O voto do analfabeto e a cidadania


Pormarina.cordeiro- Postado em 11 maio 2012

Autores: 
BOAVENTURA, Luís de Camões Lima

São muitas as causas históricas que influenciaram no surgimento e crescimento do fenômeno do analfabetismo no Brasil. De antemão, torna-se importante asseverar que o analfabetismo, como fato social que é, só pode ser entendido em relação dialética com as ideologias nascidas na infra-estrutura social que determinaram e continuam a determinar a política educacional brasileira.

Desde o período colonial que a taxa de analfabetismo no Brasil alcança números absurdos. Entretanto, não é da mesma época a preocupação da sociedade brasileira com os efeitos prejudiciais de tal índice. Estudos revelam que o início dessa preocupação é advindo de meados do século XX, século no qual a taxa de analfabetismo chegou a 65%, fazendo com que a parcela da população brasileira apta a exercer o direito de votar fosse extremamente diminuta.

A origem mais longínqua do analfabetismo no Brasil está na própria formação da economia colonial, onde uma minoria de brancos proprietários dirigia o trabalho de milhares de escravos. Nesse Brasil sem mobilidade social, os jesuítas se encarregaram de implantar um sistema educacional voltado para os filhos da elite, ao passo que catequizavam índios e negros para torná-los mão-de-obra submissa, uma vez que a política educacional estava repleta de ideologias e métodos que perpetuavam a condição de inferioridade de negros e índios, contrariando o sentido básico da educação, que é de possibilitar ao educando um quadro de ascensão social.

Como bem lembra Ana Maria Araújo Freire, mesmo depois da laicização do ensino, com a expulsão dos jesuítas do Brasil pelo Marquês de Pombal, o elitismo prosseguiu. Tudo que foi criado no Brasil no período pré-Independência, dentre tais criações podemos citar as aulas avulsas e os colégios instalados, era, única e exclusivamente, dirigido aos filhos dos portugueses brancos e em condições de sustentarem seus estudos [01].

Torna-se importante frisar que, com o advento do Império independente, concretizado na Constituição de 1824, mudou-se o discurso educacional, porém a prática continuou a mesma. O ensino fundamental passou a ser responsabilidade do Estado liberal, como assim denominava-se o Estado brasileiro. Ocorre, porém, que o país manteve o privilégio da formação de bacharéis. Mesmo se declarando liberal, visto que bradava aos quatro cantos que respeitava e protegia a liberdade de expressão, o país continuava a desenvolver uma economia escravista, deduzindo-se então que o governo não tinha interesse algum em reconhecer os direitos dos escravos e muito menos em alfabetizá-los.

Somente na segunda metade do século XIX é que se chegou à insignificante taxa de 10% da população livre em idade escolar freqüentando uma escola primária. Até o ano de 1889, ano em que se proclamou a República no Brasil, índios, negros e mulheres estavam excluídos do sistema educacional. O Brasil era, portanto, uma sociedade dual, na qual a relação social principal era a travada entre o senhor e o escravo [02].

Tão antigas quanto o analfabetismo no Brasil são as tentativas de erradicá-lo. Em contrapartida, essas diversas tentativas de erradicação do analfabetismo em pouco se diferenciaram uma das outras, ocorrendo mudanças, na maioria das vezes, apenas quanto ao nome do programa, haja vista que a metodologia aplicada e os resultados obtidos foram insuficientes para que houvesse uma transformação no quadro social do país passível de erradicar o analfabetismo.

As conseqüências dessa situação se concentram na enorme legião de analfabetos no Brasil, o que contribui em muito para a inexistência de uma democracia plena, haja vista que, com essa condição, o indivíduo não pode utilizar a leitura e a escrita para entrar em contato com o mundo que o cerca, prejudicando, de forma quase completa, o exercício da cidadania.

A cidadania, por sua vez, pode ser definida como a capacidade que o indivíduo social tem de exercitar seus direitos e obrigações da forma mais plena possível, plenitude esta que contribua de forma significativa para a construção de uma sociedade democrática, na qual se respeitem as condições sociais das pessoas e que estas possam exercer seu papel cívico de forma consciente, dispensando à ‘função cidadã’ a sua devida importância. Dessa maneira, aflora-se a dúvida se um analfabeto está em condições aptas a exercer tais direitos e observar suas obrigações.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art.14, inciso II, alínea "a)" do parágrafo primeiro, postula que é facultativo ao analfabeto o alistamento eleitoral e o direito de voto. Tal permissão veio antes da promulgação daquela carta constitucional, mais precisamente no ano 1985, através da Emenda Constitucional n°25.

