PARA UM ENTENDIMENTO JURÍDICO DAS RELAÇÕES ENTRE O BRASIL E OS CREDORES ESTRANGEIROS – O ROMPIMENTO COM O FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL


Porjulianapr- Postado em 26 março 2012

Autores: 
Ricardo Antônio Lucas Camargo

 

PARA UM ENTENDIMENTO JURÍDICO DAS RELAÇÕES ENTRE O BRASIL E OS CREDORES ESTRANGEIROS – O ROMPIMENTO COM O FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL

 

Ricardo Antônio Lucas Camargo

 

Doutor em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais

Membro da Fundação Brasileira de Direito Econômico

 

Sob o ponto de vista político-econômico, talvez o acontecimento mais importante do início de 2005 tenha sido a denominada ruptura do Brasil com o Fundo Monetário Internacional – a segunda de que se tem notícia na história -, ocorrida em 29 de março (23: passim). Gostaríamos de tratar dos aspectos jurídicos do tema. Assim, seria necessário retomar alguns conceitos básicos, como a análise econômica do Direito, a dívida externa, o próprio Fundo Monetário Internacional e o uso e o abuso do poder econômico.

Nestes tempos de “neoliberalismo”, vem ganhando prestígio a denominada análise econômica do Direito, escola capitaneada por Richard Posner, Professor vinculado à Escola de Chicago, cujo pressuposto central é a identificação da justiça das decisões com o maior favorecimento da eficiência econômica (14:37; 27:98; 9:14-15). Cristiane Derani identifica como princípios norteadores desta escola a relação entre preço e procura, maximização da utilidade e alocação de recursos que tenderia ao ótimo da eficiência (13:183). Para esta corrente do pensamento jurídico-econômico, a preocupação maior dos governos deveria ser com a inflação, a variação negativa do poder aquisitivo da moeda, foco principal da política econômica adotada no Brasil, sem interrupção, a partir de abril de 1964. Normalmente, apontam-se nela os efeitos negativos no que tange ao depauperamento dos credores (28: 51). Tal variação, contudo, pode ter efeitos positivos no que tange às exportações para países cuja moeda, em relação à local, sofra uma sobrevalorização cambial (2:75). Tal, aliás, o sentido de políticas como a maxidesvalorização verificada no ano de 1983 (17: 189), e que, entretanto, provocou inegáveis prejuízos a empresas que, estimuladas pelo Governo de então, foram buscar financiamentos no estrangeiro engajadas no projeto de obter a baixa dos juros das instituições bancárias nacionais (31:326). Por outro lado, o combate à inflação, pelas suas repercussões no que diz respeito ao pagamento da dívida externa, constitui matéria integrante do conteúdo mínimo das Cartas de Intenções com o FMI (21:204). Para proteger a prestação contratual contra os efeitos da desvalorização, criou-se a cláusula de escala móvel, que se reporta ao preço de determinados bens ou serviços (32:420). Por outro lado, é de se notar que, para fazer face a prejuízos decorrentes da maxidesvalorização, foi criado o Fundo Nacional de Participações, que seria gerido pelo BNDES, com o fornecimento de financiamentos para a constituição de capital de giro com juros de oito por cento ao ano (31:326).

