O STF e a constitucionalidade do artigo 5º da lei de Biossegurança


Porrayanesantos- Postado em 16 maio 2013

Autores: 
MARTINOTTO, Fernanda

 

A Lei nº 11.105/2005 trata de diversas matérias. No entanto apenas um artigo foi arguido como inconstitucional pelo Procurador-Geral da República.

O artigo 5º e seus parágrafos da Lei de Biossegurança, que tratam especificamente da utilização, para fins de pesquisa e terapia de células-tronco obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização em vitro, foi tido por inconstitucional pelo Procurador Geral da República sob a alegação de que estar-se-ia violando o direito à vida, patrimônio protegido constitucionalmente.

A tese central sustentada na ação direta de inconstitucionalidade é a de que a vida começa na fecundação e que com liberação da pesquisa em células-tronco violariam dois preceitos constitucionais: o direito à vida e à dignidade da pessoa humana.

O subscritor da Ação Direta de Inconstitucionalidade sustenta, ainda, que:

a) o zigoto, constituído por uma única célula, é um “ser humano embrionário”;

b) é no momento da fecundação que a mulher engravida, acolhendo o zigoto e lhe proporcionado ambiente próprio para seu desenvolvimento;

c) a pesquisa com células-tronco adultas é, objetiva e certamente, mais promissora do que a pesquisa com células-tronco embrionárias.

Assim, os argumentos desenvolvidos pelo proponente da Ação Direta de inconstitucionalidade podem ser resumidos em uma proposição: “o embrião é um ser humano cuja vida e dignidade seriam violadas pela realização das pesquisas que as disposições legais impugnadas autorizam”.1

Sustenta sua tese de inconstitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança, com a visão de alguns geneticistas que afirmam que a vida começa com e na concepção, entre eles Dernival da Silva Brandão:

O embrião é um ser humano na fase inicial de sua vida. É um ser humano em virtude de sua constituição genética específica própria e de ser gerado por um casal humano através de gametas humanos – espermatozóide e óvulo. Compreende a fase de desenvolvimento que vai desde a concepção, com a formação do zigoto na união dos gametas, até completar a oitava semana de vida.2

O Procurador Geral da República continua sua tese, citando Elizabeth Kipman Cerqueira, perita em sexualidade humana e especialista em logoterapia: “O zigoto, constituído por uma única célula produz imediatamente proteínas e enzimas humanas e não de outra espécie. É biologicamente um indivíduo único e irrepetível, um organismo vivo pertencente à espécie humana”.3

De sua parte, em sede de informações, o Presidente da República defende a constitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança. Para tanto, ratifica o parecer do advogado público Rafaelo Abritta, do qual extraímos o seguinte trecho: “com fulcro no direito à saúde e no direito de livre expressão da atividade científica, a permissão para utilização de material embrionário, em vias de descarte, para fins de pesquisa e terapia, consubstancia-se em valores amparados constitucionalmente”.4

Não é como pensa o atual chefe do Ministério Público Federal, Antônio Fernando de Souza que, atuando na condição de fiscal do Direito, concluiu pela inconstitucionalidade dos dispositivos legais atacados na ação de inconstitucionalidade nº 3510.

Para que possamos entender, de maneira clara, o que propõe a Lei nº 11.105/2005, apresenta-se uma síntese do que ela dispõe. A Lei permite a realização de pesquisa com células extraídas de embriões, mas também exige que:

a) os embriões sejam obtidos de tratamentos para fertilização im vitro;

b) sejam embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos;

c) o consentimento dos genitores;

d) a aprovação da pesquisa pelo comitê de ética da instituição.

Além disso, a Lei nº 11.105/2005 proíbe:

a) a comercialização dos embriões, células e tecidos;

b) a clonagem humana;

c) a engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano.

Após a apresentação da ação Direta de Inconstitucionalidade, (ADI 3510) para julgamento do Supremo Tribunal Federal, vários movimentos científicos, religiosos e populares passaram a defender seus pontos de vista.

O tema foi considerado tão complexo e polêmico que pela primeira vez na história do Supremo Tribunal Federal realizou-se uma audiência pública para discutir a matéria com os mais renomados especialistas das mais diversas áreas do conhecimento.