A origem de tal permissão constitucional deve-se ao elevado índice de analfabetismo no Brasil. Por isso, os legisladores, observando a necessidade de buscar um meio para que essa grande parcela da população brasileira fosse representada politicamente, decidiram estender o direito de sufrágio ao analfabeto. Entretanto, torna-se imperioso não esquecermos a análise criteriosa da importância ou não do voto do analfabeto.

A princípio, pode argüir que fica extremamente prejudicado o direito de votar caso o eleitor não tenha a capacidade de utilizar a leitura e a escrita para atingir o mínimo grau de consciência política, através da qual o eleitor, alicerçado em informações indispensáveis ao exercício do voto, contribua, na forma mais saliente possível, para a escolha dos representantes que irão dirigir o rumo do seu Estado.

Na escala hierárquica dos problemas sociais brasileiros, situa-se no topo da urgência e relevância o analfabetismo. Pela educação, o homem passa a exercer seus direitos políticos, podendo escolher conscientemente seus representantes e cobrar, eficazmente, a prática das providências necessárias para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária.

Coloca-se, comumente, como uma das causas da defasagem do sistema político atual do Brasil o elevado número de analfabetos. Um fato que comprovaria tal afirmação é a existência, até hoje, de práticas eleitorais que nos causam espanto como, por exemplo, a compra de votos ou captação ilícita de sufrágio. Fazendo uma análise superficial, podemos até afirmar que é bem mais fácil um analfabeto ter seu voto comprado em época de eleições do que um cidadão alfabetizado, visto que aquele não tem a oportunidade de se informar acerca dos candidatos. No entanto, entendemos que o analfabeto é alvo quase certo dessa prática eleitoral ilícita não necessariamente pela sua condição de iletrado, mas sim pela sua condição econômica. Assim, devido à grande parte dos analfabetos encontrar-se em situação de miséria periclitante, um "punhado" de feijão vale bem mais do que um voto para os que vivenciam a miséria extremada.

Não se pode esquecer que para que se obtenha a existência de um sistema democrático na verdadeira acepção de sua expressão, devemos partir do pressuposto da incidência da participação de todos os indivíduos sociais nos destinos do governo. Tal participação dar-se através dos direitos políticos.

Pode-se definir direitos políticos como sendo o complexo de direitos que possibilita à pessoa a participar livremente dos negócios políticos do seu Estado, investindo-se, dessa maneira, de um direito público subjetivo. Vale ressaltar que os direitos políticos encontram-se estritamente atrelados, do ponto de vista objetivo, à configuração da cidadania.

O iminente jurista Pimenta Bueno explicita bem a noção acima ao definir direitos políticos como sendo um conjunto de: "...prerrogativas, atributos, faculdades, ou poder de intervenção dos cidadãos ativos no governo de seu país , intervenção direta ou indireta, mais ou menos ampla, segundo a intensidade do gozo desses direitos. São o Jus Cívítatís, os direitos cívicos, que se referem ao Poder Público, que autorizam o cidadão ativo a participar na formação ou exercício da autoridade nacional, a exercer o direito de vontade ou eleitor, o direito de deputado ou senador. a ocupar cargos políticos e a manifestar suas opiniões sobre o governo do Estado" [03].

Depreende-se do conceito exposto que os direitos políticos podem expressar-se de forma direta ou indireta, dependendo do sistema democrático adotado pela Lei Maior de cada país.

No caso do Brasil, adota-se o sistema de democracia semi-direta, conforme se extrai da análise do disposto no parágrafo único do artigo 1º da nossa Carta Constitucional de 1988: "Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição"

Conforme dispõe o caput do artigo 14, a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos. O sufrágio é universal quando o direito de voto é estendido a todos os nacionais, independentemente de fixação de condições de nascimento, econômicas, culturais ou outras condições especiais. Ressalte-se que a existência de alguns requisitos, como idade mínima, nacionalidade e necessidade de alistamento prévio não retiram o caráter de universalidade do sufrágio.

Uma prova de que o direito de sufragar encontra-se previsto constitucionalmente como universal é a possibilidade de alistamento e voto do analfabeto, o qual detém tais direitos de forma facultativa, nos termos do já mencionado artigo 14, § 1º, inciso II, alínea "a", da Constituição Federal de 1988. Vale ressaltar que os analfabetos permanecem privados de capacidade eleitoral passiva, o que significa que não poderiam disputar qualquer cargo eletivo.

De todas as análises que se possa fazer acerca do voto do analfabeto, a que desperta maior polêmica é, sem dúvida, a indagação sobre sua qualidade. Não são poucos os países nos quais esta questão tem levantado fortes debates.

