A ordem constitucional de gratuidade de ensino em estabelecimentos oficiais e os cursos de pós-graduação lato sensu nas universidades públicas


Porwilliammoura- Postado em 10 junho 2013

Autores: 
JARDIM, Rodrigo Guimarães

A autonomia universitária não consiste em poder suficiente para que as universidades públicas cobrem pelos cursos de especialização sob o argumento de que não integram o conceito de ensino.

Resumo: De um lado, as universidades públicas defendem que a cobrança pelos cursos de especialização (pós-graduação lato sensu) é o único meio de manter estes e os de mestrado e de doutorado, e, de outro, a sociedade, titular dos serviços de ensino oferecidos pelas universidades, reclama a gratuidade do ensino prevista na Constituição Federal de 1988. Mesmo que a exigência de gratuidade cause um golpe muito forte nas finanças das universidades públicas, é de se considerar inconstitucional, ao menos no atual panorama, a cobrança por elas realizada nos cursos de especialização, pois nenhuma constituição pode ser interpretada dissociada da realidade social do seu povo, e não se pode permitir que a realidade social negue vigência à Constituição Federal de 1988.

Palavras-chave: Direito à educação. Ensino gratuito. Autonomia universitária. Cursos de pós-graduação lato sensu. Cursos de especialização.


I. Considerações iniciais.

De forma genérica, é possível afirmar que uma das finalidades do Direito é buscar a paz social e a harmonização nas relações entre indivíduos e ente estes e o Estado. Muitas controvérsias levadas à apreciação do Poder Judiciário possuem reflexos imediatos apenas entre as partes, mas, em se tratando de interesses difusos e coletivos, uma decisão pode alterar a sociedade como um todo.

O presente estudo é um dos casos que exorbita as partes litigantes no Recurso Extraordinário nº 656.800, porque, de um lado, uma universidade pública defende que a cobrança pelos cursos de especialização (pós-graduação lato sensu) é o único meio de manter estes e os de mestrado e de doutorado, e, de outro, a sociedade, titular dos serviços de ensino oferecidos pelas universidades públicas e representada pelo Ministério Público Federal, reclama a gratuidade do ensino prevista na Constituição Federal de 1988.

 

Este é o tema deste ensaio: a gratuidade dos cursos de especialização nas universidades públicas.


II. O direito ao ensino gratuito e os cursos de especialização em universidades públicas.

Na ação civil pública que originou o Recurso Extraordinário nº 656.800, uma universidade federal sustentou a cobrança de mensalidades na pós-graduação lato sensu com base no Parecer nº 364/2002/CNE/CES, do Conselho Nacional de Educação. Esse opinativo sustenta a tese de que

os cursos de pós-graduação lato sensu, assim denominados em decorrência dos atributos que os diferenciam do que é, por essência e natureza, stricto, na dimensão dos conhecimentos e saberes desenvolvidos nos graus posteriores à graduação, são, em maioria, eventuais e caracterizam-se como especialização ou aperfeiçoamento “têm objetivo técnico profissional, sem abranger o campo total do saber em que se insere a especialidade”, como assinala a Informação já citada, da Coordenação Geral de Legislação e Normas do Ensino Superior, da SESu.

Estes cursos concedem certificados, mas não conferem graus acadêmicos. Nesta distinção formal entre instrumentos que capacitam legalmente (diplomas e graus decorrentes) e os que concedem certificados de aproveitamento particulariza-se a destinação da qualificação que se lhes assegura. Os primeiros decorrem do direito que a Constituição reconhece aos cidadãos da gratuidade do ensino; os segundos, provêem necessidades individuais, não caracterizam qualquer processo contínuo ou regular de preparação formal, tampouco constituem requisitos obrigatórios e academicamente complementares à graduação.[1]

Além disso, o Parecer nº 364/2002/CNE/CES não deixa escapar a inexistência de recursos para a manutenção gratuita dos cursos de pós-graduação:

A permanência da gratuidade importaria em ônus injustificável aos cofres públicos, caracterizando impertinente uso de recursos que, a rigor, teriam como prioridade a sua destinação para as funções essenciais da universidade, precisamente aquelas que se enquadram nos limites do preceito constitucional da gratuidade. Ignorar esta circunstância e as prioridades sociais a serem contempladas implicaria na transferência de recursos exíguos e, em certo sentido, inelásticos para a sustentação de atividades assessórias, em prejuízo das suas funções mais relevantes, ao contrário do que inspirou a nossa Constituição.[2]