O que se buscou com a realização da audiência pública e com o recebimento das amici curiae da Conectas Direitos Humanos, Centro de Direitos Humanos – CDH; Movimento em Prol da Vida – MOVITAE; Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – ANIS, além da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, entidades de representatividade social, foi dar legitimidade `à decisão a ser proferida na ADI 3510: “decisão colegiada tão mais legítima quanto precedida da coleta de opiniões dos mais respeitáveis membros da comunidade científica brasileira no tema”.5

Notadamente dois posicionamentos distintos emergiram da audiência pública e das amici curiae: uma que defende que a vida começa com e na fecundação e que, portanto, pesquisar em células-tronco embrionárias seria violar o direito à vida garantido constitucionalmente; e outra que afirma que o embrião somente alcança características de pessoa humana com a implantação no útero de uma mulher, não havendo que se falar em violação ao direito à vida.

Mayana Zatz, professora de genética da Universidade de São Paulo, defendeu esse posicionamento na audiência pública realizada no Suprem Tribunal Federal:

Pesquisar células embrionárias obtidas de embriões congelados não é aborto. É muito importante que isso fique bem claro. No aborto temos uma vida no útero que só será interrompida por intervenção humana, enquanto que, no embrião congelado, não há vida se não houver intervenção humana. É preciso haver intervenção humana para a formação do embrião, porque aquele casal não conseguiu ter um embrião por fertilização natural e também para inserir no útero. E esses embriões nunca serão inseridos no útero. É muito importante que se entenda a diferença.6

Já Lenise Garcia, professora do Departamento de Biologia da Universidade de Brasília, defendeu que

Nosso grupo traz o embasamento científico para afirmarmos que a vida humana começa na fecundação, tal como está colocado na solicitação da Procuradoria. [...] Já estão definidas, aí, as características genéticas desse indivíduo; já está definido se é homem ou mulher nesse primeiro momento [...]. Tudo já está definido, neste primeiro momento da fecundação. Já estão definidas eventuais doenças genéticas [..]. Também já estarão aí as tendências herdadas: o dom para a música, pintura, poesia. Tudo já está ali na primeira célula formada. O zigoto de Mozart já tinha dom para a música e Drumond, para a Poesia. Tudo já está lá. É um ser humano irrepetível.7

Note-se que a matéria chegou até o Supremo Tribunal Federal com dois posicionamentos distintos, ambíguos, sobre os mesmos dispositivos constitucionais: o direito à vida e a dignidade da pessoa humana.

A tarefa do Supremo Tribunal Federal era não interpretar a norma dita inconstitucional, para não correr o risco de redesenhar a norma em exame, assumindo o papel de legislador. A tarefa do Supremo Tribunal Federal era a de dizer qual ditame constitucional se aplicaria à norma atacada.

“Também é de todo impróprio o Supremo, ao julgar, fazer recomendações. Não é órgão de aconselhamento. Em processo como este, de duas uma: ou declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade, total ou parcial, do ato normativo abstrato atacado.”8

Para proferir sua decisão, o Supremo Tribunal Federal necessitou responder, à luz da Constituição, alguns questionamentos: Onde começa a vida humana? Qual é a vida tutelada pela Constituição? O princípio da dignidade da pessoa humana pode ser aplicado a uma expectativa de vida em detrimento a uma vida existente? Os cientistas e pesquisadores não poderiam arguir o desrespeito ao princípio da liberdade de pesquisa científica? E o direito à saúde daqueles que veem nas pesquisas em células-tronco a única oportunidade de viver dignamente?

Nessa moldura lógica pressuposta é que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela improcedência da ADI e pela consequente constitucionalidade do art. 5º da Lei 11.105/2005.

Resta saber, no entanto, qual foi a linha de raciocínio jurídico utilizada pelo Supremo Tribunal Federal para solucionar o conflito de princípios constitucionais existente na liberação da pesquisa em células-tronco embrionárias à luz do direito à vida, a dignidade da pessoa humana, o direito à saúde e à liberdade de pesquisa científica.

Antes, porém, há que se dizer que a Lei nº 11.105/05 trata de múltiplas matérias e o único dispositivo tido como inconstitucional pelo Procurador Geral da República, como antes transcrito, foi o art. 5º e seus parágrafos, que cuidam, especificamente, da utilização, para fins de pesquisa e terapia, de células-tronco obtidas de embriões humanos, produzidos por fertilização in vitro, e que não forem utilizados no respectivo procedimento.

