Os "riscos" como paradigma do Direito Penal moderno


Pormathiasfoletto- Postado em 17 maio 2013

Autores: 
MEDEIROS, Carlos Henrique Pereira de

 

 

Breve exposição do Direito Penal moderno, visto sobre o paradigma da concepção de "sociedade mundial de riscos" do sociólogo alemão Ülrich Beck.

Há um desassossego no ar. Temos a sensação de estar na orla do tempo, entre um presente quase a terminar e um futuro que ainda não nasceu. O desassossego resulta de uma experiência paradoxal: a vivência simultânea de excessos de determinismo e de excessos de indeterminismo. Os primeiros residem na aceleração da rotina. As continuidades acumulam-se, a repetição acelera-se. A vivência da vertigem coexiste com a de bloqueamento. A vertigem da aceleração é também uma estagnação vertiginosa. Os excessos do indeterminismo residem na desestabilização das expectativas. A eventualidade de catástrofes pessoais e coletivas parece cada vez mais provável. A ocorrência de rupturas e de descontinuidades na vida e nos projectos de vida é o correlato da experiência de acumulação de riscos inseguráveis. A coexistência desses excessos confere ao nosso tempo um perfil especial, o tempo caótico onde ordem e desordem se misturam em combinações turbulentas. Os dois excessos suscitam polarizações extremas que, paradoxalmente, se tocam. As rupturas e as descontinuidades, de tão freqüentes, tornam-se rotina e a rotina, por sua vez, torna-se catástrofe. (Boaventura de Sousa Santos)

INTRODUÇÃO

Quando a sociedade moderna percebe que seus padrões coletivos de vida, de progresso, de controlabilidade de catástrofes naturais e de exploração da natureza são drasticamente alterados pelo conhecimento de que a ocorrência interligada de processos de desenvolvimento como a globalização, a individualização, a revolução de gênero, o desemprego e, principalmente, a manipulação do superdesenvolvido processo tecnológico emanava “riscos” de produção de efeitos colaterais que, se concretizados, poderiam dar causa a catástrofes de globais, como incidentes nucleares, buraco na camada de ozônio, poluição das águas e do ar por agentes químicos, quedas de aeronaves, guerras químicas, biológicas ou atômicas e etc., seus institutos fundamentais e suas instituições de controle social, além de toda a coletividade que a integra, são postos em movimento no sentido de se antever e, assim, conter toda e qualquer conduta, individual ou coletiva, que traga em seu contexto hipotético a idéia de um “risco”.

O Direito Penal, tradicionalmente utilizado como meio de intervenção estatal na repressão de condutas socialmente indesejadas, passa a ser um dos mecanismos mais utilizado pelo Estado na luta pela contenção preventiva de condutas hipoteticamente arriscadas. Seu campo de atuação é, portanto, largamente expandido, ou seja, passa assim o Direito Penal a intervir onde até então lhe era estranho, como a economia, o meio ambiente, as relações de consumo, a manipulação genética, etc.

No entanto, ao se expandir para cumprir os ideais prevencionistas, norteados pelo ideal dos riscos, o Direito Penal viu-se diante de dilemas estruturais internos, uma vez que esses novos campos demandavam um atuar completamente distinto de seus mecanismos. Deste modo, o arcabouço principiológico fundamental do Direito Penal tradicional passou a ser redesenhado para que surgisse um “Direito Penal do Risco”, um idéia de Direito Penal eficiente no combate preventivo aos novos riscos, altamente punitivista e flexionador, por vezes até abolicionista, dos princípios e pressupostos de garantias de liberdade fundamentais do que se pode chamar “Direito Penal Clássico” (uma contraposição à concepção ideal do “Direito Penal de riscos”).

