Precisão e simplicidade nas leis para o ciberespaço


Porjuliawildner- Postado em 09 abril 2015

Precisão e simplicidade nas leis para o ciberespaço

Por Ruy de Queiroz

 

 

Quando se trata da formalização de um sistema regulatório para o ciberespaço, como equilibrar precisão com simplicidade? 
Há uma clara tendência, sobretudo nesse novo espaço virtual de convivência que denominamos de ciberespaço, em favor da busca incessante pela precisão no texto de leis e regulamentações, como observa Chris Reed, Professor do Queen Mary College, Londres, autor do livro “Making Laws for Cyberspace” (Oxford University Press, 2012). Em seu artigo “How to Make Bad Law: Lessons from Cyberspace” (The Modern Law Review, 73(6):903-932, Nov 2010), Reed defende que a percepção do suposto benefício da tão cobiçada precisão, a saber, uma maior garantia quanto ao cumprimento, pode ser ilusória. O fato concreto é que leis demasiado complexas têm sérias desvantagens, em particular, o enfraquecimento de seu efeito normativo, além de maior risco da existência de contradição e da alta frequência de revisões e de alterações posteriores.
Com efeito, a busca pela precisão e pela certeza no texto da lei, que em geral se manifesta através de obrigações exaustivamente detalhadas em termos tão objetivos quanto possível, permeia a grande parte das legislações na área da Informática e das Comunicações. Justo numa área que tem experimentado uma evolução avassaladora nos últimos tempos. Uma consequência disso tudo, segundo Reed, é a degradação na qualidade do sistema de leis, no mínimo no que diz respeito à aderência ao princípio de que as regras de um sistema de leis devem ser amplamente eficazes no que concerne à consecução de seus objetivos.
Tome-se, por exemplo, o caso da lei americana “Computer Fraud and Abuse Act” (CFAA) de 1984 (com emendas em 1986, 1989, 1994, 1996, 2001, 2002, e 2008) com base na qual a justiça mandou prender e poderia condenar o jovem ativista da cultura livre Aaron Swartz a até 35 anos de prisão e multa de mais de um milhão de dólares pelo fato de ter compartilhado artigos em domínio público distribuídos sob cobrança pela revista científica JSTOR. Deprimido com a possibilidade de ter que cumprir uma pesada condenação por um ato em prol do acesso livre à informação, o jovem de apenas 26 anos cometeu suicídio em 11 de Janeiro deste ano causando grande consternação em toda a comunidade de tecnologia da informação nos Estados Unidos e no resto do mundo.
A morte de Aaron provocou protestos e reivindicações de legisladores, acadêmicos e usuários de internet em todo o espectro político por reforma na CFAA, incluindo muitos que achavam que Aaron deveria ter sido processado, mas não sob a CFAA e não sob a ameaça de penalidades tão duras. Em 02/04/2013, um grupo de 16 representantes de entidades de defesa dos direitos civis e de algumas universidades americanas, incluindo a American Civil Liberties Union, o Center for Democracy & Technology, a Electronic Frontier Foundation, a George Washington University, o Stanford Center for Internet and Society, enviou uma carta à Câmara dos Representantes declarando-se contrários a um projeto de lei supostamente programado para ser votado ainda em Abril para alterar a CFAA aumentando as penas e ampliando o escopo da conduta punível nos termos da lei.
Tal qual escrita atualmente, a CFAA impõe responsabilidade civil e criminal pelo acesso sem autorização ou “em excesso de autorização” a um computador protegido. Segundo os signatários da carta, a expressão “excede autorização” é vaga e tanto os litigantes civis quanto o governo têm pressionado as cortes a julgar como violação da CFAA sempre que alguém usa computadores de uma maneira que não é do agrado do proprietário do sistema. Isso significa que as empresas privadas estão efetivamente escrevendo leis federais na medida em que elaboram seus “termos de serviço”. Como resultado disso, casos de violação da CFAA têm sido interpostos contra usuários que violam os termos de serviço, funcionários que violam as políticas dos seus empregadores, e clientes que violam licenças de software.
Infelizmente, alegam os signatários, a proposta em discussão é uma expansão significativa da CFAA num momento em que opinião pública está exigindo que a lei seja reduzida. A linguagem da lei reformulada seria problemática no mínimo sob os seguintes aspectos: (i) obliteraria a linha tênue entre ataques criminosos e usuários legítimos que são autorizados "a obter ou alterar a mesma informação", mas que o fariam de um modo ou com um motivo
desfavorecido pelo proprietário do servidor ou expresso em termos unilaterais de serviço ou acordos contratuais; (ii) aumentaria substancialmente as penas máximas para muitas violações para 20 anos ou mais, dando ao Ministério Público um pesado martelo para pendurar sobre indivíduos acusados de crimes de fronteira, e asseguraria que até mesmo pequenas infrações, com pouco ou nenhum dano econômico (que deveriam ser contravenções, no máximo) serão punidas como crime.
Um mês antes da carta supracitada, uma outra declaração de preocupação com o efeito negativo da CFAA sobre a inovação em tecnologia da informação foi enviada por um grupo de representantes de empresas de internet, autodenominado de “uma ampla gama de inovadores da internet”, à Câmara dos Representantes com o objetivo de apoiar os esforços liderados pela Deputada Zoe Lofgren para reformar a CFAA. Segundo eles, a questão é importante não apenas por causa da trágica morte de Aaron Swartz, mas porque a CFAA traz desestímulo à inovação e ao crescimento econômico por ameaçar os desenvolvedores e os empreendedores que criam tecnologia inovadora. Segundo seus signatários, é possível dissuadir os criminosos digitais sem criminalizar as violações contratuais inofensivas e sem impor a responsabilidade criminal a desenvolvedores de tecnologias inovadoras. 
Na busca por um equilíbrio entre precisão e simplicidade do texto da lei, tão apregoado por Chris Reed, parece emblemático o caso da CFAA. Segundo Reed, é comum haver, sobretudo quando se trata do ciberespaço, queixas de que uma lei não é suficientemente clara. E aí os legisladores se esforçam para elaborar leis altamente detalhadas. Mas aí surgem as queixas de que a lei é complexa demais para ser entendida. No final das contas, o que se deseja é um meio-termo. Portanto, uma abordagem alternativa à elaboração de leis que abordem o comportamento e as crenças humanas, ao invés de especificar o cumprimento a nível técnico, pode, segundo Reed, produzir uma lei que não é imediatamente implausível e que atende mais de perto a um teste de qualidade fundamentado nas “demandas da moralidade interna das leis” de Lon Fuller. O sacrifício da precisão excessiva e da certeza é mais do que compensado pela melhoria na capacidade dos sujeitos da lei de compreender as obrigações que lhes são impostas. Nesse caso, a expectativa é a de que o efeito normativo da lei será mais forte e que os objetivos da lei terão mais chances de serem alcançados.
Em suma, se os legisladores quiserem regular o comportamento dos cidadãos do ciberespaço em direções benéficas, a abordagem sugerida por Reed é a de se concentrar nos atores humanos, ao invés de focar nas atividades tecnológicas nas quais esses atores se engajam. E, para conseguir isso, as leis para o ciberespaço terão de: (i) identificar os comportamentos que possam surgir a partir da inovação que se deseja regular; (ii) decidir quais comportamentos devem ser incentivados e quais devem ser desestimulados; (iii) criar mecanismos para persuadir os atores humanos a se comportarem da forma desejada.
 
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE
 
Fonte: http://www.ibdi.org.br/site/artigos.php?id=253
 
Acessado em 9 de abril de 2015