Política pública e legalidade na cobrança pelo uso da água no Brasil


Porwilliammoura- Postado em 29 maio 2012

Autores: 
SPADOTTO, Anselmo José
BUENO, Natália Domingues Elias F.
Resumo

Este trabalho teve por objetivo analisar a política pública na cobrança pelo uso da água à luz da legislação brasileira e da realidade nacional, nos seus aspectos social, econômico e ambiental. Foi realizada uma pesquisa aplicada, com uma abordagem qualitativa, classificada em relação aos objetivos como exploratória. O período experimental foi de 02/11/2010 a 03/04/2011, onde se levantou os dados referentes às notícias e normas legais relacionadas ao objeto deste trabalho. Encontrou-se como resultados que a cobrança pelo uso da água está coberta pelo manto da legalidade, tratando-se, assim, de uma política pública amparada pela Lei. Como política pública, a cobrança pelo uso da água é um os mecanismos econômicos que pode ser utilizado. Isto se deve, além do amparo legal, ao fato de a cobrança ter se tornado um instrumento de incentivo para que os agentes econômicos mudem seu comportamento, assim como, a coletividade em geral.

Palavras-chave: Política, legislação, ambiental.

Introdução

A falta de água é um problema cujos impactos tendem a ser cada vez mais graves caso o manejo ambiental não seja revisto pelos países. No Brasil, uma recente notícia chocou a população fazendo com que se refletisse, ainda mais, sobre esse problema.

Avaliando a oferta e o crescimento da demanda da utilização da água nos 5.565 municípios do país, concluiu-se que 55% das cidades poderão ter problemas no abastecimento de água até 2015. (Agência Nacional de Águas - ANA, 2011).

Observa-se que não se trata de um evento que está distante de acontecer, mas que bate à porta da nação brasileira. Além disso, dados recentes dão conta que mais de um bilhão de pessoas já não têm acesso a água limpa suficiente para suprir suas necessidades básicas diárias. A água quase sempre foi considerada como um recurso natural infindável, mas esse conceito caiu por terra com o crescimento da população mundial.

A Constituição Federal de 1988 tratou de proteger a água, assim como a Lei das Águas (Lei 9433/97). Porém, apesar dessas normas, não se pode dizer que o ser humano tomou consciência de que água é finita enquanto recurso natural. Nesse sentido, não se pode dizer que o brasileiro está apto para aplicar o caput do artigo da Constituição Federal abaixo transcrito.

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações”.

Até pouco tempo ignorado, muitas vezes por conveniências políticas, econômicas e até religiosas, o crescimento populacional é um forte componente que contribui para a escassez de água no Brasil e no mundo. Atrelado a isso está a forte industrialização do último século, não só no Brasil.

A cobrança pelo uso da água é uma resposta pela via da Política Pública para tentar amenizar este panorama das coisas, que se espera não estar vindo tarde demais. Por outro lado, pode ser que esta cobrança não será medida suficiente para estancar esse consumo exacerbado, motivado pelo contínuo crescimento populacional. Nesse sentido, cabe a legislação acompanhar essa mudança social, com normas cada vez mais práticas e menos custosas ao cidadão que cumpre com suas obrigações. Apenas cobrar não parece ser medida justa, é preciso cobrar mais de quem mais onera o meio ambiente; parece urgente cobrar também do Governo, no sentido de políticas públicas para um planejamento familiar, já que a raiz desse problema parece ser o contingente populacional.

Diante de tantas modificações ambientais, sociais e econômicas, torna-se indispensável um estudo mais detalhado sobre esse tema.

O objetivo deste trabalho foi o de analisar a política pública na cobrança pelo uso da água à luz da legislação brasileira e da realidade nacional, nos seus aspectos social, econômico e ambiental.