Esta nova concepção de “Direito Penal do Risco” gerou, paradoxalmente, pontos conflitantes na estrutura fundamental do Direito Penal contemporâneo. Pontos estes que o afetam de maneira tal que se chega a questionar a legitimidade, a necessidade e a finalidade dessa atuação expansionista. Isto, além de causar dúvidas sobre quais os rumos que serão tomados pelo Direito Penal contemporâneo em um futuro próximo. Se de um lado, a realidade contemporânea carece dessa atuação preventiva penal, pois enfrenta processos de transformação social que refletem, dentre outros efeitos, perplexidade, desconcerto, dúvida e espanto geral, portanto, carente de mecanismos eficientes de atuação em face da nova realidade que se insurge, por outro, a reformulação do Direito Penal, nos moldes como se apresenta hodiernamente, causa também perplexidade, pois princípios e garantias fundamentais, que funcionam como obstáculos para a intervenção estatal penal na esfera de liberdade individual, passam a ser incondicionalmente flexionadas e, muitas vezes, até desprezados pela busca de uma aludida eficiência no combate aos “riscos”. Uma busca que, contudo, não consegue alcançar a almejada eficácia e, assim, pode vir a transformar o Direito Penal em um mecanismo puramente “simbólico”.

Vale, portanto, uma primeira aproximação ao problema. Mas esta, destarte, se dará aqui apenas de modo expositivo e limitado, ou seja, apenas de modo introdutório (o objetivo de presente escrito).

 

§ 1º. UM DIREITO PENAL ORIENTADO AO ANTROPOCENTRISMO

O assim chamado por Winfried Hassemer “Direito Penal clássico” [1] remota seus pilares fundamentais nos idos do século XVIII, apogeu dos ideais iluministas, momento em que homens como Montesquieu, Rousseau e Voltaire, dentre outros de não menor expressão, exercem elevada influência nas reformas do então vigente Direito Penal absolutista. Reclamava-se independência do Poder Judiciário, liberdade política, igualdade entre os cidadãos e uma completa renovação dos costumes judiciários e das práticas dos Tribunais.

Neste clima, no ano de 1764, o Marques de Beccaria publica em Milão o opúsculo Dei Delitti e delle pene, obra que assenta as primeiras bases fundamentais (e científicas) do Direito Penal. Beccaria parte da idéia do contrato social rousseauniano e afirma princípios indissolúveis para que se assegurasse o respeito à personalidade humana. Assim, como forma de oposição à arbitrariedade dos Tribunais absolutistas, defendia a conveniência de leis penais claras e precisas, que sequer o julgador as poderia interpretar. Combatia a pena de morte, a tortura e o processo inquisitório. Pugnava pela aplicação de penas certas, moderadas e proporcionais ao dano causado pelo fato criminoso. Afirmava o fim exclusivamente preventivo da pena.

Mais tarde, a influência da obra garantista de Beccaria na revolução francesa, faz surgir a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e os Códigos Penais de 1791 e 1810. Estes Códigos, desde então, passam a exercer influência nas legislações penais de inúmeros países. [2]

O arcabouço axiológico jurídico-penal se firma então em princípios e pressupostos como a legalidade, a razoabilidade, a proporcionalidade, a necessidade, a subsidiariedade, a fragmentariedade, a ultima ratio, a lesividade, a ofensividade, a dignidade, a causalidade, a culpabilidade, a pessoalidade, o bem jurídico, tipicidade, dentre outros. E a partir de então, a dogmática inicia o aprimoramento sistemático da Ciência Penal. No Brasil, o Direito Penal vivencia a influência da escola tecnicista italiana, notadamente de Arturo Rocco, e, em 1940, positiva o Código Penal.

Na Alemanha e em grande parte da Europa continental é vivenciado o longo embate científico travado entre Causalistas e Finalistas. Buscava-se comprovar que a sistemática de sua respectiva teoria se sobressairia frente à outra, porque melhor esclareceria as problemáticas internas da Ciência Penal. Neste cenário de discussões de problemas sistemáticos, mormente, internos da Ciência Penal, a Dogmática penal chega aos anos 60, quando então começa a se ocupar da Política Criminal, todavia, ainda de maneira singela. E assim, voltada quase que exclusivamente a problemas internos de sua sistemática, chega a Ciência jurídico-penal aos anos 80.

