O SINTOMA SOCIAL NA PSICANÁLISE: DA DEMOCRACIA À ANOMIA


PorJefter Gerson- Postado em 31 agosto 2019

Autores: 
Pedro Teixeira Castilho

O SINTOMA SOCIAL NA PSICANÁLISE: DA DEMOCRACIA À ANOMIA

THE SOCIAL SYMPTOM IN PSYCHOANALYSIS: FROM DEMOCRACY TO ANOMIE

Pedro Teixeira Castilho1  
http://orcid.org/0000-0001-5006-3593

 

1 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Educação, Belo Horizonte/MG, Brasil.

 

 

RESUMO:

A psicanálise, ao modificar radicalmente o estatuto do sujeito, a partir da noção de “inconsciente”, produziu uma teoria inédita do vínculo social e da cultura. Tomando por princípio o texto social de Freud, Totem e tabu, pretendemos demonstrar o entendimento da democracia com base nesse texto fundante, para, em seguida, apresentarmos seus desdobramentos e seus afetos também em Psicologia das massas e análise do Eu. A noção de “anomia” será apresentada para se compreender os feitos da ausência de um Estado Democrático de Direito. Essa articulação culminará na ideia de anomia como sintoma social.

Palavras-chave: Totem e tabu; democracia; massas; anomia

ABSTRACT:.

Psychoanalysis, by radically changing the status of the subject from the notion of the “unconscious”, produced an unprecedented theory of the social bond and culture. Starting from the first social text of Freud, Totem and Taboo, we intend to demonstrate the understanding of democracy based on founding text and then present its unfolding and its affections from Group Psychology and the analysis of the Ego. The notion of “anomie” will be presented to understand the feats of the absence of a Democratic State of Right. This articulation will culminate in the idea of anomie together with the consequences of a social symptom in the contemporaneity.

Keywords: Totem and taboo; democracy; mass; anomie

Rien n’aura eu lieu que le lieu

Mallarmé

A articulação entre a psicanálise, a democracia e a anomia é cada vez mais necessária, se levarmos em consideração o cenário político atual, somados os seus desdobramentos. Na atualidade, estamos testemunhando exemplos de instabilidade democrática nos contextos nacional e mundial, particularmente sob a forma de ameaça aos direitos básicos de todo ser humano e aos direitos civis. A fragmentação dos direitos fundamentais e das garantias do Estado Democrático de Direito pode, também, ser compreendida à luz da instabilidade das instituições democráticas. Ao ganhar vulto nas sociedades, a instabilidade do Estado de Direito provoca paixões das mais variadas naturezas. Nesses momentos, o conjunto de incertezas que se forma produz paixões que podem levar para o totalitarismo ou para a intolerância, como também para a angústia e a anomia social.

A psicanálise, ao modificar radicalmente o estatuto do sujeito a partir da noção de “inconsciente”, produziu uma teoria inédita do vínculo social e da cultura. Ao tomarmos o primeiro texto social de Freud, Totem e tabu (1913), pretendemos demonstrar o entendimento da democracia com base nesse texto fundante, e, em seguida, apresentar seus desdobramentos e seus afetos também no texto Psicologia das massas e análise do Eu (1921). A noção de “anomia” será apresentada para se compreender os feitos da ausência de um Estado Democrático de Direito. A ideia de anomia é justamente apresentada como consequência de um sintoma social na contemporaneidade.

TOTEM E TABU: NO INÍCIO, O ATO

O retorno ao texto de Freud, Totem e tabu, de 1913, é indispensável para trabalharmos a articulação de psicanálise e democracia e seus efeitos. Esse texto foi escrito para criar a gênese do inconsciente, fundada na tradição paterna, aliada à lei que essa ação traz no seu bojo. Freud estava também respondendo a um de seus principais discípulos, o suíço-protestante Carl Jung, que estava desenvolvendo uma outra hipótese sobre o inconsciente.

Nesse texto, Freud refuta toda a hipótese junguiana de que existiria um inconsciente coletivo. De uma maneira contrária, Freud apontava que a fundação do inconsciente está vinculada ao Pai e à lei que esse transmite. Isto é, para Freud, o ato da devoração do Pai é a primeira identificação, tendo o pacto civilizatório como consequência. O texto de 1913 apresenta a culpabilidade como consequência da identificação a esse Pai.

Uma parte deste recalque do pulsional é operada pelas religiões; que induzem os indivíduos a sacrificar à divindade seu prazer pulsional. “A vingança é domínio meu”, diz o senhor. No desenvolvimento das religiões antigas, acredita-se que muito daquilo a que o homem havia renunciado como “ímpio” foi cedido a Deus e ainda era permitido em seu nome, de forma que a cessão à divindade foi o caminho pelo qual o ser humano se liberou do império das pulsões malignas, prejudiciais à sociedade. Por isso, de modo algum se deve ao acaso que aos antigos Deuses se articulassem todas as qualidades humanas - com os conflitos que delas se seguem - em uma medida ilimitada, nem é uma contradição que apesar disto não fosse permitido justificar a própria impiedade a partir do exemplo divino. (FREUD, 1913/2003, p. 109).

Essa afirmação ganha força quando recuperamos um artigo anterior, A moral sexual civilizada, de 1908. Nesse artigo, Freud observa que a experiência nociva das civilizações se reduz à repressão da vida sexual, e percebemos que a origem da moral e do direito, para a psicanálise, acontece de maneira sincrônica e não diacrônica.