Desenvolvimento

- Sobre a propriedade da água

Segundo Ribeiro (2002), tratando da propriedade das águas, o social sobrepõe-se ao individual na legislação brasileira, ou seja, o bem estar coletivo é mais importante do que o individual ou de classes específicas. Contemplando a evolução legal com um incremento do social em detrimento ao individual, a alteração no direito de propriedade das águas, antes somente constitucional, foi ampliada pela Lei 9.433/97. Na Constituição Federal, a propriedade foi elencada no artigo 5º, no Título II – “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, fazendo par ao lado da vida, tendo o status de cláusula pétrea, não podendo sofrer alterações.

Existe uma tendência jurídica cada vez maior para se vincular o direito à propriedade ao cumprimento da sua função social, como aparece no artigo 186 da Constituição Federal. A Carta Magna indicou somente a função social da propriedade urbana e rural, não havendo indicativos explícitos sobre a função social da água. Entretanto, em sentido lato sensu, a propriedade de algum bem deve sempre cumprir a sua função social, onde o interesse do indivíduo é suplantado pelo interesse coletivo.

Aperfeiçoando a idéia acima, a Lei 10.257/01, que regulamenta os artigos. 182 e 183 da Constituição Federal e estabelece diretrizes gerais da política urbana, trata explicitamente, no seu artigo 2o, da sustentabilidade das cidades e do equilíbrio ambiental. Desse modo, refere-se à água como propriedade no conjunto das cidades, bem como, na sua preservação na manutenção do equilíbrio ambiental; assim, as cidades devem cumprir sua função social, incluindo a água como constituinte fundamental nessa tarefa.

- Sobre a competência legislativa

Segundo Silva (2000) a União é centralizadora em matéria de águas; a Constituição Federal destaca:

Art. 21. Compete à União:

XIX - instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso;

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

IV - águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.

Portanto, somente por autorização cabe aos estados, desde que autorizados por lei complementar, legislar sobre questões específicas relativas às águas. Assim, se valendo dessa competência, a União editou a lei que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, tratando no seu bojo do seu valor econômico, usos múltiplos da água e prioridades desses usos.

A água, também, se relaciona com princípios constitucionais. Não é possível cumprir o preceito constitucional de uma vida digna sem se considerar a disponibilidade de água de qualidade. A Constituição Federal restringe o domínio das águas entre a União e os Estados Membros, excluindo-se os municípios e os particulares, como assim também especifica a Lei 9.433/97:

Art. 1º. A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:

I - a água é um bem de domínio público;

Evidente, pois, assim como no artigo 99, inciso I do Código Civil, que as águas pertencem ao domínio público da União e dos estados, cabendo aos particulares somente a outorga, mediante pagamento do direito de uso das águas (direito de seu uso); deve-se salientar, assim, que essa outorga, segundo a Lei 9.433/97, não implica a alienação de qualquer forma de bens que são inalienáveis.

- Sobre a legalidade da cobrança pelo uso da água

É importante observar que ninguém paga pela água que usa, mas, sim pelos serviços prestados pelas empresas de abastecimento, ou seja, pela captação, tratamento, reserva e distribuição.

A Constituição Federal de 1988 trata do meio ambiente, determinando sua titularidade como “bem de uso comum do povo”; disciplinando isso no artigo 225. O Código Civil de 2002 traz em seu art. 99, inciso I:

Art.99. São bens públicos:

I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;

Da análise dos artigos acima, observa-se que a água é um bem onde tanto o poder público como a coletividade tem o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Nesse sentido, trata-se de tutela de um bem difuso e atemporal. É um direito transindividual mencionado nas Leis no 7.347/85 e no 8.078/90; também, é uma tutela metaindividual conforme o artigo 225 da Constituição Federal, quando projeta a tutela a um tempo incerto no futuro.

O direito a água de qualidade é um direito imprescritível, inalienável e irrenunciável. É imprescritível, porque é um bem de todos e a prescrição não os alcança. Inalienável e irrenunciável pois é a imagem da própria coletividade, não podendo ser assim disposta em qualquer forma de negociação. Corrobora, nesse sentido, Silva (2000) ao destacar que a água é um bem insuscetível de apropriação privada, por ser indispensável à vida. Também, um olhar atento na Constituição Federal mostrará que ao se preservar a água estará preservando a vida, sendo esta a tutela maior do ordenamento jurídico brasileiro.