§ 2º. BECK E A SOCIEDADE MUNDIAL DO RISCO

No início dos anos 80, o sociólogo alemão Ülrich Beck, após um esgotante estudo sobre os fenômenos emanados da sociedade moderna ao longo de seus processos de desenvolvimento, concebe uma nova configuração para a sociedade contemporânea, ele passa a denominá-la “sociedade mundial do risco”. [3]

Beck percebe que o complexo estágio de desenvolvimento da sociedade contemporânea possui como marca a incessante manifestação de conflitos institucionais. Conflitos estes que surgiram no momento em que a sociedade moderna tomou conhecimento que a ocorrência interligada de seus processos de desenvolvimento, como a globalização, a individualização, a revolução de gênero, o desemprego e, principalmente, o desenvolvimento tecnológico, trouxe consigo “riscos” de surgimento de colaterais de amplitudes globais, capazes, inclusive, de colocar em xeque a existência da vida humana no planeta. Cita como exemplo, a ocorrência de incidentes como a degradação da camada de ozônio, o efeito estufa, a contaminação das águas e do ar por agentes químicos, o desmatamento desenfreado das florestas, a acumulação de lixo tóxico, incidentes nucleares como o de Chernobyl e do Bhopal, quedas de aeronaves e a constante ameaça de armas químicas e biológicas, entre outros.

Beck aponta que, enquanto a sociedade moderna absorvia os ganhos oriundos desses processos de desenvolvimento e, assim, neles aplicava mais e mais técnicas de desenvolvimento, paradoxalmente, não enxergava aos riscos de concreção dos efeitos colaterais que estes mesmos processos fabricavam. Além disso, uma vez que tais riscos eram desconhecidos, estavam à margem de ser objeto de estudo das ciências. Nesse sentido, Beck classifica a modernidade em dois períodos distintos, o primeiro, a modernidade simples, ocorrente nos idos do período industrial, e o segundo, a modernidade reflexiva, momento em que a sociedade volta-se às bases paradigmáticas da primeira modernidade e passa a enxergar que os processos de desenvolvimento produzem ameaças que questionam as bases estruturais de existência da própria sociedade. [4]

O processo de reflexividade de Beck funda-se na confrontação das bases paradigmáticas da modernidade com as conseqüências da modernização. Assim, compreende-se a modernidade reflexiva como “o estágio em que as formas contínuas de progresso técnico-econômico podem vir a se transformar em autodestruição, em que um tempo de modernização destrói o outro e o modifica”, portanto, “a questão trazida pela reflexividade é a alteração das bases da sociedade industrial por ela mesma”. [5]

Logo, a sociedade é posta em movimento no sentido de se antever e evitar que se efetivem os efeitos colaterais, agora experimentados e, portanto, compreendidos. “O que anteriormente parecia funcional e racional aparece agora como uma ameaça à vida e, portanto, produz a legítima disfuncionalidade e irracionalidade. Com isso, as instituições abrem-se para o questionamento político de seus fundamentos”. [6]

O núcleo central dessa sociedade reside principalmente nos, assim chamados, “riscos tecnológicos”, porque quando tais riscos são reconhecidos como derivados de decisões humanas, tornam-se o centro da tomada de decisões e de elaboração das leis de progresso tecnológico e científico e, portanto, passam aos riscos a fundamentar as “questões políticas”. Ingressam também na agenda política temas conexos aos mecanismos de controle e distribuição dos riscos, como, particularmente, a questão da ineficiência dos mecanismos atuais e da busca de novas alternativas.