Por dívida externa entendem-se as operações de natureza financeira em que figura como devedora a União, por si ou pelos Estados, Distrito Federal e Municípios e em que o credor não esteja sujeito à soberania do Estado devedor (6:106; 21:212). O porquê de se entabularem tais operações deve ser investigado sob lente diversa daquela que, normalmente, se utiliza em relação aos negócios privados, até porque os dinheiros públicos têm como objetivo principal a viabilização do exercício de competências, constitucionais e legais, das quais não podem aqueles a quem cabe administrá-los demitir-se (15:351). No âmbito das finanças públicas, a Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, no seu artigo 29, III, define como operação de crédito o compromisso financeiro pela Administração em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas (26:66). Maurício Portugal Ribeiro alerta para o fato de que, à falta da geração de compromisso financeiro para o Poder Público por qualquer das operações referidas no inciso III do artigo 29 da Lei Complementar 101, de 2000, não se configura a operação de crédito (24:156). A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional firmou entendimento no sentido de que as Cartas de Intenções não dependem de autorização do Senado, porque são apenas atos de execução da Carta Constitutiva do Fundo Monetário Internacional, já integrante do ordenamento jurídico pátrio, refugindo, pois, ao inciso V do artigo 52 da Constituição Federal e estando sujeito ao disposto na letra “e” do inciso XII do artigo 27 da Lei Federal 10.683, de 28 de maio de 2003, como exercício da competência do Ministério da Fazenda no âmbito internacional (21:214). João Barbalho refere o papel do controle congressual, para o fim de se evitarem, o mais possível, os desacertos na assunção de compromissos internacionais (6: 196; 25:121). Desacertos, estes, que podem ser tanto caracterizadores de mera imprevidência como caracterizadores de verdadeiros impeditivos ao cumprimento das funções estatais normais, e que conduziriam, pois, à própria nulidade dos compromissos em questão. Foi esta, aliás, a idéia-força da Doutrina de Drago – tese segundo a qual a cobrança de dívidas não admite o uso da força, defendida pelo internacionalista argentino Luis Maria Drago (18:12) e combatida por Ruy Barbosa (7: 79). O tema, embora nunca tenha deixado de ser versado como dado histórico, voltou a aflorar quando dos debates das medidas de retaliação adotadas pela União em face da discussão dos contratos da dívida dos Estados-Membros (5:34; 4: 480-481; 11:392-397; 22: 204; 1: 47-48; 19: 80; 9: 12-13).

O Fundo Monetário Internacional, mais comumente referido pela sigla FMI, é organização internacional criada, com lastro no artigo 57 da Carta da ONU, na Conferência Monetária e Financeira da Nações Unidas em Bretton Woods, New Hampshire, EUA,em 1944, mediante Convenção Constitutiva firmada pelos países ali presentes, aprovada pelo Brasil mediante a expedição do Decreto-lei 8.479, de 27 dez 1945, e promulgada pelo Decreto 21.177, de 27 de maio de 1946. Sua sede é em Washington, D. C., tendo as seguintes finalidades institucionais: a) promover a cooperação monetária internacional; b) a expansão e desenvolvimento equilibrado do comércio internacional; c)promoção da estabilidade cambial, mantendo a disciplina do câmbio entre seus membros e evitando depreciações competitivas; d) auxiliar na formação de um sistema multilateral de pagamentos de transações correntes entre seus membros, assim como na eliminação das restrições cambiais que dificultem o desenvolvimento do comércio mundial; e) colocar recursos à disposição de seus membros a fim de lhes possibilitar corrigir desajustes no balanço de pagamentos, sem comprometimento de sua prosperidade nacional ou internacional; f) reduzir o grau de desequilíbrio nos balanços internacionais de pagamentos de seus membros. Valério de Oliveira Mazzuoli observa que o sistema do Fundo foi criado para atalhar a concorrência cambial predatória entre os países conhecida como beggar thy neighbour posta em prática entre 1929 e 1933 (21:198; 25:121). Possui membros fundadores – participantes da Conferência de Bretton Woods - e membros eleitos – que ingressaram posteriormente, respeitadas as condições estabelecidas pelo próprio Fundo -, cabendo salientar que para cada membro é designada uma cota. A direção superior do FMI compete à junta de governadores ou junta governativa, composta de um governador e um suplente, nomeados pelos membros por um período de cinco anos, cabendo recondução. Os diretores executivos, nomeados pelos membros, em número não inferior a doze, responsáveis pelo funcionamento do Fundo e exercendo, para este fim, todos os poderes que a Junta lhes delegar. De acordo com Adherbal Meira Mattos, como dentre os doze diretores executivos do Fundo, cinco são nomeados pelos membros com maiores cotas, há desequilíbrio pela afirmação da hegemonia das grandes potências (20:218). Os diretores executivos, dentre pessoas que não sejam nem governador nem diretor executivo, escolhem o diretor-gerente, que é o presidente da diretoria-executiva, com direito a voto somente para fins de desempate e, por outro lado, é o chefe do quadro de funcionários do Fundo, cabendo-lhe ainda conduzir, sob a orientação dos diretores executivos, os negócios rotineiros da organização. Cabe aqui uma palavra sobre os Direitos Especiais de Saque, conhecidos também pela sigla DES, em inglês Special Drawing Rights (SDR), que constituem um numerário depositado em uma conta especial junto ao Fundo Monetário Internacional, onde os países membros podem buscar suplementos para as reservas oficiais existentes (16:13). Surgiram em 1971, quando os EUA deliberaram unilateralmente deixar a paridade-ouro, permitindo a flutuação livre do dólar. Voltaram-se tais direitos ao atendimento das necessidades de dez Estados membros do Fundo – Alemanha, Bélgica, Canadá, EUA, França, Holanda, Itália, Japão, Reino Unido e Suécia (21: 199). Em 28 de junho de 1959, o Presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek de Oliveira, anunciou o rompimento com o FMI, tendo em vista que o programa de estabilização pretendido pela instituição, que tinha como meta o estabelecimento de uma inflação de 6%, mais a adoção de uma taxa única de câmbio, restrição de salários e a abolição de incentivos aos agricultores, implicaria o retardamento do desenvolvimento dos planos governamentais, especialmente a construção de Brasília (28: passim). Os laços foram reatados em maio de 1960. Embora tecnicamente as Cartas de Intenções não tenham outro objetivo que declararem ao Fundo os Estados as políticas a serem adotadas, com o que seriam desprovidas de caráter coercitivo, o fato é que o desatendimento ao que nelas se contém implica suspensão da liberação dos recursos, salvo anuência caso a caso pelo Fundo. Por quê? Porque as Cartas de Intenções são instrumentos consistente em memorando assinado, entre nós, pelo Presidente do Banco Central do Brasil e pelo Ministro da Fazenda, pelos quais o Estado, ao solicitar financiamento junto ao Fundo Monetário Internacional, explicita a política financeira, monetária e fiscal a ser adotada, bem como políticas ligadas a inflação, déficit público, taxa de emissão de moeda, projeções de crescimento econômico, regulação e proteção de investimentos estrangeiros, conversibilidade de valores, retirada de entraves à livre circulação de bens, serviços e pagamentos estrangeiros, criação de regras de concorrência e organização de mercados em moldes liberal-democratas (21:204). Daí por que tem razão Raul Pont quando diz, em discurso parlamentar proferido na Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul em 30 de março de 2005, que “um contrato com o fundo não é apenas uma negociação financeira, mas envolve um conjunto de orientações de política econômica que os países que assinam tal convênio são obrigados a cumprir”. Antônio Augusto Cançado Trindade chama a atenção para os pronunciamentos do FMI com relação ao aparente conflito entre os programas de ajustamento estrutural e os direitos econômicos, sociais e culturais (30: 251-253), denunciado, por exemplo, nas cláusulas que prevêem a variação de juros puramente potestativos (25:121).