Isso fica claro quando nos detemos no texto de 1908, que seria uma preparação para O mal-estar na cultura - A moral sexual ‘civilizada’ e a doença nervosa dos tempos modernos. Nele, o discurso freudiano sobre como foram as repressões ao livre movimento e circulação das pulsões sexuais, realizadas em diferentes momentos da história do Ocidente, e que se efetuaram pelas instituições sociais, que seriam as condições de possibilidade das “doenças nervosas”. Como esse processo teria se desenvolvido na modernidade, poderia, assim, ser interpretado pelo incremento das perturbações psíquicas naquele contexto histórico. Seria essa, enfim, a consequência maior da moral, juntamente ao aparecimento do direito, que, segundo Michel Foucault, seria igualmente herdeiro da modernidade (FOUCAULT, 1994, p. 152).

A moral é, assim, a marca da civilização. Como pretendemos desenvolver adiante, a distribuição entre o bem e o mal que faz essa moralidade civilizatória centra-se na renúncia à satisfação sexual. A renúncia pulsional se estabelece paralelamente à civilização, e a religião passa a reforçar o processo de repressão. Assim, a moral, para a psicanálise, seria responsável por um aumento do número e da gravidade das doenças nervosas modernas, devido principalmente à redução das possibilidades de satisfação. Indicamos o tema, sem aprofundá-lo, para marcar o paradoxo apresentado por Freud: cada renúncia ao pulsional se torna, agora, uma fonte dinâmica da consciência moral. Cada nova renúncia aumenta a sua severidade e intolerância (FREUD, 1927-1931/2003, p. 158-171).

A moral sexual se apresenta a partir da repressão dos impulsos sexuais. Freud, nesse texto, apresenta a tese de que a cultura se apoia nas proibições da pulsão. Assim, podemos observar que não é em vão que as reflexões teóricas, desenvolvidas desde Totem e tabu (FREUD, 1913/2003) até Moisés e o monoteísmo (FREUD, 1937-1939/2003), criam uma indagação: “O que é um Pai?”.

Freud desenvolve o mito do assassinato do Pai da horda primitiva para expressar a lei sobre a interdição do incesto e a proibição dos desejos do filho em relação à mãe, cuja consequência seria o aparecimento do juízo moral. O mito freudiano indica que a culpabilidade, ou a “culpa humana universal”, instala uma ordem que, como explicitaremos na sequência, é uma ordem democrática. Trata-se, na verdade, de reconhecer o direito ao Phantasieren, mas a um fantasiar que teria implicações coletivas, como uma metapsicologia do social. Nesse sentido, é importante aqui salientar que o texto de 1913 apresenta o caráter coletivo na fundação de um grupo que tem sua gênese na morte do Pai.

Totem e tabu se inscreve como texto das ciências sociais, ao lado da possibilidade de se articular a fantasia no campo do social. Nesse sentido, pensar Totem e tabu a partir da fantasia é articulá-lo ao Völkerphantasie, ou seja, à fantasia do povo ou do grupo. Dizer que um mito se estrutura da mesma maneira que uma fantasia ou um sonho é compreendê-lo em seu aspecto inconsciente. A fantasia social do mito seria a fórmula freudiana para se apreender os aspectos sociais de uma cultura. Para Paul Laurent Asson (2012, p. 66), é nesse contexto que se sobrepõem mitos, religião e moralidade, como outras tentativas de criar uma idealização para a satisfação deficitária do desejo (die mangelnde Wundschbefriedigung). Desse modo, é legítimo pensar a instituição social como uma formação reativa ao complexo de Édipo. Freud formula essa questão da seguinte maneira: “A significação do complexo de Édipo começa a crescer de maneira gigantesca, chega-se à ideia de que ordenamento social, moralidade, direito e religião nasceram na época originária da humanidade, juntos, como formação reativa do complexo de Édipo” (FREUD, 1913/2003, p. 143).

Vale lembrar aqui o esforço de Freud em apresentar o texto Totem e tabu a partir da dimensão coletiva do Phantasieren. Se lembrarmos também que uma formação reativa se elabora como uma formação de um sintoma ou uma formação de compromisso, a cultura e o social estão nessa vertente freudiana, como uma formação no campo da Phantasieren.

Tendo, pois, apresentado a questão da importância da cultura para Freud, vamos buscar, então, elaborar a relação entre o texto de 1913 e a democracia.

TOTEM E TABU: UM MITO SOBRE A DEMOCRACIA

Totem e tabu concentra todo um período de investigação em torno da noção do Pai, retomando aspectos da ambivalência e dos tabus, projeção e narcisismo (FREUD, 1913/2003, p. 75), o sentido paterno do animal totêmico, o significado dos totens e dos tabus nas civilizações “bárbaras”.

Freud recupera o sentimento da religião decifrando o totemismo - percebido como algo que antecede a religião propriamente dita. A partir do totemismo, Freud pretende dar conta do tabu. É da religião do totem que deriva o tabu - a Lei. É importante fazer essa articulação, pois é com base nesse ponto que podemos aproximar o direito da psicanálise.