Em suma, a teorização de Beck aponta duas ordens de conseqüências derivadas do processo de modernização: (i) a liberação dos riscos da produção industrial, que emergiram como efeitos colaterais indesejados e que assumiram dimensão global; e, (ii) o reconhecimento social desses riscos, que passam a ser culturalmente percebidos, construídos, midiatizados e transpostos à agenda político-ambiental global.

Este segundo momento traz à tona uma série de implicações. A primeira, é que o conhecimento aumentado da sociedade do risco coincide com modelos lineares da tecnocracia, dos modelos sobre o progresso, a segurança e o controle que fascinaram a sociedade e comunidade científica durante a primeira modernidade. O progresso técnico-científico e seus efeitos, a segunda implicação, assumem contornos públicos. E, como terceira implicação, manifesta-se o conflito no âmbito das definições dos riscos, suas conseqüências e as relações de causalidade que os envolvem, quando então passa a sofrer ferrenhos questionamentos a idéia de tais definições permanecerem ainda como monopólio dos experts. Mas o ponto crítico ocorre quando a sociedade industrial enxerga sobre o prisma do processo de modernização a existência riscos inasseguráveis e transforma-se então em uma sociedade de riscos conflituosa e autocrítica. Isto, mesmo diante do contínuo e normal funcionamento das instituições, moldadas estruturalmente em bases industriais. “A percepção da globalidade dos efeitos colaterais, principalmente, no que se refere à questão nuclear e às catástrofes ecológicas, e o poder destrutivo das ‘megatecnologias’, trazem dificuldades às idéias de ordem e controle a partir de estratégias estatais de atuação”. [7]

Neste momento, a sociedade é posta em movimento, o estado de incerteza proveniente dos novos riscos toma conta do debate público e as instituições de controle da sociedade passam a ser questionadas. A partir de então os campos das ciências sociais, em especial as jurídicas, passam a ser orientados por uma nova tendência, a de expandir o espaço de atuação de intervenção estatal para evitar que o maior número possível de condutas, que tenham um conteúdo hipotético de risco, portanto indesejadas, não se realizem. Direciona-se esta nova tendência especialmente ao Direito Penal, o mecanismo de intervenção estatal mais rigoroso.

 

§ 3º. OS “RISCOS” E A REFORMULAÇÃO JURÍDICO-CRIMINAL

As reformas legislativas, após a compreensão da complexidade e amplitude dos “grandes riscos modernos”, passam a se orientar numa Política que tende a se valer dos institutos do aparato penal como mecanismo de controle preventivo contra tais riscos.

Assim, o final do século XX – quando até então, a Ciência jurídico-penal voltava-se quase que com exclusividade aos seus problemas sistemáticos internos - é marcado por uma luta que se funda na busca por mecanismos de controle sociais eficientes - embora de eficácia prescindível – para que se restabelecesse o clima de desassossego que permeou o contexto social. Desassossego este marcado por um estado de medo e incerteza, consubstanciado na idéia dos novos riscos fabricados nos idos da primeira modernidade.

O contexto político da sociedade mundial do risco faz crescer uma demanda social por segurança normativa, eminentemente direcionada ao aparato penal, o que da vazão ao surgimento da expansão do campo de atuação do Direito Penal. Passa-se a exigir do Direito Penal uma função promocional de valores que orientam as relações humanas em sociedade, uma função garantidora das gerações futuras e uma função regulamentadora de temas até então estranhos a ele, como o meio-ambiente, a manipulação genética, a economia e as relações de consumo.

Isso traz uma série de implicações à sistemática do Direito Penal e que vertem à Política Criminal o encargo de se incumbir de normativizar a diversidade e a complexidade dos fenômenos sociais conexos à idéia dos novos riscos. E, assim, elabora-se uma nova formalização do Direito Penal, agora mais rigorosa e abstratamente conformada à linguagem jurídica. Nasce, portanto, a idéia de um “Direito Penal do Risco”.