Antes que se venha a dizer que se está a debater tema de interesse mais político do que jurídico, é de se recordar que a preocupação com a degeneração do uso do poder econômico em abuso somente se dissipa tendo em vista os parâmetros postos pelo Direito (27:283). Cabe recordar que poder econômico, em Direito Econômico, é a situação que coloca o agente público ou privado em condições de promover a alteração da realidade econômica, de sorte a governá-la. Seu exercício, para o direito, torna-se relevante tomando-se em consideração a possibilidade de uso ou abuso (3:99). Tem chamado a atenção, ainda, outra forma de desequilibrar a relação dos agentes econômicos no mercado, que é justamente o exercício das atividades ilícitas em caráter empresarial, servindo as atividades lícitas, por vezes com o concurso de instituições financeiras, para se proceder à lavagem de dinheiro (12:17). Ela Wiecko Volkmer de Castilho salienta que a evasão fiscal em níveis elevados, a afronta a normas concernentes a segurança do trabalho, previdenciárias e societárias permitem a constituição de verdadeiras ilhas de riqueza ilegal, que propiciam chegar a uma posição de supremacia na economia (10:53). Waldírio Bulgarelli, no que tange aos contratos empresariais, considera o poder econômico privado elemento inafastável da análise deste gênero de atos jurídicos (8:17). Se, no âmbito das relações entre particulares, o problema do abuso do poder econômico tem aflorado, que dizer, então, das relações com o poder público, quando este corra, literalmente, o risco de se submeter integralmente aos interesses do credor, como salientou Nailê Russomano (25:123)?

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