As questões colocadas nesse texto têm como alvo o Pai - onipresente -, e o resultado desses resgates míticos e/ou teológicos consistem em ancorar o complexo de Édipo não apenas nas fantasias neuróticas, mas no ponto de origem da civilização monoteísta, fundando, assim, de modo mais amplo e seguro, a afirmação de sua universalidade. Essa universalidade aparece, então, como o amor dos filhos entre eles mesmos (solidariedade) e a figura do Pai. Os filhos se solidarizam em favor de um bem comum que seria representado pelo Pai morto. A universalidade, ou o bem comum, é o que é partilhado pelos filhos em relação a esse Pai.

Esse Pai, segundo Freud, tinha sobre os filhos poder de vida e de morte. Em um determinado momento, os filhos se unem e assassinam o Pai, instituindo, a partir de um crime, a ordem social e civilizatória. A sociedade se institui em um ato de devoração do Pai, surgindo a figura do Pai morto, representante das normas, da ordem, dos ideais, valores, leis e os direitos da ordem social.

Para Freud (1913/2003), no crime contra o Pai, estão os princípios estruturais da organização da sociedade. A religião surge, assim, segundo Freud, com a morte do Pai, com seus princípios morais e suas doutrinas. Como manifestação dos princípios morais e do direito, teríamos o mandamento “não matarás” (idem).

A consequência desse ato é a sacralização do Pai: um Pai sacralizado, que institui a paternidade como ponto principal do cosmos familiar, com os afetos de amor e ódio que podem despertar. Surge, então, um Pai que passa a ser amado como representação de um bem comum. É importante considerar que os mitos fundadores das sociedades e civilizações são atribuídos a um valor universal. Todas as variantes de um mito se manifestam em uma série formal; daí que podemos encontrar a importância antropológica do texto de Freud e a origem da democracia.

O vínculo entre a “psicologia individual” e a “coletiva” procede do fato de que a “experiência” individual tem como condição prévia (Vorbedingungen) os fatos que a psicologia coletiva leva em conta. Ou seja, as representações transmitidas, a linguagem e as formas de pensamento aí contidas, e, finalmente, os efeitos que agem em profundidade na cultura, atuando individualmente e coletivamente. Totem e tabu se situa na legitimidade epistemológica da Volkerpsychologie e abre a possibilidade de pensarmos os efeitos subjetivos do Pai morto com seus filhos. Resta, então, trabalharmos os desdobramentos da noção de Pai morto que está vinculado, a partir de Claude Lefort, à construção da democracia.

A DEMOCRACIA COMO LUGAR VAZIO

O tratamento dado por Freud ao mito de Édipo em Totem e tabu pode ser cotejado com o conceito de proibição do incesto em Claude Lévi-Strauss. O antropólogo considera o tabu do incesto o protótipo de toda lei social. A interdição do incesto institui a sociedade humana, dado que impede a família conjugal de se isolar de outras famílias. Caminha-se da natureza para a cultura ao se inibir os impulsos sexuais em favor da organização social. O tabu do incesto estabelece a circulação de mulheres entre famílias e, desse modo, a sociedade ganha forma com a organização de parentesco. A sociedade é uma extensão da família ou, melhor dizendo, a família está completamente inserida na organização social. Podemos concluir, portanto, com base em Lévi-Strauss, que, quando a sociedade é organizada por estrutura de parentesco, é precisamente o complexo de Édipo que está em jogo (DOSSE, 1945/1993, p. 56).

O tabu do incesto em Lévi-Strauss leva exatamente à conclusão oposta às de Freud. Em vez de implodir e fixar as emoções da criança nos pais, a proibição da sexualidade mãe-filho explode a vida familiar, com repercussões em toda a sociedade. Lévi-Strauss, a partir da leitura de Totem e tabu, demonstra que a concepção de inconsciente seria um fato social. O inconsciente é um fato social ligado às estruturas sócio-simbólicas que não só organizam a vida social como também determinam as possibilidades e experiências de cada sujeito (LÉVI-STRAUSS, 1967, p. 94).

O parentesco subordina a família à sociedade, colocando o indivíduo firmemente no coletivo, exigindo que ele se envolva na mitologia coletiva, no totem coletivo. Lei, autoridade, tradição, transmissão e costumes chegam ao indivíduo através do grupo.

A partir de Totem e tabu, e com Lévi-Strauss, pudemos dizer que o incesto é a base de todas as proibições, demonstrando a relação entre a origem da lei, com a tradição, a transmissão e a democracia. O pai simbólico é justamente o Pai morto, que não se alcança a partir de um lugar vazio. O pai morto é aquele que ocupa o lugar de exceção. Desse modo, apenas como Pai morto é que o lugar vazio se institui.

CLAUDE LEFORT E O LUGAR VAZIO

Aqui, o teórico político que serve de referência é Claude Lefort, que foi influenciado por Lacan em sua definição de democracia. A democracia aceita a lacuna entre o simbólico (o lugar vazio do poder) e o real (o agente que ocupa este lugar), e postula que nenhum agente empírico se encaixa naturalmente no lugar vazio do poder (LEFORT, 2011, p. 82).

Os outros sistemas de governo são incompletos, têm de cair em acomodação, em solavancos ocasionais. Para funcionar, a democracia eleva a incompletude a um princípio, institucionaliza, criando um disfarce da ilusão. Em resumo, o Pai morto é o significante da democracia. Para a psicanálise, a democracia, como “lugar vazio”, significa que o sujeito da democracia é o sujeito barrado.