Essa tese foi vencedora na primeira instância do já citado processo judicial, cuja sentença baseou-se, além da inexistência de recursos, na gradualidade do ensino gratuito. Entendeu-se que “o último passo da atuação estatal na seara universitária [é] o fornecimento gratuito de especializações, eis que estas, por sua natureza (voltadas ao mercado de trabalho), encontram-se mais próximas do interesse particular, e conseqüentemente distantes do público, que os cursos de graduação e de pós-graduação stricto sensu.”[3]

No entanto, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região reformou a sentença, principalmente com base no enunciado da Súmula Vinculante nº 12, do Supremo Tribunal Federal, assim redigida: “a cobrança de taxa de matrícula nas universidades públicas viola o disposto no art. 206, IV, da Constituição Federal.”[4]

Nessa linha, considerando a tese apresentada pelo Parecer nº 364/2002/CNE/CES e tendo a Constituição Federal de 1988 conferido gratuidade ao ensino público em estabelecimentos oficiais, mostra-se pertinente discorrer acerca do alcance, isto é, sobre o significado do termo “ensino”, pois, delimitando-se essa expressão, estar-se-á, num juízo preliminar, definindo o objeto da prestação gratuita devida pelo Estado.

Ainda que a Constituição Federal de 1988 ora empregue a palavra “ensino”, ora a palavra “educação”, não se vislumbra, para este estudo, distinção jurídica entre ambas, principalmente porque a doutrina tem aplicado um conceito mais abrangente para educação. Para Celso de Mello, o conceito de educação

é mais compreensivo e abrangente que o da mera instrução. A educação objetiva propiciar a formação necessária ao desenvolvimento das aptidões, das potencialidades e da personalidade do educando. O processo educacional tem por meta: (a) qualificar o educando para o trabalho; e (b) prepará-lo para o exercício consciente da cidadania. O acesso à educação é uma das formas de realização concreta do ideal democrático[5].

Além disso, os direitos fundamentais não estão elencados taxativamente no art. 5º da Constituição Federal de 1988. Em verdade, ao prever no seu § 2º que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, a Carta Constitucional abre o catálogo de direitos fundamentais. Assim,

o direito à educação, consoante parcela relevante da doutrina, consiste num direito fundamental de segunda dimensão, incluindo-se, como regra, entre os “direitos positivos” ou “prestacionais”, pois impõe ao Estado uma obrigação de agir em prol do particular.Nos termos do artigo 205 da Constituição Federal de 1988, a prestação devida pelo Estado é a estruturação e a disponibilização de um sistema de ensino que, nos termos do constituinte, vise ‘ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho’. Além disso, a interpretação sistemática da Constituição permite concluir que tal direito é ainda mais importante, pois está diretamente relacionado aos Princípios e Objetivos Fundamentais da República.[6]

No idioma pátrio, ensinar significa transmitir quaisquer dos ramos do conhecimento a outrem. Assim, uma simples conversa informal pode ser entendida como “ensino”, vez que a comunicação entre duas pessoas encerra a difusão de experiências e, em última escala, a transmissão de conhecimento, de modo geral, sobre a vida.

Na acepção jurídico-constitucional “ensino” coloca-se como gênero, tendo como espécies (a) o nível de conhecimento a ser transmitido, (b) o momento em que se dará essa transmissão, (c) a exigência ou não de contraprestação por quem adquire o conhecimento, sua (d) obrigatoriedade ou facultatividade, sua (e) regularidade ou não, como (f) normal ou especializado e (g) pela entidade mantenedora[7].  Na presente controvérsia, relevam-se as espécies de conhecimento a ser transmitido (a) e a regularidade ou não (b).

Regular é o ensino que deve ser oferecido sempre, período após período, independente da demanda, como, por exemplo, o fundamental ou o médio. De outro lado, ensino não regular é aquele oferecido de forma não periódica, que depende da existência de uma demanda, e, mesmo existindo a demanda, não há obrigação no seu oferecimento. São exemplos de ensino não regular os cursos de pós-graduação.

