O sigilo dos laudos médicos nas perícias oficiais (Lei nº 8.112/90)


Porwilliammoura- Postado em 13 maio 2013

Autores: 
JARDIM, Rodrigo Guimarães

 

O acesso aos laudos médico-periciais pelo juiz, pelo advogado da União e pelo procurador da República é uma exceção ao sigilo médico, estando essas autoridades legalmente autorizadas a requisitá-los no exercício das suas atribuições.

Resumo: Os laudos médico-periciais, realizados para análise da concessão de licença para tratamento de saúde do servidor público (Lei nº 8.112/90), são sigilosos, mas esse sigilo não é absoluto. Diante da diferenciação feita pelo Código de Ética Médica entre sigilo médico-paciente e sigilo dos prontuários médicos e da posição manifestada pelo Conselho Federal de Medicina, o acesso aos laudos médico-periciais pelo juiz, pelo advogado da União e pelo procurador da República é uma exceção ao sigilo médico, estando essas autoridades legalmente autorizadas a requisitá-los no exercício das suas atribuições.

Palavras-chave: Direito administrativo. Laudo médico-pericial. Sigilo. Direito à intimidade. Servidor Público.


I. Considerações iniciais

O princípio da publicidade representa uma pedra basilar de um Estado de Direito. Ele tem como fundamento principal a ideia de que toda e qualquer manifestação do poder estatal interessa aos administrados, pois são eles os financiadores do Estado e são eles os destinatários da sua atuação[1]. Desse modo, em regra, os atos administrativos devem ser de conhecimento público.

Entretanto, não existe princípio ou regra com poder absoluto em nenhum ordenamento jurídico. No Brasil, até mesmo o direito à vida está limitado pela Constituição Federal de 1988, na medida em que esta admite a pena de morte no caso de guerra declarada (art. 5º, inciso XLVII, alínea “a”)[2]. Assim, nem todos os atos praticados pela Administração Pública podem ser acessados por qualquer cidadão, pois alguns são considerados sigilosos. O princípio da publicidade da Administração Pública encontra limite, por exemplo, na colisão com o direito à intimidade e com o direito à vida privada, pois estes também estão previstos constitucionalmente.

 

Uma das hipóteses de sigilo do ato administrativo - e, portanto, exceção ao princípio da publicidade - é o acesso aos laudos da perícia realizada para concessão da licença para tratamento de saúde do servidor público federal, prevista no art. 202 e seguintes da Lei nº 8.112/90. O tema deste ensaio é o alcance desse sigilo, no intuito de se verificar quais autoridades e em quais circunstâncias os laudos médico-periciais poderão ser acessados.


II. A espécie de sigilo dos laudos médico-periciais.

O direito à intimidade está prevista no art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988, e ele refere-se “às relações subjetivas e de trato íntimo da pessoa, suas relações familiares e de amizade”[3], alcançando fatos e situações que não dizem respeito à coletividade, senão ao próprio indivíduo. O direito à intimidade classifica-se como direito fundamental de primeira geração, pois impõe ao Estado um dever de inércia, de não agir, de se abster[4]. Ao garantir a inviolabilidade à intimidade, a Constituição Federal de 1988 proíbe o Estado de ingressar na esfera íntima do cidadão.

Nesse momento, contudo, é importante pontuar que, se a Constituição Federal de 1988 prevê a inviolabilidade à intimidade, ela não garante em seu texto - constitucional - o sigilo da atuação médica. Por esse motivo é que o sigilo médico está exatamente no mesmo patamar dos demais sigilos que visam proteger a intimidade - nem é mais, nem é menos importante -, isto é, o patamar infraconstitucional ou legal (decorrente de lei).

O sigilo dos documentos públicos foi normatizado pela Lei nº 8.159/91, que, no art. 23, § 1º, previu que “os documentos (...) necessários ao resguardo da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas são originariamente sigilosos.”, e no seu caput determinou uma maior regulamentação pelo Poder Executivo. O art. 2º, caput, do Decreto nº 4.553/2002, por sua vez, trouxe previsão símile à recém-transcrita, mas o seu parágrafo único - agora sim exercendo o poder regulamentar - dispôs que o “acesso a dados ou informações sigilosos é restrito e condicionado à necessidade de conhecer”. Esse parágrafo único merece destaque porque esclareceu que o fato de o documento ser sigiloso não significa que ele deve ficar trancafiado. Ao contrário, determina que somente poderá ser manuseado por pessoas que tenham necessidade de conhecê-lo.