O fato de o Pai ter sido morto pelos filhos corrobora com as teses de Claude Lefort de que, na democracia, deva haver um lugar vazio para a manutenção da ordem democrática e do Estado. Essa afirmação de Lefort é a lógica do advento da democracia. Nesse sentido, Lefort nos convida a pensar o conceito de lugar vazio articulado ao de democracia.

Anteriormente à democracia, o poder absoluto do rei era a união do direito e da justiça, soberania e nação, o poder e a religião encarnados em apenas um. Entretanto, com a democracia, o rei não ocupa mais esse lugar, de modo que o trono, o lugar do poder, fica vazio. A partir daí, podemos compreender que esse lugar vazio é o lugar de representação. Quando um povo elege um líder, ele está se identificando com esse líder, que deve representá-lo.

Se, em um primeiro momento, há a figura do rei, no qual a lei e a ordem estão constituídas em um corpo vivo, sem representação e não submetido a qualquer outra lei que não emane dele próprio, temos, num segundo momento, a democracia, em que os direitos e deveres são atribuídos a todos, inclusive ao rei, como se fez constar na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, oriunda da Revolução Francesa.

Duplo fenômeno, sinal de uma só mutação: o poder deve doravante obter sua legitimidade enraizando-se nas opiniões, ou ao menos sem se entrincheirar na competição entre partidos. Ora, a competição entre partidos procede do exercício das liberdades civis e ao mesmo tempo o mantém - faz mais: ativa-o. É verdade que o Estado parece neutro, sem opiniões, ou acima das opiniões; porém, as transformações que conheceu [...] surgiram da evolução da opinião pública, ou foram produzidas em função desta, inclusive essa separação que, separando-o da Igreja, constitui-no Estado laico. (LEFORT, 1991/2011, p. 52).

A democracia moderna não pode, escreve Claude Lefort, ser articulada como uma invenção burguesa, pois ela nasceu da luta de classes, dos movimentos sociais como temos na história da Revolução Francesa. No prefácio de A invenção democrática, Lefort faz lembrar que o lugar do poder permanece sendo um lugar vazio (lugar do Pai morto), que não poderia ser definitivamente ocupado por um homem ou um grupo particular, capaz de encarná-lo, dando-lhe uma imagem na qual a sociedade reconheceria sua própria identidade e unidade (RAMOS, 2016).

A democracia fundada no lugar vazio surge produzindo um embate agonístico, abrindo sempre para a emergência de conflitos entre figuras que possam vir a tamponar esse lugar vazio. As faces do totalitarismo se desdobram nesses sujeitos, que querem encarnar novamente a lei. Para Lefort, o político só tem efeito se estabelecer dicotomias, oposições que permitam um espaço de circulação de perspectivas e de opiniões, não deixando de lado, assim, o lastro simbólico, a antropologia do ser simbólico.

Para Lefort, a votação tem de permanecer como um ritual, como uma autodestruição e um renascimento ritualístico da sociedade (LEFORT, 1991/2011). Nesse sentido, aproximando essa proposição ao texto Totem e tabu, podemos perceber que, em toda eleição democrática, temos um rito de morte do Pai.

“AMAR AO PRÓXIMO COMO A TI MESMO” COMO PARADIGMA DA DEMOCRACIA

A existência de um ponto de exceção no simbólico é exatamente o que faz com que as paixões do amor e do ódio se sustentem em um Outro que falta: o lugar vazio. O nome é uma exceção no simbólico. Desse modo, o feito da falta no Outro é a fixação no Outro, através do fantasma, o que Freud chamou de ambivalência. O neurótico opta por não saber sobre o desejo do Outro. O sujeito é o resultado da interpretação do Outro. Para Lacan, a experiência a partir da ideia de exceção, como a própria experiência da falta, é inerente ao simbólico.

Não temos que responder a nenhuma verdade última, especialmente nem a favor nem contra nenhuma religião. Já é muito que devamos colocar aqui, o Pai morto. Mas um mito não se basta a si mesmo se não suporta algum rito, e a psicanálise não é o rito do Édipo, observação para desenvolver logo. Sem dúvida, o cadáver é um significante, mas a tumba de Moisés está tão vazia para Freud como a de Cristo para Hegel. (LACAN, 1966/1998, p. 833).

A tumba de Cristo esvazia-se para que se processe a ressurreição. A partir do momento em que o corpo se subtrai de seu lugar, institui-se o sujeito que crê em suas paixões. Se Freud propõe que o amor ao Pai se sustenta a partir de um ódio recalcado, esse Pai-amor não seria possível sem a noção de falta. Nesse sentido, se existe um lugar vazio com a institucionalização da democracia, esse lugar vazio suscita paixões de amor e de ódio.

O tema do assassinato constitui a passagem do Pai morto à Lei. Isso se expressa na problemática do segundo mandamento da doutrina mosaica: “Amarás ao próximo como a ti mesmo”, e, nesse mandamento, está a base da democracia.

Para Freud, em Mal-estar na cultura, de 1927, o ser humano estaria submetido a três tipos de males que poderiam causar sofrimentos: as catástrofes naturais, as doenças contagiosas e as relações entre os próprios humanos. Com relação aos dois primeiros, não poderíamos interferir de maneira decisiva, mas, em relação a este terceiro mal, Freud faz uma reflexão a partir da temática do segundo mandamento: “Amarás ao próximo como a ti mesmo”, passando a questionar seu efeito civilizador. Para ele, se o próximo fosse um objeto possível de amor, esse amor não poderia ser imposto como um mandamento.