A subdivisão em níveis da espécie de conhecimento a ser transmitido consta, respectivamente, nos incisos I, II, IV e V do art. 208, da Constituição Federal de 1988, qual seja: ensino fundamental, ensino médio, ensino pré-escolar, e ensino de nível mais elevado. Por sua vez, a Lei nº 9.394/96, intitulada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, unificou o ensino pré-escolar - por ela denominado infantil -, o fundamental e o médio no ensino básico, e denominou o de nível mais elevado como ensino superior (art. 21). O ensino superior subdivide-se em sequencial por área de saber, graduação, pós-graduação e extensão, sendo que a pós-graduação compreende os cursos de especialização, aperfeiçoamento, mestrado e doutorado (art. 44).[8]

Diante de regulamentação da Constituição Federal de 1988 realizada pelo legislador, tem-se que os cursos de especialização integram a pós-graduação e esta, por sua vez, integra o ensino superior, estando, em consequência, ao alcance de incidência da norma constitucional que impõe a gratuidade. Ademais, a (ir)regularidade do ensino não é suficiente para afastar a gratuidade, por absoluta inexistência de distinção constitucional.

Outrossim, merece análise a tese de que os estabelecimentos oficiais, com base na autonomia universitária prevista no art. 207 da Constituição Federal de 1988, poderiam excluir os cursos de especialização do conceito de ensino, sob, o já explicitado, argumento de que as especializações visam qualificar o indivíduo para o trabalho e não evoluir as pesquisas que favorecem toda a sociedade. Haveria, nessa tese, um conflito aparente entre dois dispositivos constitucionais. A dúvida é: trata-se de um conflito de princípios, um conflito de regras ou um conflito entre regra e princípio?

A doutrina clássica prega que a distinção entre princípios e regras se dá através da estrutura, do modo de aplicação e da solução para os conflitos. As regras seriam compostas por preceito primário e secundário, “se e quando” se verificar o preceito primário tem-se como consequência o preceito secundário (hipotético-condicional)[9], enquanto que os princípios seriam estruturados sem essa aludida fórmula. As regras ou seriam válidas e, portanto, aplicáveis ou inválidas e inaplicáveis, ao passo que a aplicação de um princípio não excluiria totalmente outro, nem lhe tornaria inválido[10]. No conflito - abstrato - de regras, uma excluiria a outra ou o legislador deveria inserir uma cláusula de exceção, ao passo que, no conflito - concreto - de princípios, um seria aplicado em maior e o outro em menor proporção, sem se excluírem[11].

Modernamente discute-se a distinção proposta por Humberto Ávila. Segundo ele, em primeiro lugar é necessário ressaltar a dissociação entre dispositivo e norma: dispositivo é a redação legal, o texto tal qual posto pelo Poder competente; enquanto norma é o produto do texto interpretado. Por essa razão um mesmo texto pode originar uma regra ou um princípio. Numa explicação simples, a regra é entendida como a decisão tomada pelo legislativo exigindo determinado comportamento (para a promoção de um fim), enquanto o princípio seria a elevação de um fim a ser alcançado, mas sem exigir um comportamento para tanto, cuja definição (do comportamento), dentre os vários possíveis, ficaria a cargo do intérprete[12].

Nessa senda, a autonomia universitária como regra representa o poder conferido pela Constituição Federal de 1988 - art. 207 - de auto-organização e auto-normatização didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, obedecidas, evidentemente, a própria Constituição e a lei, até porque sabidamente autonomia não se confunde com soberania[13]. Já o princípio possível de ser extraído do art. 207 é o princípio da liberdade científica, isto é, a liberdade das universidades nas áreas de ensino e pesquisa independente de intervenção ou influência estatal, que ocorreu durante o regime militar no Brasil não só como meio de controle da opinião pública, mas também como censura aos intelectuais.

Do art. 206, IV, da Constituição Federal de 1988, que prevê a gratuidade de ensino, é possível extrair como regra - de forma até óbvia - que o ensino oferecido pelos entes públicos é gratuito; ao passo que os princípios ali presentes coincidem com os objetivos fundamentais da República, quais sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, e promover o bem de todos sem qualquer forma de distinção.