Esse novo Direito Penal tem suas bases fundamentais balizadas em três linhas mestras: (i) a ampliação sistemática do campo de atuação do aparato penal, abrangendo relações antes estranhas a ele; (ii) a tutela a bens jurídicos supra-individuais; e, (iii) a flexibilização de critérios de imputação.

A base fundamental do Direito Penal do moderno agarrou-se, mormente, na complexidade das relações interpessoais que emanavam, hipoteticamente, em seu contexto fático o risco de concreção de efeitos colaterais, de forma que a tutela penal passou a ser orientada a intervir preventivamente na liberdade individual e, assim, coibir toda e qualquer conduta que apresentasse qualquer contexto arriscado.

Nesse diapasão, a Política Criminal passou a se valer, na proteção a bens jurídicos universais, da utilização massiva de delitos de perigo abstrato, tipos penais em branco, tipos penais vagos, indeterminados e de conceitos porosos, delitos de mera transgressão ou desobediência, delitos omissivos culposos e, ainda, inovou trazendo à luz os chamados “delitos cumulativos”. [8] Inovou, também, ao relativizar o conceito de culpabilidade para imputar condutas penais a entes despersonalizados e ao alterar significativamente os mecanismos processuais penais.

 

§ 4º. UMA PEQUENA APROXIMAÇÃO REFLEXIVA

As tendências políticas trazidas à baila com a formulação do Direito Penal do Risco fizeram emergir uma série de conflitos estruturais na Ciência jurídico-penal, até então basilarmente orientada nos axiomas concebidos desde os tempos iluministas e mantidos até a atualidade. Tais conflitos podem ser elencados, basicamente, em três campos internos:

1º) Enquanto que o Direito Penal clássico é orientado por princípios que minimalizam sua intervenção repressiva na esfera das liberdades individuais, como a fragmentariedade, a subsidiariedade e a ultima ratio, o Direito Penal do risco orienta-se em princípios que aumentam significativamente o campo e alteram o momento de tal intervenção, como a prevenção, a segurança e a experimentação;

2º) Enquanto que o Direito Penal clássico lança mão de seus institutos para coibir o cometimento de condutas socialmente indesejadas e firma-se, assim, nos postulados da legalidade, razoabilidade, proporcionalidade e lesividade ao bem jurídico, o Direito Penal do risco, ao intervir preventivamente nas relações sociais na busca por impedir que comportamentos hipoteticamente arriscados não se realizem, flexiona significativamente tais postulados e chega, inclusive, por vezes deles prescindir;

3º) Enquanto o Direito Penal clássico balizava seus critérios de imputação em premissas como determinação do bem jurídico, ofensividade da conduta, efetividade da lesão ao bem jurídico tutelado, dignidade do objeto destinatário da tutela, relação de causalidade entre a conduta e o resultado, significância do resultado, necessidade de intervenção penal, reprovabilidade social da conduta, imputabilidade, pessoalidade do autor, subsunção da tipicidade do fato, dentre outros, o Direito Penal do risco, basicamente, prescinde de todos estes postulados para, assim, alcançar a “eficiência”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se pôde notar, o Direito Penal do Risco abandona a idéia de lesão ao bem jurídico como centro gravitacional do sistema para criminalizar as inobservâncias aos deveres de conduta organizada. Neste contexto, os conceitos de culpabilidade são repensados e reformulados para abarcar não mais somente pessoas físicas, mas também entes despersonalizados, as pessoas jurídicas. Há uma alteração substancial no conceito de bem jurídico tutelado. Deixa-se para trás a idéia de proteção a bens jurídicos concretos, palpáveis, determinados e intimamente ligados ao ser humano para abarcar a proteção de bens universais, indeterminados e, por vezes, distantes da idéia antropocêntrica.