Com base no sigilo médico-paciente, o Conselho Federal de Medicina restringiu o acesso aos laudos resultantes das perícias médicas somente a médicos através do Parecer nº 05/2010. Esse ato concluiu que “a proteção do direito à privacidade e confidencialidade dos dados íntimos do segurado, obtidos durante a realização de um ato médico-pericial, é dever ético do médico e da instituição”[5] e que disponibilizar “manuseio, impressão ou consulta do prontuário médico de segurado, para servidores não médicos de instituições públicas ou privadas, sem que o ato atenda os requisitos legais, constitui infração ao Código de Ética Médica e demais disposições normativas relacionadas.[6]

A posição adotada pelo Conselho Federal de Medicina ampara-se no sigilo médico-paciente. Entretanto, existem duas situações que, por terem suporte fático distinto, tem consequências jurídicas distintas: o sigilo médico-paciente e o sigilo da perícia médica.

O sigilo médico-paciente baseia-se na relação de confiança que existe entre o médico e o paciente, pois é este quem escolhe o médico para cuidar da sua saúde. Nessa relação jurídica, existem apenas duas pessoas: o médico e o paciente. Por essa razão, aplica-se o disposto no capítulo IX, da Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.931/2009, que aprovou o Código de Ética Médica. O art. 73 veda ao médico “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”. Essa proibição persiste mesmo no depoimento como testemunha, hipótese em que, perante a autoridade, o médico deve declarar o seu impedimento. O art. 76, por sua vez, proíbe o médico de “revelar informações confidenciais obtidas quando do exame médico de trabalhadores”, mesmo que haja exigência dos dirigentes e empresas ou de instituições. Na mesma linha, o art. 77 proíbe o médico de “prestar informações a empresas seguradoras sobre as circunstâncias da morte do paciente sob seus cuidados”.[7]

Pela pertinência de diferenciar o sigilo médico-paciente da perícia médica, gize-se que o Código de Ética Médica (art. 73, parágrafo único) concede ao médico a prerrogativa de alegar impedimento perante o juiz de “revelar fato que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão”. Por outro lado, o art. 89[8] do mesmo Código de Ética não permite ao médico se negar a “liberar cópias do prontuário sob a sua guarda” para o atendimento de ordem judicial.

Inquestionável, em conseqüência, que, para o próprio Código de Ética Médica, há diferença entre sigilo médico-paciente e sigilo dos prontuários médicos, bem como que o sigilo dos prontuários é menos rigoroso que o sigilo médico-paciente. Essa situação tem uma explicação muito simples: enquanto na conversa com o paciente o médico ficará sabendo de muitas informações necessárias para formar o diagnóstico (o local, a data, a situação em houve o contágio...), no prontuário não é necessário constar, por exemplo, que a contaminação se deu num relacionamento extraconjugal, basta registrar a doença.

Na hipótese da perícia médica, ademais, não há se falar em relação de confiança entre médico-paciente, a uma porque não há paciente e, sim, periciando, a duas porque não é o periciando quem escolhe o médico, a três porque existe uma terceira pessoa na relação jurídica, isto é, a destinatária do resultado da perícia. Nessa senda, pela diversidade do suporte fático (=inexistência de paciente) não é possível aplicar o sigilo médico-paciente às hipóteses de perícia médica.

Não é só o Código de Ética Médica, aliás, que positiva diferença entre o sigilo médico-paciente e o sigilo dos prontuários médicos. O próprio Conselho Federal de Medicina exarou o Parecer nº 24/1990, confirmando a perícia médica como exceção ao sigilo médico:

O dever de guardar o segredo médico, no entanto, não é absoluto. A ilicitude penal, como a civil e ética, é excluída pelos próprios diplomas que regem a matéria.

(...)

O Jurista Antonio Carlos Mendes afirma (Parecer ao CREMESP, em 1980) que:

"A justa causa tem, assim, os seus limites fixados pelo Direito, não admitindo circunstâncias estranhas que conduziriam fatalmente a imprecisão e alargamento excessivo da posição justificativa, com o enfraquecimento da tutela penal". E que:

"Destarte, o segredo médico, como espécie do segredo profissional, cede a razões relevantes que o Direito reconhece e regula, evitando que o médico seja punido. Estas razões são identificadas pela expressão JUSTA CAUSA ..."