Por tudo isso, não se vislumbra colisão entre as normas do art. 206, IV, e do 207 da Constituição Federal de 1988. Muito pelo contrário, essas normas caminham juntas para a produção dos mesmos fins. A autonomia universitária não consiste em poder suficiente para que as universidades públicas excluam a incidência da gratuidade do ensino dos cursos de especialização sob o argumento de que não integram o conceito de ensino. A autonomia universitária protege o desenvolvimento da pesquisa da intervenção estatal para que os objetivos fundamentais da República sejam alcançados. A gratuidade do ensino visa universalizar o acesso a esse conhecimento protegido, igualmente visando a promoção dos objetivos fundamentais da República.


III. Considerações finais

Dentre os dispositivos constitucionais analisados, demonstrou-se que a norma do art. 206, IV, é um direito fundamental em razão da abertura do catálogo, oportunizada pelo § 2º do art. 5º, bem como que a decisão tomada pelo constituinte originário da gratuidade de ensino em estabelecimentos oficiais tem como fim a promoção dos objetivos fundamentais da República, previstos no art. 3º da Constituição Federal de 1988.

Mais: demonstrou-se que a norma que prevê a discutida gratuidade confere um direito prestacional e também um direito negativo. Não é facultado ao Estado limitar o acesso ao ensino superior - que está, sim, dentro do conceito de ensino - àqueles que detêm maior poder econômico, pois para esses existem as universidades particulares. A preocupação da norma é com aqueles que não podem custear o aperfeiçoamento profissional.

É verdade que não existe direito absoluto, nem mesmo os fundamentais o são. Entretanto, nesse caso, a antítese apresentada pelo ente público não é apta a limitar o direito à gratuidade dos cursos de especialização. Sequer há um conflito entre ele e a autonomia universitária, pois ela não confere às universidades públicas o poder de subjugar a Constituição Federal de 1988 para cobrar por um serviço que o constituinte originário quis prestado de forma gratuita. Sobre outro ponto de vista, a autonomia universitária não permite que ente público sem poder de tributar institua tributo sem lei, sem anterioridade.

Assim, mesmo que a solução proposta cause um golpe muito forte nas finanças das universidades públicas, é de se considerar inconstitucional, ao menos no atual panorama, a cobrança por elas realizada nos cursos de especialização, pois nenhuma constituição pode ser interpretada dissociada da realidade social do seu povo, e não se pode permitir que a realidade social negue vigência à Constituição Federal de 1988.


Notas

[1] BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer nº 364/2002/CNE/CES. Interessado: Secretaria de Educação Superior. Relator: Conselheiro Edson de Oliveira Nunes. Brasília, 06 de novembro de 2002. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/2002/pces364_02.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2013.

[2] Ibidem.

[3] BRASIL. Justiça Federal no Estado do Rio Grande do Sul. Ação de Conhecimento nº 2003.71.00.077369-9. Autor: Ministério Público Federal. Réu: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Julgador: Juiz Rafael Wolff. Porto Alegre, 14 de maio de 2007. Disponível em <http://www.trf4.jus.br>. Acesso em: 20 abr. 2013.

[4] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Cível nº 2003.71.00.077369-9. Recorrente: Ministério Público Federal. Recorrido: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Relator: Juiz Márcio Antônio Rocha. Porto Alegre, 28 de outubro de 2008. Disponível em <http://www.trf4.jus.br>. Acesso em: 20 abr. 2013.

[5] MELLO FILHO, José Celso. Constituição federal anotada. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1986 , p. 533.

[6] JARDIM, Rodrigo Guimarães. Ações afirmativas e o dever de agir do Estado para garantir o direito fundamental à educação. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 18 abr. 2013. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.43029>. Acesso em: 27 abr. 2013.

[7] RANIERI, Nina Beatriz Stocco. Aspectos jurídicos da autonomia universitária no Brasil. Revista CEJBrasília: CJ F, v. 9, n. 31, p. 19-30, dez./2005.

[8] SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 6. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 793-794.

[9] LARENZ, Karl. Methodenlehre der rechtswissenschaft. 6. ed. München, Beck, 1991 apud ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 35-36.

[10] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Tradutor Nelson Boeira, coleção Justiça e direito, p. 39.

[11] ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1993, p. 88.

[12] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 71-76.

[13] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição federal comentada e legislação constitucional. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 676.





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