Tem-se, pois, nas normas do art. 5º e seus parágrafos da Lei nº 11.105/05, que:

a) O objeto do procedimento legalmente permitido há de ser:

a.1) embriões produzidos in vitro;9

a.2) embriões inviáveis ou congelados há três anos ou mais, na data da publicação da lei ou que, já congelados naquela data, venham a completar três anos, contados a partir da data do congelamento;10

b) São fins únicos da utilização de células-tronco embrionárias a pesquisa e a terapia;11

c) São condições para a utilização legalmente permitida:

c.1) o consentimento dos genitores;12

c.2) a aprovação prévia do comitê de ética da entidade pesquisadora;13

d) São vedações legais expressas:

d.1) a comercialização de embriões, células ou tecidos;14

d.2) a engenharia genética em célula germinal humana, zigoto e embrião;15

d.3) a clonagem humana;16

O estudo das normas questionadas na Ação Direta de Inconstitucionalidade demonstra a preocupação do legislador os limites que tornam compatível a pesquisa em células-tronco embrionárias com os princípios constitucionais, de forma que as assertivas do eminente Procurador-Geral da república devem ser analisadas segundo os contornos postos na Lei de Biossegurança, aí incluídas as vedações expressas.

O Ministro Relator, Carlos Britto, nas considerações iniciais do seu voto fazendo uma reflexão sobre o sentido, significado e proteção da 'vida' em nosso ordenamento jurídico

Falo 'pessoas físicas ou naturais, devo explicar, para abranger tão-somente aquelas que sobrevivem ao parto feminino e por isso mesmo contempladas com o atributo a que o art. 2º do Código Civil Brasileiro chama 'personalidade civil', literis: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Donde a interpretação de que é preciso vida pós-parto para o ganho da personalidade perante do Direito (teoria natalista, portanto, em oposição às teorias da personalidade condicional e da concepcionista). Mas personalidade como predicado ou apanágio de quem é pessoa numa dimensão biográfica, mais que simplesmente biológica.17

Assim, para o ministro relator da ADI 3510, somente se pode falar em indivíduo quando este for perceptível a olho nu, quando tiver sua própria história de vida, sendo definido como membro dessa ou daquela sociedade civil, logo, sujeito capaz de adquirir direitos em seu próprio nome.

Esclarecido a proteção da vida nas normas infracosntitucionais, o ministro relator passa a interpretar os comandos da Constituição Federal.

É que nossa Carta magna não diz quando começa a vida humana. Não dispõe sobre nenhuma das formas de vida humana pré-natal. Quando fala da “dignidade da pessoa humana” (inciso III do art. 1º), é da pessoa humana naquele sentido ao mesmo tempo notarial, biográfico, moral e espiritual (o Estado é confessadamente leigo, sem dúvida, ma há referência textual à figura de Deus no preâmbulo dela mesma, Constituição). E quando se reporta a “direitos da pessoa humana (alínea b do inciso VII do art. 34), livre exercícios dos direitos (...) individuais” (inciso III do art. 85) e até dos “direitos e garantias individuais”como cláusula pétrea (inciso IV do §4º do art. 60), está falando de direitos r garantias do indivíduo-pessoa. Gente. Alguém. De nacionalidade brasileira ou então estrangeira, mas sempre um ser humano já nascido e que se faz destinatário dos direitos fundamentais “à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade”, entre outros direitos e garantias igualmente distinguidos com o timbre da fundamentalidade (art.5º).18

Portanto, pode-se concluir que a Constituição Federal não protege a vida em todo e qualquer estágio, mas somente a vida que já é “própria de uma concreta pessoa, porque nativiva e, nessa condição, dotada de compostura física ou natural”,19e que a inviolabilidade de que trata o artigo 5º é exclusivamente para pessoas já nascidas, de um indivíduo já personalizado.

Quando a vida humana tem início? O que é vida humana? Essas perguntas contêm um enunciado que remete à regressão infinita: as células humanas no óvulo antes da fecundação, assim como em um óvulo fecundado em embrião, em um feto, em uma criança ou em um adulto. O ciclo interminável de geração da vida humana envolve células humanas e não humanas, a tal ponto que descrevemos o fenômeno biológico como reprodução, e não simplesmente como produção da vida humana.