(...) Compete somente à lei, tendo em vista um interesse público superior, trazer exceções ao segredo médico. Segundo aquele mestre, a legislação brasileira menciona as seguintes situações, em face das quais o médico tem o dever de abrir exceção à regra do segredo:

1 - declaração de nascimento, na ausência dos responsáveis legais;

2 - declaração de óbito, na ausência da família e do diretor do estabelecimento;

3 - denúncia de doença cuja notificação é compulsória;

4 - no exercício de função pericial;

5 - em atestados médicos, por solicitação do paciente;

6 - comunicação de certos crimes, nos termos da L.C.P.[9]

A posição adotada pelo colegiado foi reiterada no Parecer CFM nº 28/1992 (Processo Consulta CFM nº 2156/92), abaixo transcrito no que é relevante:

(...)

Contudo, não é essa questão a ser dirimida. O que se questiona é se o dispositivo legal apontado, que determina a quebra do Sigilo Médico, corresponde ao dever legal de que trata o Art. 102 do Código de Ética Médica. A legislação e jurisprudência citada em Parecer referente ao Processo Consulta n.º 3016/89, aprovado por este Plenário, expressa que compete à lei, tendo em vista um interesse público superior, trazer exceções ao Segredo Médico e que a legislação brasileira menciona, entre as situações em face das quais o médico tem o dever de abrir exceção à regra do segredo, como é o caso da comunicação das doenças ditas de notificação compulsória, o exercício da função pericial.

Assim, entendo que os dispositivos citados da Lei n.º 8.112/90 orienta o exercício da função pericial do médico, determinando as patologias que devem ser expressas no atestado médico e no laudo da junta médica, especificamente para licença para tratamento de saúde e para Aposentadoria dos Servidores submetidos ao Regime Jurídico Único.[10]

(sem destaque no original)

Nessa linha, por força do art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988, do art. 23, § 1º, da Lei nº 8.159/91, e do art. 2º do Decreto nº 4.553/2002, os laudos médico-periciais estão cobertos pelo sigilo legal. Por outro lado, diante da diferenciação feita pelo Código de Ética Médica entre sigilo médico-paciente e sigilo dos prontuários médicos e da posição manifestada pelo Conselho Federal de Medicina nos Pareceres nº 24/1990 e 28/1992, conclui-se que o acesso aos laudos médicos periciais, em situações específicas, é uma exceção ao sigilo médico.

Cabe, portanto, perscrutar o alcance do sigilo legal a que estão submetidos os laudos médico-periciais.


III. O alcance do sigilo legal

Definido que os laudos médicos estão sujeitos a sigilo, mas que não se trata do sigilo médico-paciente, cabe analisar quais autoridades poderão ter-lhes acesso.

Não se questiona na praxis o poder de os magistrados terem acesso a quaisquer documentos no exercício da jurisdição. A dúvida surge em relação a outras autoridades, como o fornecimento dos laudos médicos aos advogados da União (nas causas em que os servidores questionam o indeferimento do pedido de licença para tratamento de saúde), aos procuradores da República e aos delegados da Polícia Federal. Dessa forma, abordar-se-á a disciplina legal aplicável a estas 3 (três) autoridades.

a) O sigilo em relação aos advogados da União

O mandato dos advogados da União para a representação judicial da União tem substrato constitucional, pois o art. 131 da Constituição Federal de 1988 define que a

Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

Por se tratar do exercício da advocacia, à carreira de advogado da União aplica-se o Estatuto da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil (EOAB) - Lei nº 8.906/94, pois, conforme previsão expressa do art. 3º, § 1º, “exercem atividade de advocacia, sujeitando- ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União”.

Corolário da aplicação do Estatuto da Ordem dos Advogados à carreira de advogado da União é a obrigação de manter o sigilo advogado-cliente. Em verdade, dispõe o seu art. 7º, inciso XIX, que é direito do advogado recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional.

