Os contratos em dólar e a sua revisão


Porwilliammoura- Postado em 27 março 2012

Autores: 
BESSA, Leonardo Roscoe
Os contratos em dólar e a sua revisão

Leonardo Roscoe Bessa

Titular da 2a Promotoria de Defesa do Consumidor do Ministério Público do Distrito Federal


            A mudança repentina na economia atingiu diretamente os consumidores que celebraram contratos de execução diferida com cláusula de reajuste vinculada à variação cambial do dólar norte-americano. Os advogados das instituições financeiras e, também, o senso comum proclamam: o contrato é lei entre as partes; o que foi pactuado deve ser cumprido. Não é bem assim. Aliás, historicamente, nunca foi.

            O Código de Hamurabi, de aproximadamente 2000 anos antes de Cristo, previa no artigo 48: ‘‘Se alguém tem um débito a juros e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta de água não cresce o trigo no campo, ele não deverá, nesse ano, dar trigo ao credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não pagar juros esse ano’’.

            Em Roma, nos seus treze séculos de história, existia previsão de alteração do conteúdo dos contratos, caso houvesse modificação das condições iniciais que estimularam o acordo.

            Na Idade Média houve uma intensa preocupação com a denominada lesão nos contratos, especialmente com a usura.

            Somente após a Revolução Francesa, que exaltou o individualismo e a liberdade quase absoluta, foi que a possibilidade de revisão contratual foi deixada de lado por alguns anos. O homem, sendo livre e igual, poderia, manifestando sua vontade, contrair obrigações perante terceiros. Por algum tempo não se falou mais na cláusula rebus sic stantibus. O Código Civil francês de 1804 explicitou: ‘‘O contrato é lei entre as partes’’.

            O pacta sunt servanda tornou-se verdadeiro dogma. Mas nem mesmo no século XIX acreditava-se piamente que o contrato tinha uma força cogente e absoluta. Se o acordo fosse celebrado sob algum vício de consentimento, poderia ser invalidado. Também negavam-se efeitos ao contrato com objeto ilícito, violador de norma de ordem pública.

            Mas, especialmente após as duas grandes guerras deste século, os juristas e legisladores voltam a atenção ao conteúdo do contrato. Percebe-se que a igualdade entre os homens, declarada pela Revolução Francesa, era apenas formal. A desigualdade econômica, cada vez mais contundente, permitia abusos contratuais. Havia, de regra, imposição das cláusulas que privilegiavam uma das partes. Novas técnicas de contratação surgiram, onde a vontade passa a mero elemento formal. Destaca-se, no contexto, o contrato de adesão: uma das partes — economicamente mais forte — elabora o contrato, cabendo à outra simplesmente aderir ou não às disposições preestabelecidas, sem qualquer possibilidade de discussão do seu conteúdo.

            Renasce, no início do século, a possibilidade de revisão dos contratos. Diversos países europeus promulgam leis com referência expressa à ‘‘teoria da imprevisão’’. A resolução ou revisão dos contratos passaria a ser prevista em caso de agravamento imprevisto e exagerado para uma das partes.

            No âmbito desse movimento de dirigismo contratual, atenção diferenciada foi conferida aos contratos em que uma das partes é naturalmente vulnerável, como o empregado, nas relações trabalhistas, e o consumidor, nas relações de consumo.

            Especialmente na década de 70, vários países do mundo ocidental, preocupados com a vulnerabilidade do consumidor, promulgam leis visando à sua proteção contratual: Suécia (1971), Dinamarca e Venezuela (1974), Alemanha e México (1976), Inglaterra (1977), França (1978), Áustria (1979), Irlanda (1980), Luxemburgo (1984), Espanha (1984) e Portugal (1985).

            O Brasil, na mesma linha, edita, em 1990, a Lei nº 8.078 que, em seu art. 6º, V, expressamente prevê, como direito básico do consumidor, a possibilidade de revisão do conteúdo dos contratos em razão de fatos supervenientes que os tornem excessivamente onerosos. Ressalte-se que não é requisito para a revisão contratual a imprevisibilidade do fato novo, ensejador da vantagem exagerada. Basta que haja uma onerosidade excessiva para o consumidor.

            Os contratos de leasing de veículos com reajuste da prestação vinculado ao dólar constituem-se, atualmente, situação que ilustra fielmente a onerosidade excessiva do contrato. Em janeiro, o dólar valorizou-se em aproximadamente 70% (setenta por cento) frente ao real, enquanto ainda se convive com inflação mensal próxima de zero.

            No Brasil inteiro, o Judiciário tem concedido, em ações individuais e coletivas, liminares impondo a substituição do reajuste pelo dólar por índice que reflita a taxa inflacionária.

            Entre as discussões que o tema tem gerado, além da afirmação simplista e apressada de que o reajuste pelo dólar estava previsto contratualmente e, portanto, deve ser seguido, ouve-se outro argumento falho. As empresas captaram recursos no exterior para aquisição dos veículos arrendados. Possuem, portanto, obrigações em dólar, sendo injusto impor-lhes o ônus decorrente da desvalorização do real.

            Ora, a instituição que realmente contraiu empréstimo no exterior fez por conta e risco próprios, intencionando pagar juros menores do que obteria no país. Com assessorias jurídicas muito bem estruturadas conheciam, ou deveriam conhecer, o art. 6º, V, da Lei nº 8.078/90, que consagra a possibilidade de revisão do contrato em favor do consumidor, caso este se torne excessivamente oneroso. Se, mesmo conhecendo esta circunstância específica da lei de proteção do consumidor, o empresário optou pelo dólar, eventual prejuízo será resultado do risco da atividade empresarial.

            Antes de assumir o empréstimo, a empresa já sabia desta opção do legislador em proteger a parte mais fraca no contrato. A lógica jurídica é clara. O consumidor é destinatário final do produto. Adquire o bem por necessidade. A empresa fez a opção pelo dólar como estratégia empresarial para aumentar seus lucros. Ao contrário do dito popular, juridicamente, a corda deve arrebentar do lado do mais forte.
 

Extraído do site do jornal Correio Braziliense

 


Informações Bibliográficas

Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
BESSA, Leonardo Roscoe. Os contratos em dólar e a sua revisão. Site do Curso de Direito da UFSM. Santa Maria-RS. Disponível em: <http://www.ufsm.br/direito/artigos/consumidor/contrato_dolar.htm.htm>.

Acesso em: 27.MAR.112