Para o psicanalista, não basta amar ao próximo, é preciso amá-lo tanto quanto o sujeito ama a si mesmo, e vai considerar esse mandamento exorbitante. A partir daí, faz uma reflexão sobre as vicissitudes do amor e do ódio. Freud ratifica suas hipóteses sobre a ambivalência, confirmando uma exacerbação do amor ao próximo, que, paradoxalmente, faz surgir uma força do supereu sobre o Eu. Essa ação do ódio sobre o Eu é demonstrada pela subjetivação do sentimento de culpa, sentimento esse que seria a própria expressão do mal-estar na cultura.

Sabemos que Freud, nos textos Psicologia das massas e análise do Eu (1921/2013) e Mal-estar na cultura (1927-1931/2003), demonstra que a paixão antitética do amor é o ódio, e que o cristianismo se apoia em uma ética de apelo ao amor: “Amarás ao próximo como a ti mesmo”. Assim, essa questão lançada por Freud traz à tona uma reflexão sobre esse segundo mandamento, permitindo a não-renúncia ao gozo, mas uma maneira de encontrar a maldade do outro tal qual a minha.

Se Freud julga o “amar ao próximo como a ti mesmo” uma exorbitância, Lacan (1990/1960) vai mais longe, dizendo que a exigência desse mandamento faz com que recuemos diante da maldade do próximo, que não é outra coisa senão nós mesmos.

O amor ao Pai está em contradição com o amor ao próximo. O mandamento cristão não se sustenta como princípio norteador de uma ética para a psicanálise, pois, segundo Lacan (1959-1960/1990, p. 76), a condição de sustentação desse dizer cristão porta uma incoerência. Amar ao próximo é garantir o amor do Pai - seria a referência freudiana para garantir o problema da ética cristã (FREUD, 1921/2013 1927-1931/2003).

Seguindo essa direção, vamos nos ater ao texto Psicologia das massas e análise do Eu, no qual Freud continua na direção que postulamos a partir da correlação de Totem e tabu com as teses do estruturalismo de Lévi-Strauss e as construções teóricas de Claude Lefort sobre a democracia. Pretendemos trazer elementos desse texto que apontam para as conexões da psicanálise com a teoria social e a democracia, para, em seguida, contextualizar essa articulação no âmbito das questões da contemporaneidade. Poderemos compreender, assim, que o espaço vazio democrático e o discurso totalitário da plenitude são estritamente correlatos, dois lados de uma mesma moeda.

Apresentar o texto Totem e tabu, em um primeiro momento, permitiu apreender a noção de democracia como lugar vazio. Neste segundo momento, vamos nos apoiar no texto de 1921 para demonstrar os afetos que estão em jogo nesse lugar vazio, principalmente o amor e o ódio. Com isso, intentamos compreender as faces possíveis do totalitarismo e da segregação. Pretendemos reforçar a ideia de que a ordem social é uma película fina, na qual repousa a figura do Pai morto como lugar vazio. Quando esse lugar está ameaçado ou sem representação, teríamos a ausência de representação, que pode se configurar como totalitarismo, segregação ou anomia.

A INDISSOCIABILIDADE ENTRE A PSICOLOGIA INDIVIDUAL E SOCIAL

Freud, em 1921, escreve Massenpsychologie, apresentando a teoria da libido como tese central para o tema da identificação e, consequentemente, para a formação dos grupos. Para confirmar tal hipótese, o psicanalista propõe pensar a indissociabilidade entre a psicologia individual e a psicologia social (FREUD, 1921/2003, p. 67). Para Freud, o nascimento do indivíduo é o próprio atravessamento do coletivo. Essa aproximação se apoia nos laços libidinais em jogo na cultura.

A partir daí, podemos afirmar que os processos afetivos individuais passam a se arquitetar, essencialmente, no campo social. Uma rede emaranhada, vasta e complexa cria a afetividade do indivíduo, juntamente às suas relações com o outro social. Uma psicologia individual se aproxima da psicologia coletiva, que se alicerça no processo identificatório. A libido seria a condição para que a identificação se processe. Esse texto de 1921 traz à tona várias questões que tinham sido trabalhadas, separadamente, em diversos artigos freudianos, como o narcisismo, a identificação ao Pai e uma nova teoria sobre a libido.

Freud, no que concerne ao tema da libido, apoiando-se nas discussões dos teóricos de grupo do final do século XIX e da primeira metade do século XX, marca o tom dos seus primeiros capítulos. O psicanalista recupera as ideias do sociólogo francês Gustave Le Bon e do americano William McDougall, cujas teorias convergem para o conceito de “sugestão grupal”.

Nesses primeiros capítulos, Freud dialoga, principalmente, com Le Bon, que propõe o conceito de “contágio” articulado à ideia de “identificação”. Para o sociólogo, a massa é facilmente manipulável, podendo homogeneizar os indivíduos. Freud contrapõe os aspectos propostos por Le Bon e acrescenta que o fenômeno de grupo não pode ser desenvolvido sem o auxílio da libido. As teorias positivistas de Le Bon sobre a questão das massas não preenchem satisfatoriamente as questões sobre os grupos. Se compreendermos a crítica feita por Freud, nos lembraremos de que o mestre não tem que explicar a origem do poder que exerce sobre o escravo. A partir dessa expressão trazida por Freud, evidencia-se a relação que se estabelece em torno desse poder, e se percebe que, para o psicanalista, surge uma pergunta: onde se apoia a teoria da sugestão dos teóricos dos fenômenos grupais? A proposta freudiana volta-se, então, a aproximar o conceito de libido à identificação do sujeito e, assim, demonstrar as paixões em jogo na formação dos grupos.