Isso não impede que nosso ordenamento jurídico e moral possa reconhecer alguns estágios da Biologia humana como passíveis de maior proteção do que outros. É o caso, por exemplo, de um cadáver humano, protegido por nosso ordenamento. No entanto, não há como comparar as proteções jurídicas e éticas oferecidas a uma pessoa adulta com as de um cadáver. Portanto, considerar o marco da fecundação como suficiente para o reconhecimento do embrião como detentor de todas as proteções jurídicas e éticas disponíveis a alguém, após o nascimento, implica assumir que: primeiro, a fecundação expressaria não apenas um marco simbólico na reprodução humana, mas a resumiria euristicamente; uma tese de cunho essencialmente metafisico. Segundo, haveria uma continuidade entre óvulo fecundado e futura pessoa, mas não entre óvulo não fecundado e outras formas de vida. Terceiro, na ausência de úteros artificiais, a potencialidade embrionária de vir a se desenvolver intra-útero pressuporia o dever de uma mulher à gestação, como forma de garantir a potencialidade da implantação. Quarto, a potencialidade embrionária intra-útero deveria ser garantida por um princípio constitucional do direito à vida.20

No mesmo sentido é o voto do Ministro Marco Aurélio:

Assentar que a Constituição protege a vida de forma geral, inclusive a uterina em qualquer fase, já é controvertido – a exemplo dos permitido aborto terapêutico ou do resultante de opção legal após estupro - , o que se dirá quando se trata de fecundação in vitro já sabidamente, sob o ângulo técnico e legal, incapaz de desaguar em nascimento. É que não há unidade biológica a pressupor, sempre, o desenvolvimento do embrião, do feto, no útero da futura mãe. A personalidade jurídica, a possibilidade de considerar-se o surgimento de direitos depende do nascimento com vida e, portanto, o desenlace próprio à gravidez, à deformidade que digo sublime: vir o fruto desta última, separado do ventre materno, a proceder à denominada troca oxicarbônica com o meio ambiente.21

Resumidamente, poderíamos dizer que para os Ministros que votaram pela improcedência da ADI 3510, um embrião produzido em laboratório, sem condições para implantação no útero de uma mulher, não é pessoa humana e, portanto, não é protegido amparado pelo princípio constitucional da inviolabilidade da vida.

Contudo, não foi somente este o argumento utilizado pelo Supremo Tribunal Federal para declarar constitucional o art. 5º da Lei de Biossegurança.

O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana foi amplamente utilizado para justificar o voto dos ministros na ADI 3510.

Importante dizer que os ministros do Supremo Tribunal Federal conferem certa dignidade aos embriões, porque estes teriam a dignidade própria da matriz humana, ou seja, apesar de não constituir equivalente moral de pessoa os embriões possuem condição privilegiada de única matéria-prima capaz de produzir um ser humano.

“Porque embriões congelados não têm vida atual, suscetível de proteção jurídica plena (art. 5º, caput), eliminá-los não constitui, em princípio, crime, ilícito menos grave”.22

Mas não é só, para garantir a existência digna, o direito constitucional garante a dignificação permanente das condições de vida, e neste sentido, as pesquisas científicas possibilitariam a libertação para muitos homens.

A utilização de células-tronco embrionárias para pesquisa e, após o seu resultado consolidado, o seu aproveitamento em tratamentos voltados à recuperação da saúde não agridem a dignidade humana, constitucionalmente assegurada. Antes, valoriza-a. O grão tem de morrer para germinar. Se a célula-tronco embrionária, nas condições previstas nas normas agora analisadas, não vierem a ser implantadas no útero de uma mulher, serão ela descartadas. Dito de forma direta e objetiva, e ainda que certamente mais dura, o seu destino seria o lixo. Estaríamos não apenas criando um lixo genético, como, o que é igualmente gravíssimo, estaríamos negando àqueles embriões a possibilidade de se lhes garantir, hoje, pela pesquisa, o aproveitamento para a dignidade da vida. A sua utilização é uma forma de saber para a vida, transcendendo-se o saber da vida, que com outros objetivos se alcança. Conhecer para ser. Essa a natureza da pesquisa científica com células-tronco embrionárias, que não afronta, mas busca, diversamente, ampliar as possibilidades de dignificação de todas as vidas.23

Já nas palavras do Ministro Eros Grau:

Dir-se-á ainda, por outro lado, que o topos da dignidade da pessoa humana pode ser tomado para afirmarmos coisas distintas, inclusive antagônicas. Mas uma delas seria assim: a utilização de óvulo fecundado congelado há mais de três anos, com a prévia autorização dos que viriam a serem pais do embrião que poderia dele decorrer, é adequada à afirmação da dignidade da pessoa humana na medida em que potencialmente permitirá a evolução dos métodos de tratamento médico do ser humano e o aprimoramento da sua qualidade de vida.24

