade do pai, a quem pertence o veículo causador do dano (RT 494:92)

Deste modo, para efeito deste estudo, só iremos abordar a possibilidade de prisão do menor emancipado por expressa disposição legal, ou seja, nos casos em que a plena capacidade civil foi conferida ao menor sem que houvesse qualquer manifestação de vontade.

Nessas hipóteses, quem deve ser responsabilizado pelos atos do menor emancipado? Não parece plausível responsabilizar os pais, haja vista a emancipação em comento decorrer de Lei. Todavia, não há como ignorar a situação de “indivíduo em desenvolvimento”, característico da faixa etária entre 16 e 17 anos.

A Constituição Federal, em seu artigo 227, dispõe que:

 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, nessa mesma linha, ressalta o caráter protecionista que deve ser dado aos adolescentes, exatamente por conta de seu estado atual de aprendizado e formação como indivíduo.

O próprio ECA prevê que as infrações cometidas por adolescentes – que são chamadas de atos infracionais, e não crimes – não podem ser punidas com prisão, mas apenas com as chamadas medidas sócio-educativas.

E a mais grave destas medidas sócio-educativas, sem dúvida alguma, é a internação em estabelecimento educacional. Essa medida, nos termos do artigo 121 do Estatuto, “constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”.

Os artigos 123 e 185 detalham as características do cumprimento da medida:

Art. 123. A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração.

(omissis..)

Art. 185. A internação, decretada ou mantida pela autoridade judiciária, não poderá ser cumprida em estabelecimento prisional.

Apesar de todo esse arcabouço protetivo à disposição do adolescente, entendemos que o menor está sim sujeito a prisão civil pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia, desde que emancipado legalmente. Vejamos as razões:

A uma, porque a natureza da prisão não é penal, ou seja, não se trata de privar a liberdade pelo cometimento de crime ou infração, mas sim em decorrência do inadimplemento de uma obrigação civil. E quem tem capacidade para praticar atos civis, também deve ter a mesma capacidade de arcar com as consequências jurídicas do descumprimento desses atos.

A duas, porque o próprio ECA contempla a possibilidade de privação da liberdade do menor. Ainda que diferente de um estabelecimento prisional comum, a internação possui uma natureza punitivo-pedagógica. Nunca é demais lembrar que a prisão também possui um caráter punitivo e, ao mesmo tempo, ressocializador.

A três, porque a dívida de alimentos, em regra, tem como destinatário um indivíduo altamente vulnerável. Assim, se não houver um meio coercitivo capaz compelir um menor emancipado a pagar alimentos, a injustiça será toda suportada por um outro menor ainda mais carente da proteção social.

A quatro, porque o próprio texto constitucional – com interpretação dada pelo STF –, ao proibir a prisão civil, excepciona apenas uma hipótese: inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia. É, sem dúvida, um direito da mais elevada envergadura, e que deve ser resguardado a todo custo. E o próprio texto constitucional é claro em dizer, em seu artigo 228, que são penalmente inimputáveis os menores de 18 anos. Não há proibição civil nesse sentido.

O fato é que a prisão civil é meio coercitivo de pagamento, e não prisão penal, de modo que, legalmente, é possível a prisão civil do menor emancipado.

Todavia, há que se ressaltar o impacto psicológico e social da questão. Sendo preso um adolescente por estar inadimplente com suas obrigações alimentícias, e sendo colocado em estabelecimento prisional, sem local apartado dos delinquentes, mesmo que a prisão em comento seja relativamente de pouca duração, fica difícil a visualização de convergência entre ECA, Código Civil e Constituição Federal.

Portanto, entendemos que, para que se possa decretar a prisão civil de um menor emancipado legalmente, em razão de dívidas de alimentos, alguns requisitos devem ser observados:

1)   O(a) alimentando(a) deve ser menor e não emancipado(a) – a medida não se justificaria, por exemplo, para prestar alimentos à esposa maior de idade;

2)   O menor emancipado deve ter condições financeiras de prestar alimentos – se a emancipação ocorreu pelo casamento, mas ainda assim o menor não tem qualquer condição de prestar alimentos, a medida excepcional não deve ser decretada;

3)   O estabelecimento a ser recolhido o menor deve guardar, mutatis mutandis, as mesmas garantias previstas no ECA referentes à internação sócio-educativa;

De todo modo, há que se ter sensibilidade na análise de cada caso concreto, de modo a se alcançar um círculo harmônico de decisões, onde o menor não tenha sua vida prejudicada por uma prisão civil, mas que, conjuntamente, tenha consciência de suas responsabilidades enquanto emancipado.

Notas:

[1] GAGLIANO, Pablo Stolze. Teoria Geral do Direito Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2002, v. I.

[2] RT 494/92 e RT 62/108.

 

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