As consequências de um investimento no próprio Eu trazem mudanças na teoria da relação de investimento de objeto. A expressão “ligação libidinal” torna-se redundante, com as novas formulações sobre a libido. Doravante, deve-se considerar que, para Freud, a libido é essencialmente uma força de ligação capaz de organizar, de maneira progressiva, não só as pulsões parciais, mas, também, os elementos constitutivos dos seres vivos. Desse modo, os fenômenos de grupo, a partir desse texto de 1921, podem ser descritos se levarmos em consideração as paixões de amor e ódio.

Freud propõe uma concepção de libido como uma força unificadora e organizadora. Essa função unificadora toma corpo, na teoria freudiana, a partir de 1920, quando a pulsão de morte começa a se contrapor à pulsão de vida. Se a pulsão de morte é o desligamento do sujeito na cultura, teríamos, por outro lado, a pulsão de vida como ligação. A partir dessa construção, torna-se necessário pensar as maneiras com que as metas do sistema libidinal podem construir a ligação.

Atualmente, percebemos vários fenômenos de intolerância que podem ser compreendidos a partir do afeto do ódio, notadamente a segregação, que rompe com a ordem social ameaçando o lugar de representação do Pai morto. O universal (bem comum), na contemporaneidade, se apresenta completamente fragmentado, e, dessa condição, teríamos como efeito a segregação.

A segregação seria uma das faces da ineficácia do bem comum, representado pelo universal. O texto Psicologia das massas e análise do Eu apresenta as faces do amor e do ódio, que seriam movidas pelo ideal. Mas, se o ideal de Eu para um grupo social for amar o Outro, como poderíamos pensar a universalidade se esse Outro for diferente? O discurso do ódio se apresenta desnudo, sem qualquer possibilidade de representação. Ele se aproxima mais da guerra do que da política.

A segregação, vista à luz da psicanálise, nos convida a refletir sobre essas questões. Temos, na atualidade, sujeitos LGBTT, negros, índios, o louco, a criança, o adolescente em conflito com a lei e outros sujeitos “estranhos” que podem ser apartados de outros grupos sociais que, em dado contexto, ocupam um lugar hegemônico da norma, estigmatizando o “comportamento do Outro”.

Acontece que o Outro incomoda porque ele tem formas diferentes de se satisfazer em relação a determinados grupos sociais. Na contemporaneidade, percebemos que as minorias acabam sendo vítimas de um discurso segregacionista, que tenta isolar e higienizar o que diverge de sua ideia de normalidade, muitas vezes, anulando direitos adquiridos por essas minorias, tidos como incompatíveis com os parâmetros dos grupos hegemônicos, mas também violando direitos ditos universais. Dessa maneira, parece que a sociedade se vê diante de um impasse, entre o caminho da intolerância e da não aceitação do Outro como diferente, colocando “cada um no seu quadrado”, e o caminho da defesa da diversidade, em que cada sujeito será capaz de conviver com aquilo que é estranho nele mesmo.

FREUD, O ÓDIO E A SEGREGAÇÃO

Desse modo, não é demais lembrar que as questões que concernem à segregação também podem ser observadas no texto de 1921. Nessa perspectiva, o crescimento dos fenômenos de segregação estaria ligado prevalentemente a um discurso que se estrutura a partir de um ideal único e que se pretende homogeneizador. Os grupos se portam como se estivessem hipnotizados por seus ideais, como espécie de estado de transe ou de cegueira. As experiências trágicas dos campos de concentração nazistas e os soviéticos exemplificam isso na história do século XX. Tratam-se de comunidades construídas em torno de um Ideal do Eu, compartilhado entre indivíduos que não se encontram ligados uns aos outros por investimentos libidinais. Esse Ideal projeta o amor a uma idealização, como se o sujeito estivesse amando ou estivesse em hipnose, e o ódio seria projetado a um grupo. A hipnose e o estado de apaixonamento são os dois mecanismos através dos quais Freud busca desenvolver a verdadeira natureza dessa ligação. O dispositivo do Ideal do Eu é alimentado pelo narcisismo dos grupos.

A natureza do estado de apaixonamento implicaria duas formas de ligação. A primeira seria a ligação pelo objeto, e a segunda seria próxima da repetição da idealização, cujo vetor é a ligação. O grupo se forma através desse duplo caminho: ou seja, algumas pessoas colocam um mesmo objeto - o líder - no lugar de seu ideal, e, consequentemente, modificam seus Eus, ao se identificarem umas com as outras por meio do modelo comum. Ama-se incondicionalmente uma determinada pessoa ou ideia. Nos fenômenos de grupo atuais, percebemos uma ambivalência de afetos de amor e ódio que não se misturam.