O Ministro Carlos Brito abordou, de forma sistematizada, a dignidade da pessoa humana, distinguindo as normas infraconstitucionais e as diferentes etapas do desenvolvimento da pessoa. Afirma que a potencialidade de algo se tornar pessoa humana já é “meritória o bastante para acobertá-lo, infraconstitucionalmente contra tentativas esdrúxulas, levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica”.25

No entanto, continua o ministro relator:

As três realidade não se confundem: o embrião é o embrião, o feto e o feto e a pessoa humana é pessoa humana. Esta não se antecipa à metamorfose dos outros dois organismos. É o produto final dessa metamorfose. O sufixo grego “meta” a significar,aqui, a mudança tal de estado que implica um ir além de si mesmo para se tornar um outro ser. Tal como se dá entre a planta e a semente, a chuva e a nuvem, a borboleta e a crisálida, a crisálida e a lagarta (e ninguém afirma que a semente já seja uma planta, a nuvem, a chuva, a lagarta, a crisálida, a crisálida, a borboleta). O elemento anterior como que tendo de se imolar para o nascimento do posterior. Donde não existe pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana.26

Assim, a dignidade humana é adquirida em etapas e no caso das células-tronco embrionárias, divide-se em dois planos de realidade: o da vida humana extra-uterina e o da vida humana intra-uterina, ou seja, cada coisa tem o seu momento, não por efeito de uma unânime “convicção metafísica, mas porque assim é que preceitua o ordenamento jurídico”.27

Como se já não bastasse toda essa fundamentação em desfavor da ADI 3510, o ministro relator trouxe a baila mais uma invocação da ordem constitucional: o direito à saúde.

A saúde é o primeiro dos direitos sociais de natureza fundamental garantido no art. 6º da CF. Também é o primeiro dos direitos previstos no título da seguridade social, conforme art. 194 e, mais ainda, a saúde é direito de todos e dever do estado, preceito insculpido no art. 196 da Carta Magna.

Portanto, cabe ao Estado, garantir mediante ações e serviços o acesso à saúde, como um dos bens mais valiosos que a CF visa preservar.

Em benefício da saúde humana e contra eventuais tramas do acaso e até dos golpes da própria natureza, num contexto de solidária, compassiva ou fraternal legalidade que, longe de traduzir desespero ou desrespeito aos congelados embriões in vitro, significa apreço e reverência a criaturas humanas que sofrem e se desesperam nas ânsias de um infortúnio que muitas vezes parece maior que a ciência dos homens e a própria vontade de Deus. Donde a lancinante pergunta que fez uma garotinha brasileira de três anos, paraplégica, segundo relato da geneticista Mayana Zatz: -por que não abrem um buraco em minhas costas e põem dentro dele uma pilha, uma bateria, para que eu possa andar como as minhas bonecas?28

A pergunta feita pela menina de três anos para a geneticista Mayana Zatz leva-nos a uma reflexão, a qual deve ser feita com toda a maturidade: deixar de contribuir para devolver pessoas assim à plenitude da vida não soaria como uma desumana omissão de socorro? Ou ainda, não estaríamos vestindo o mostro da indiferença?

A biomedicina há de se comprometer mais do que com a liberdade, com a libertação do ser humano. Sem a possibilidade de pesquisar e transformar para melhor o homem em suas condições de fragilidade e de dor, o homem seria um ser dado à escravidão de sua própria prisão física, psiquíca e mental. O que a liberdade de saber, que se expressa na liberdade da pesquisa, garante é a possibilidade de libertação do homem de seus limites e a regeneração não apenas de suas condições físicas, mas a recuperação de condições que o dignifiquem em seu status de membro da família humana, com a qual tem compromissos, especialmente o de continuar a viver para cumprir seus papéis com os outros.29

O julgamento da Adi 3510 constitui uma eloquente demonstração de que o Supremo Tribunal Federal não pode usar de evasivas diante de assuntos polêmicos envolvidos pelo debate entre religião e ciência.

Chamado a se pronunciar sobre um tema delicado, o da constitucionalidade das pesquisas científicas com células-tronco embrionárias, um assunto que é moral e juridicamente conflituoso em qualquer sociedade construída culturalmente nos valores fundamentais da vida e da dignidade humana, o Supremo Tribunal Federal profere decisão que demonstra seu compromisso com a defesa dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito.