Nas democracias da atualidade, o problema do voto dos analfabetos merece uma cuidadosa reflexão, em virtude da complexidade social que envolve. Os opositores à extensão do direito de voto aos analfabetos defendem-se sob o argumento de que, em muitos casos, a quantidade numérica das pessoas sem preparo pode influenciar negativamente nas decisões políticas.

Tais argumentos não levam em consideração um princípio inerente à qualquer democracia, qual seja, a igualdade.

Segundo essa corrente, partir-se da idéia de uma democracia concebida com estreita observância ao princípio da igualdade seria sobrelevar um cunho meramente quantitativo em detrimento do caráter qualitativo, ingerindo em grave erro de que democracia seria o resultado da quantidade cada vez maior de eleitores. Desse modo, achar que democracia exige considerar iguais letrados e iletrados seria levar longe demais o conceito da igualdade democrática, contrariando a realidade da vida e os objetivos da política.

A nosso sentir, não encontra respaldo tal argumentação. Nada nos impõe pensar que o voto advindo dos alfabetizados seja exercido com plena consciência cívica, eis que podem estar inseridos num contexto de interesses escusos.

Outrossim, hodiernamente, no Brasil, não se vota mais através de cédulas, nas quais o eleitor escreve o nome do candidato, mas sim por via do sistema de urnas eletrônicas, em que, ao se digitado o número do candidato escolhido, simultaneamente aparece a foto do mesmo. Dessa maneira, o sigilo a consciência do voto são observados.

Ademais, cumpre observar que um dos mais basilares princípios que gravitam a órbita dos direitos políticos é o princípio da representatividade. Conforme mencionado, o contingente populacional de analfabetos no Brasil é elevadíssimo. Nesse esteio, não seria difícil vislumbrar que qualquer candidato eleito no Brasil sem a participação dos analfabetos no sufrágio restaria carente de representatividade, posto que não contou com o apoio formal (através do voto) de boa parte população nacional.

Dessa forma, resta-nos corroborar pela legitimidade do direito de voto do analfabeto como uma forma de exercício cívico.

Em um plano ideal, poderíamos até defender a obrigatoriedade de voto ao analfabeto, equiparando-o aos alfabetizados, que têm o direito-dever de sufragar como forma de equilibrar o direito do cidadão, alfabetizado ou não, de cobrar do Estado ações benéficas e efetivas.

No entanto, tendo-se em vista a realidade, propagamos, no plano concreto, a mantença do direito de voto do analfabeto como uma facultatividade, haja vista a condição de miséria de grande parte da população brasileira iletrada, a qual vive, na maioria das vezes, de trabalho informal, o qual é realizado até mesmo nos dias de eleição. Dessa maneira, obrigar o analfabeto a votar seria, talvez, límitá-lo da renda valiosa daquele dia de eleição.

Não se pode olvidar, por fim, que vários analfabetos exercem seu direito de voto com o afã de colaborar com a melhora do Estado, bem como se organizam em associações comunitárias, que dentre outras ações, reivindicam realizações dos que foram investidos de poder através do voto. Dessa maneira, dentro da concepção de qualidade do voto, incabível a generalização de que o voto do analfabeto é desprovido de qualidade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A cidadania ativa. São Paulo. ABDR. 3ª edição, 1998.

BUENO, Pimenta. Direito Público brasileiro e análise da constituição do império. Rio de Janeiro: Nova Edição, 1958.

DEMO, Pedro. Participação é conquista: noções de política social participativa. São Paulo. Cortez, 1988.

FREIRE, Ana Maria Araújo. Analfabetismo no Brasil: da ideologia do corpo à ideologia nacionalista, ou de como deixar sem ler e escrever desde as Catarinas (Paranguaçu), Filipas, Madalenas, Anãs, Genebras, Apolônias e Grácias até os Severinos. São Paulo: Cortez: 1989.

HABERMAS, Jürgen; tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

LAGÔA, Ana. O Quadro-Negro do Analfabetismo no Brasil. Nova Escola. Belo Horizonte, ano V, n. 37, março. 1990.


Notas

  1. FREIRE, Ana Maria Araújo. Analfabetismo no Brasil: da ideologia do corpo à ideologia nacionalista, ou de como deixar sem ler e escrever desde as Catarinas (Paranguaçu), Filipas, Madalenas, Anãs, Genebras, Apolônias e Grácias até os Severinos. São Paulo: Cortez: 1989.
  2. LAGÔA, Ana. O Quadro-Negro do Analfabetismo no Brasil. Nova EscolaBelo Horizonte, ano V, n. 37, p.11, março, 1990.
  3. BUENO, Pimenta. Direito Público brasileiro e análise da constituição do império. Rio de Janeiro: Nova Edição, 1958.