Essa manifestação da hostilidade ao lado do amor será desenvolvida por Freud a partir de uma equivalência entre a agressividade e a pulsão de morte (FREUD, 1921/2003, p. 87). Por outro lado, no que concerne aos irmãos, a manifestação da face diabólica dos grupos aparece nos sentimentos de inveja e ciúme, mascarados pela força da idealização de Eros. As relações afetivas íntimas e prolongadas entre as mesmas pessoas contêm sentimentos de hostilidade. Isso também acontece quando os homens se reúnem em grupos maiores. Todas as vezes que as famílias se reúnem para o casamento, cada qual se julga mais aristocrata e mais rica que a outra. Duas cidades vizinhas tratam de se prejudicar. Povos que estão próximos dos outros se repelem, os alemães do sul não suportam os alemães do norte, os ingleses abominam os escoceses e os espanhóis detestam os portugueses.

Se o Brasil assistiu ao empoderamento de determinados grupos sociais minoritários, agora, com o declínio do Estado Democrático de Direito, estamos vendo crescer um binarismo discursivo que divide os grupos entre “os amigos” e “os inimigos”. Trata-se de uma acentuada polarização de ideais. As relações binárias se revelam a partir de discursos messiânicos e de demonização. Esse é o caminho das correntes extremistas, uma das faces do “narcisismo das pequenas diferenças”, também trabalhado por Freud em Psicologia das massas e análise do Eu:

Nas antipatias e aversões não disfarçadas para com estranhos que se acham próximos, podemos reconhecer a expressão de um amor a si próprio, um narcisismo que se empenha na afirmação de si, e se comporta como se a ocorrência de um desvio em relação a seus desenvolvimentos individuais acarretasse uma crítica deles e uma exortação a modificá-los. (FREUD, 1921/2003, p. 57).

Também no artigo freudiano O estranho (FREUD, 1919/2003), encontramos uma abordagem da segregação, mas numa perspectiva diferente. A inspiração de Freud é o conto O homem de areia, de Hoffmann, cuja tradição está no Romantismo alemão, tendo como marca o horror e a fantasia, que fazem surgir o grotesco. A importância que tem a dimensão da intrusão do objeto estranho são os futuros desdobramentos que esse objeto poderá ter.

Lacan (1959-1960/2004, p. 56) afirma que o unheimlich é propriamente o heimlich; a raiz dessa palavra demonstra tudo o que é íntimo, conhecido e familiar, mas, pelo fato de ser tão íntimo, chega também ao secreto, estranho e assustador, ou ao angustiante. Está aí a ideia de que o estranho não se faz sem o enquadre anterior do familiar. É o heimlich que dá origem ao unheimlich; é o familiar que produz, de certa maneira, o estranho; é o familiar que dá o aspecto da angústia enquanto aparecimento de algo estranho no lugar do familiar. A segregação aparece como uma das faces dessa outra vertente. Ela surge como o estranho que há em mim. Dessa maneira, o ódio seria algo contra uma parte de mim da qual não quero saber.

Como podemos compreender esse fenômeno? Principalmente se estiver vinculado a um conflito individual do sujeito, que passa a ser projetado para um determinado grupo social. A psicanálise talvez nos ofereça algum caminho para pensarmos a respeito dessa questão se levarmos em consideração o conceito de “êxtimo”.

Êxtimo é um neologismo criado por Lacan para indicar algo do sujeito que lhe é mais íntimo, mas que está exposto, fora, no exterior. Trata-se de uma formulação paradoxal: aquilo que é interior, mais próximo, mais íntimo, e está no exterior. É aquilo com que Lacan afirma que vinha trabalhando “como sendo esse lugar central, essa exterioridade íntima, essa extimidade, que é a Coisa” (LACAN, 1959-60, p. 173). Essa é a marca de um operador da estrutura. Ponto de real onde o mais íntimo está lançado fora, no exterior, essa é também a causa de angústia para cada sujeito. A extimidade nos autoriza a pensar que existe um Outro em mim que é estranho a mim mesmo. Dessa maneira, com a psicanálise, podemos construir a seguinte ideia: o sujeito que não suporta algo que está dentro dele, para não saber daquilo, daquela “coisa” que o incomoda de modo intolerável, escolhe o caminho de eliminar os outros que aceitam aquilo que está dentro dele.

De maneira diversa, Freud trabalha isso em outro momento no texto de 1921, recuperando a símile schopenhaueriana dos porcos-espinhos. Um grupo desses animais apinhou-se apertadamente em certo dia de frio hibernal, de maneira a aproveitarem o calor uns dos outros e, assim, salvarem-se da morte por congelamento. Logo, porém, sentiram os espinhos uns dos outros, coisa que os levou a se afastarem. Dessa maneira, permaneceram durante algum tempo, se afastando e se aproximando uns dos outros, até chegarem a encontrar uma distância em que podiam manter o calor e também não mais se ferirem mutuamente.

Se a teoria dos afetos de amor e ódio de Freud trouxe os destinos dos afetos quando as instituições se apresentam instáveis, os efeitos da ausência de um Estado Democrático de Direito, a anomia, termo apresentado por Émile Durkheim, se apresenta como a outra faceta da ausência do lugar vazio.

PARA CONCLUIR: A ANOMIA COMO SINTOMA SOCIAL

Na primeira parte do texto, apresentamos a Phantasieren articulada à metapsicologia do social. Em seguida, relacionamos essa possibilidade com o lugar vazio do Pai morto e a democracia. As vicissitudes e ameaças desse lugar vazio sem representação foram trabalhadas a partir do texto Psicologia das massas e análise do Eu sob a forma de segregação e ódio. Pretendemos, aqui, demonstrar que a segregação aparece como uma das formas de instabilidade da universalidade do bem comum que só existe articulada ao lugar vazio. Com isso, como veremos adiante, temos também a anomia de Durkheim, como consequência da segregação.