Independentemente dos conceitos e concepções religiosas, filosóficas e científicas a respeito do início da vida, é indubitável que existe consenso a respeito da necessidade de que os avanços tecnológicos e científicos, que tenham o homem como objeto, sejam regulados pelo Estado com base no princípio da responsabilidade.

De fato, delimitar o âmbito de proteção fundamental à vida e à dignidade humana e decidir questões relacionadas à utilização de embriões humanos para fins de pesquisa e terapia, são tarefas que ultrapassam os limites do jurídico e envolvem argumentos de moral, religião, que vêm sendo debatidos há séculos sem que se chegue a um consenso mínimo sobre uma resposta supostamente correta para todos.

Da interpretação sistemática da Constituição Federal, facilmente identifica-se o limite entre o dever e a liberdade com o tratamento com o corpo humano, que é, por certo, tema fundamental da Bioética. “Assim, é constitucional a norma jurídica ou respeita os postulados constitucionais e prática médica que se enquadra nos limites da dignidade humana”30.

Ainda há que se dizer que “é dever do estado brasileiro acompanhar o conjunto de conquistas no terreno da Ciência genética, procurando prover o povo brasileiro da possibilidade de usufruir tais progressos, especialmente, no que se relaciona com as terapias genéticas.

Os objetos teóricos de pesquisas não traçam caminhos mutuamente excludentes. Considerando-se que, ao propósito, nenhuma das tecnologias conhecidas demonstrou cabal suficiência no sentido de esgotar as potencialidades científico-terapêuticas, fica claro que o estudo com as células-tronco embrionárias é de todo adequado e recomendável, na medida em que pode contribuir para a promoção de objetivos e valores constitucionais legítimos, que são o direito à vida, à dignidade humana e à saúde.

Para a ciência, a velocidade ou o aspecto temporal é de extrema importância, até porque, como há de ver-se, não sacrifica nenhum princípio jurídico, nem direito algum, sobretudo os que protegem a vida e a dignidade humana.

Se a pesquisa pode e quando a pesquisa chegará a resultados buscados com as células-tronco embrionárias talvez ainda dependa de um logo caminhar. O que não se há é deixar de lhe garantir o andar, porque cada passo dado pode ser em direção à melhoria e à dignificação da espécie humana, tudo nos termos e valores que animam os princípios constitucionais.


Notas:

1BARROSO, Luís Roberto. Amicus Curie formulado por MOVITAE – Movimento em Prol da Vida. Disponível emwww.lrbarroso.com.br. Acesso em 23/11/2008.

2.BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Petição Inicial.

3BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Petição Inicial.

4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Carlos Britto. Acórdão não publicado.

5BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Carlos Britto. Acórdão não publicado.

6BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Carlos Britto. Acórdão não publicado.

7BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Marco Aurélio. Acórdão não publicado.

8BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Marco Aurélio. Acórdão não publicado.

9Art. 5º, caput, “É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:”

10Art. 5º, I e II: “sejam embriões inviáveis; ou sejam congelados há 3 três) anos ou mais, na data de publicação desta lei, ou que, já congelados na data da publicação desta lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento”.

11Art. 5º, caput, Lei nº 11.105/05.

12Art. 5º, § 1º “ em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores”.

13Art. 5º, § 2º “instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisas ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética e pesquisa”.

14Art. 5º, § 3º “ é vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997”.

15“Art. 6º Fica Proibido

III – engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano.”

16“Art. 6º Fica Proibido

IV – clonagem humana.”

17BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Carlos Britto. Acórdão não publicado.

18BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Gilmar Mendes. Acórdão não publicado.

19BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Gilmar Mendes. Acórdão não publicado.

20BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Carlos Britto, citando Maria Helena Diniz. Acórdão não publicado.

21BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Marco Aurélio. Acórdão não publicado.

22BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Cezar Peluzzo. Acórdão não publicado.

23BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto da Ministra Carmen Lúcia. Acórdão não publicado.

24BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Eros Grau. Acórdão não publicado.

25BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Carlos Britto. Acórdão não publicado.

26BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Carlos Britto. Acórdão não publicado.

27BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Carlos Britto. Acórdão não publicado.

28BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto do Ministro Carlos Britto. Acórdão não publicado.

29BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Voto da Ministra Carmen Lúcia. Acórdão não publicado.

30LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Patrimônio genético humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Método, 2004. p.281.

 

 

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