Realce-se que o art. 34, inciso VII, do mesmo Estatuto considera infração disciplinar a violação, sem justa causa, do sigilo profissional. Ademais, o Código de Ética dos Advogados traz capítulo próprio sobre o sigilo profissional:

CAPÍTULO III

DO SIGILO PROFISSIONAL

Art. 25. O sigilo profissional é inerente à profissão, impondo-se o seu respeito, salvo grave ameaça ao direito à vida, à honra, ou quando o advogado se veja afrontado pelo próprio cliente e, em defesa própria, tenha que revelar segredo, porém sempre restrito ao interesse da causa.

Art. 26. O advogado deve guardar sigilo, mesmo em depoimento judicial, sobre o que saiba em razão de seu ofício, cabendo-lhe recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou tenha sido advogado, mesmo que autorizado ou solicitado pelo constituinte.

Art. 27. As confidências feitas ao advogado pelo cliente podem ser utilizadas nos limites da necessidade da defesa, desde que autorizado aquele pelo constituinte.

Parágrafo único. Presumem-se confidenciais as comunicações epistolares entre advogado e cliente, as quais não podem ser reveladas a terceiros.

Destaque-se, ainda, que o advogado da União também se submete ao regime jurídico da Lei nº 8.112/90, aplicável a todos os servidores públicos federais. Esse diploma, na mesma linha do Código de Ética dos Advogados, impõe-lhe o dever de “guardar sigilo sobre os assuntos da repartição” (art. 116, inciso VIII) e comina pena de demissão pela “revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo” (art. 132, inciso IX).

Alongou-se o discurso sobre o suporte normativo acerca do conhecido dever de sigilo entre advogado e cliente e sobre a Lei nº 8.112/90 para demonstrar que não haverá violação à intimidade do periciado no fornecimento de laudos médico-periciais aos advogados da União exatamente porque a sua disciplina legal os obriga ao dever de sigilo das informações e documentos que tiverem acesso no exercício da função[11]. Ademais, o acesso a esses documentos não se reveste de simples deleite. Ao contrário, são indispensáveis ao bom desempenho da atividade institucional de representação judicial e extrajudicial da União, bem como ao exercício do assessoramento e da consultoria jurídica.

Importante dizer que, enquanto o art. 27 do Código de Ética dos Advogados prevê que o causídico somente pode utilizar as confidências autorizadas pelo cliente, a lei confere ao advogado da União, como preposto desta, o poder de decidir quais documentos são pertinentes para a defesa do Instituto. O art. 4º da Lei 9.028/95 estabelece que “na defesa dos direitos ou interesses da União, os órgãos ou entidades da Administração Federal fornecerão os elementos de fato, de direito e outros necessários à atuação dos membros da AGU”. Em suma, a opção legislativa foi conceder aos advogados da União o acesso aos laudos médico-periciais e, ao mesmo tempo, imputar-lhes a obrigação de sigilo sobre esses documentos, sob pena de responsabilidade pela violação ao Estatuto da Ordem dos Advogados e dos deveres do servidor público previstos na Lei nº 8.112/90.

É importante deixar claro, também, que a posição aqui adotada está em plena consonância com o art. 89 do Código de Ética Médica, que veda ao médico “liberar cópias do prontuário sob sua guarda, salvo quando autorizado, por escrito, pelo paciente, para atender ordem judicial ou para a sua própria defesa.”Note-se que o Código de Ética autoriza o médico a utilizar o prontuário médico para a sua própria defesa. Cabe definir o significado da expressão “para a sua própria defesa”.

Tem-se claro que a finalidade desse dispositivo não é autorizar o médico a utilizar o prontuário em uma ação de cobrança, imobiliária, tributária... Mostra-se evidente que o Código de Ética autoriza a utilização do prontuário para defesa do ato praticado no ofício de médico em relação àquele paciente, isto é, para demonstrar que a atuação do médico foi de acordo com o conhecimento e com os padrões exigidos pela ciência médica. Contudo, o médico-réu num processo não tem capacidade postulatória (de falar em juízo), o que exigirá que se contrate um advogado, o qual, necessariamente, terá que ter acesso a esse prontuário, sob o sigilo do Estatuto da Ordem dos Advogados, para realizar a defesa judicial.