A Lei 9.433/97 ao tratar dos instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos declara:

Art. 5º São instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos:

IV - a cobrança pelo uso de recursos hídricos;

Art. 19. A cobrança pelo uso de recursos hídricos objetiva:

I - reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor;

Art. 20. Serão cobrados os usos de recursos hídricos sujeitos a outorga, nos termos do art. 12 desta Lei.

Art. 21. Na fixação dos valores a serem cobrados pelo uso dos recursos hídricos devem ser observados, dentre outros:

I - nas derivações, captações e extrações de água, o volume retirado e seu regime de variação;

II - nos lançamentos de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, o volume lançado e seu regime de variação e as características físico-químicas, biológicas e de toxidade do afluente.

Art. 22. Os valores arrecadados com a cobrança pelo uso de recursos hídricos serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados e serão utilizados (...)

Art. 32. Fica criado o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, com os seguintes objetivos:

V - promover a cobrança pelo uso de recursos hídricos.

Art. 35. Compete ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos:

X - estabelecer critérios gerais para a outorga de direitos de uso de recursos hídricos e para a cobrança por seu uso.

Art. 38. Compete aos Comitês de Bacia Hidrográfica, no âmbito de sua área de atuação:

VI - estabelecer os mecanismos de cobrança pelo uso de recursos hídricos e sugerir os valores a serem cobrados;

Art. 44. Compete às Agências de Água, no âmbito de sua área de atuação:

III - efetuar, mediante delegação do outorgante, a cobrança pelo uso de recursos hídricos;

XI - propor ao respectivo ou respectivos Comitês de Bacia Hidrográfica:

Posteriormente, a Lei 9.984/00, que dispõe sobre a criação da Agência Nacional de Águas – ANA, acrescentou sobre a legalidade na cobrança pelo uso da água:

Art. 4o A atuação da ANA obedecerá aos fundamentos, objetivos, diretrizes e instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos e será desenvolvida em articulação com órgãos e entidades públicas e privadas integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, cabendo-lhe:

VIII – implementar, em articulação com os Comitês de Bacia Hidrográfica, a cobrança pelo uso de recursos hídricos de domínio da União;

IX – arrecadar, distribuir e aplicar receitas auferidas por intermédio da cobrança pelo uso de recursos hídricos de domínio da União, na forma do disposto no art. 22 da Lei nº 9.433, de 1997;

Nesse sentido também caminharam alguns estados. o Estado de São Paulo com a Lei 7.663/91, com a Lei 12.183/05 e com o Decreto 50.667/06; o Estado do Ceará com a Lei 11.996/92; o Estado do Paraná com a Lei 12.726/99; o Estado de Minas Gerais com a Lei 13.199/99; o Estado do Amazonas com a Lei 2.712/01; em ordem cronológica.

Metodologia

Foi realizada uma pesquisa aplicada, com uma abordagem qualitativa, classificada em relação aos objetivos como exploratória. (RICHARDSON, 1985; GIL, 2002). O período experimental foi de 02/11/2010 a 03/04/2011, onde se levantou os dados referentes às notícias e normas legais relacionadas com o objeto deste trabalho. Os dados foram agrupados e classificados em ordem cronológica, possibilitando a confecção de sínteses, como apresentados neste trabalho.

Considerações finais

Desse modo, conforme acima exposto, a cobrança pelo uso da água está coberta pelo manto da legalidade, tratando-se, assim, de uma política pública amparada pela Lei.

Como política pública, a cobrança pelo uso da água é um dos mecanismos econômicos que pode ser utilizado. Isto se deve, além do amparo legal, ao fato de a cobrança ter se tornado um instrumento de incentivo para que os agentes econômicos mudem seu comportamento, assim como, a coletividade em geral.

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Data de elaboração: abril/2011