No contexto do Direito Penal do risco (orientado na frenética prevenção dos novos riscos) emerge conflitante a idéia de se calcar a imputação penal em princípios racionais de individualização de responsabilidades e autoria singular quando se sabe que algumas espécies dos novos riscos se originam em causas difusas, indeterminadas, massivamente praticadas ou de acidentes em organizações complexas, e assim, tornam-se prescindíveis os rígidos critérios utilizados pelo Direito Penal clássico para auferir os pressupostos de imputação como relação de causalidade, o dolo, a negligência, o erro, a consciência do ilícito. Ademais, os pressupostos subjetivos do injusto mostram-se inconciliáveis com a idéia de punição ao ente jurídico despersonalizado.

A Ciência jurídico-penal, assim, rompe o século XXI em um clima altamente crítico de conflitos estruturais internos. A teoria dos novos riscos abalou as bases fundamentais do Direito Penal de forma tal que, basicamente, os embates teóricos passam a ter como objetivo, em uma análise global, de um lado, a reestruturação básica desta ciência, de modo que venha ela a se adaptar aos novos fenômenos da sociedade e, de outro, a reafirmação dos valores fundamentais do arcabouço jurídico-penal clássico, de modo deslegitimar a atuação do Direito Penal nesses novos campos. Não se tem a certeza de qual caminho deve se seguir, mas, desde já se tem como certo que o Direito Penal contemporâneo, em verdade, vive uma grande incerteza. Mas estes são pontos para um outro momento.

[1] SCHÜNEMANN, Bernard e outros. In Coleccion de estúdios n. 7. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana. Trad. Manuel Cancio Meliá (Universidad Autônoma de Madri). Bogotá, Colômbia: Departamento de Publicaciones de la Universidad Externado de Colombia, 1998, p. 15.

[2] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 14ª ed., rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 40-41.

[3] BECK, Ülrich, La sociedade del riesgo: Hacia una nueva modernidad. Barcelona, España: Paidós, l998, p. 198

[4] Beck disserta que “a reflexividade da modernidade produz não somente um a crise cultural de orientação, como alegam os comunitaristas, mas uma crise institucional fundamental e mais extensivamente profunda na sociedade industrial tardia. Todas as instituições fundamentais (como os partidos políticos e os sindicatos, mas também os princípios causais da responsabilidade na ciência e no direito, as fronteiras nacionais, a ética da responsabilidade individual, a ordem da família nuclear, e assim por diante) perdem suas bases e sua legitimação histórica. Por isso, a reflexividade da modernidade é equivalente ao prognóstico dos conflitos de valor e de difícil resolução sobre os fundamentos do futuro". In: BECK, Ülrich, GIDDENS, Antony, LASH, Scott, Modernização reflexiva: Política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, p. 211-12.

[5] “... Esse confronto, entretanto, não nasceu de uma necessidade de se opor ao modelo industrial, nem significou uma opção que se pôde escolher ou rejeitar no decorrer das disputas políticas. Surpreendentemente, derivou do superdesenvolvimento da modernidade industrial, que acabou gerando ameaças que não puderam ser assimiladas pela racionalidade da época industrial. Ou seja, o confronto, que é a base da reflexividade, significa que a incompreensão e a impossibilidade de assimilação da racionalidade da sociedade do risco pelo sistema da sociedade industrial. De maneira cumulativa e latente, os fenômenos da sociedade do risco produzem ameaças que questionam e, finalmente, destroem as bases da sociedade industrial”. In: MACHADO, Marta Rodriguez de Assis e outros. Monografias IBCCRIM; 34. Sociedade de risco e direito penal: uma avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 30-31.

[6] MACHADO, Marta Rodriguez de Assis e outros. Monografias IBCCRIM; 34. Sociedade de risco e direito penal: uma avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 31.

[7] Ibid., p. 32-35.

[8] KUHLEN, Lothar. Umweltstrafrecht – auf de Suche nach einer neuen Dogmatik, ZStW, 105 (1993), p. 697-716. In: SÁNCHEZ, Jesús Maria Silva. La expansión del derecho penal. Aspectos de la política criminal em las sociedades postindustriales. Madri: Civitas Ediciones, 1999, p. 109.

 

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