O conceito de “anomia” significa ausência ou desintegração das normas sociais. Durkheim começou a utilizar esse conceito quando passou a perceber o avanço do capitalismo diante da regulação do Estado e do bem comum (DURKHEIM, 2012, p. 56). O sociólogo francês propôs o conceito para pensar as “patologias sociais” das sociedades modernas, marcadas pelo racionalismo e individualismo. A urbanização, a ausência de solidariedade, as novas formas de organização das relações sociais e a forte influência da economia na vida dos indivíduos são os fatores que trazem a ideia de anomia, segundo Durkheim.

A anomia seria um dos efeitos da contemporaneidade na ausência do Estado Democrático de Direito promovido pelo declínio da função do Pai como representante do lugar vazio. Este deixou de ser universal e passou a ser substituído, paulatinamente, pela lógica do capital, em detrimento da representação democrática do bem comum como ordem social. Quando a categoria de “universal” não se inscreve para pensarmos a ordem social, surgem a segregação e a anomia.

Para Slavoj Žižek, em seu texto Marx inventou o sintoma? (ŽIŽEK, 1998, p. 306), o sintoma social é a identificação de uma fissura, de uma assimetria, de um certo desequilíbrio patológico que desmente o universalismo do bem comum. Para o autor esloveno, cada organização social constitui um sintoma social. O sintoma é o que se existe de mais real, ou seja, atravessamentos sociais, políticos e individuais se misturam, criando redes, organizações e relações que permitem a ancoragem dos afetos e produzem um mal-estar na cultura.

A anomia se apresenta como sintoma social, se levarmos em consideração o ponto em que o poder regulador do Estado não pode mais se exercer no interior das relações dos indivíduos com a totalidade do social. Para Durkheim e Slavoj Žižek, isso ocorre quando a organização social deixa de se estabelecer a partir de uma forma mecânica para se transformar em uma forma orgânica, com a prevalência capital.

O momento da anomia consiste nas formas de divisão do trabalho que não se estruturam como solidariedade entre os irmãos, quando as relações dos órgãos não são mais regulamentadas, produzindo uma falta de harmonia entre o indivíduo e o trabalho. Por isso é que Durkheim (2012, p. 84) trabalha novamente a questão da anomia no seu trabalho sobre o suicídio.

Para Giorgio Agamben (2004, p. 65), Durkheim abre a discussão sobre a relação entre a diminuição da ação reguladora da sociedade sobre os indivíduos e o aumento da taxa de suicídio. Isso equivale a postular, como ele faz, sem fornecer nenhuma explicação, uma necessidade intrínseca aos seres humanos de serem regulados em suas atividades e em suas paixões. Para Durkheim (1897/2000), a anomia teria uma vinculação estreita e complexa com o direito e com a ordem social.

O sintoma social traz à tona a questão do real nas relações sociais. O real em questão é o ponto de impossível que estabelece e organiza a estrutura social. Jacques-Alain Miller, em O Outro que não existe e seus comitês de ética (1996/2005), propõe pensar a hipótese de que essa época atual é da “crise do real”. O psicanalista opõe essa crise do real à “crise do saber”, produzida pelo Pai que não ocupa o lugar vazio, sendo tamponado pela força do capital.

O sintoma social é a revelação de um fato no mundo social e psíquico. As forças que regulam as normas sociais não se estruturam mais a partir de um pacto social entre os indivíduos e a sociedade. O estado de desregramento, ou anomia, é um estado em que os sujeitos não compactuam e não se solidarizam. Na contemporaneidade, estamos vivenciando vários episódios de descaso por parte do Estado que acabam criando novas formas de vida em relação à ausência do Estado Democrático de Direito.

É sobre os sujeitos adolescentes que podemos perceber os efeitos da transformação da ordem simbólica. E, entre essas mudanças da ordem simbólica, temos o declínio do patriarcado, que não está mais no campo da exceção. Seu lugar se degradou à medida em que os constrangimentos naturais foram rompidos pelo capital. Esse discurso, que nos trouxe as manipulações da procriação, fez também que, via os gadgets de comunicação, a transmissão do saber e as maneiras de fazer, de uma forma geral, escapassem do modo transmissão tradicional, de geração para geração.

Os adolescentes das periferias das grandes cidades brasileiras, muitos envolvidos com o tráfico de drogas, são jovens abandonados pela sociedade, que manifestam graves problemas psíquicos, em decorrência de desarticulações sociais, culturais e familiares. Na sua maioria, são negros e pardos que sofrem segregação social, racial e econômica em um tipo de sociedade extremamente desigual. Na Europa, temos o fenômeno do terrorismo protagonizado por jovens adolescentes que não se identificam ao modo de viver hegemônico. O salvador jihadista prefere atentar contra a sociedade que se submeter a ela. Tirar a própria vida seria um ato de coragem para aquele que crê na face radical do Alcorão. Os fenômenos de ataques em série realizados por jovens americanos são também diagnósticos do sintoma social na contemporaneidade.

Em certa medida, todos são o equivalente contemporâneo dos órfãos produzidos pelas duas Guerras Mundiais, e constituem faces de grupos radicais xenofóbicos em várias partes do planeta, que não constroem um tipo de identidade articulada à tradição, mas são uma resposta à segregação e à anomia.

 

REFERÊNCIAS

 

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