Ora, se o Código de Ética Médica autoriza o uso do prontuário médico para defesa do ato praticado no ofício de médico, se o médico terá que contratar um advogado que terá acesso ao laudo, é corolário lógico que o Código de Ética Médica também autoriza o uso do laudo médico-pericial para que o advogado da União defenda a perícia administrativa em nome da União. Não há diferença teleológica entre essas duas situações.

Conclui-se, então, por força do art. 4º da Lei nº 9.028/95, que os advogados da União possuem autorização legal para ter acesso aos laudos médico-periciais, respondendo, no entanto, pela destinação que derem a esses documentos sigilosos.

b) O sigilo dos laudos em relação aos procuradores da República

A análise do caso em relação ao acesso aos laudos pelos procuradores da República não destoa muito daquela feita no que tange aos advogados da União. Há, sim, distinção no fundamento jurídico.

O Ministério Público Federal, do qual são membros os procuradores da República, é, nos termos do art. 127 da Constituição Federal de 1988, “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Dentre as funções institucionais do Ministério Público (art. 129), a quem cabe promover privativamente a ação penal pública, está o poder requisitar, na forma de lei complementar, informações e documentos para a instrução de procedimentos[12].

A Lei Complementar nº 75/1993, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, prevê no art. 8º, caput e incisos, que para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta, e ter acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública.

Acrescente-se que o § 2º do art. 8º dispõe que nenhuma autoridade poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da subsistência do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do documento que lhe seja fornecido. Entretanto, esse poder sofre limitação pelo § 1º do mesmo artigo, ao prever que o membro do Ministério Público será civil e criminalmente responsável pelo uso indevido das informações e documentos que requisitar.

Dessa forma, a exemplo do que ocorre com os advogados da União, os procuradores da República também tem autorização legal de acesso aos laudos médico-periciais, respondendo igualmente pela destinação dada ao documento.

c) O sigilo dos laudos em relação aos delegados da Polícia Federal

No que diz respeito ao fornecimento de laudos médico-periciais aos delegados da Polícia Federal, a situação tem nuances diferenciadas.

Com efeito, ao contrário dos advogados da União e dos procuradores da República, os delegados da Polícia Federal não têm as suas atribuições previstas em estatuto próprio de carreira. A atuação deles está prevista no “Título II – Do Inquérito Policial”, do Decreto-Lei nº 3.689/1941, que instituiu o Código de Processo Penal.

Segundo o Código de Processo Penal, a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria[13]. Assim que tiver conhecimento da ocorrência de infração penal, a autoridade policial deverá dirigir-se ao local do cometimento do fato, garantindo que não haja alteração da cena do crime até a chegada dos peritos criminais[14].

A lei garante à autoridade policial o poder de apreender objetos que tiverem relação com o fato, de colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do delito, de ouvir o ofendido e o indiciado, de proceder ao reconhecimento de pessoas e coisas, de realizar acareações, de determinar o exame de corpo de delito e a realização de perícias, de ordenar a identificação do indiciado por processo datiloscópico e de averiguar a vida pregressa do indiciado[15].

Porém, ainda que o Código de Processo Penal determine à autoridade policial a colheita de todas as provas que servirem para o esclarecimento do delito e que garanta o sigilo do inquérito policial, não se visualiza, dentre os poderes concedidos pela lei, autorização para que os delegados de Polícia tenham acesso diretamente a documentos sigilosos. É bem verdade que o munus da segurança pública é de interesse de toda a coletividade. Contudo, uma interpretação sistemática reclama a incidência do art. 13 da própria lei processual penal que impõe à autoridade policial o dever de realizar diligências requisitadas pelo juiz ou pelo Ministério Público.

Nesse diapasão, como o inquérito tem por finalidade servir de base para o oferecimento de denúncia, ato privativo do Ministério Público, e esta instituição tem prerrogativa de requisitar documentos sigilosos, cabe à autoridade policial representar ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário a solicitação de acesso aos laudos médicos da perícia oficial, pois eles enquadram-se nas várias situações em que a lei retira o poder da polícia agir diretamente, como, por exemplo, a quebra de sigilo telefônico e a quebra de sigilo fiscal.


IV. Considerações finais

O ser humano naturalmente é vocacionado para a vida em sociedade. No entanto, esse sentido coletivo depende da manutenção da individualidade de cada pessoa, pois existem informações íntimas que podem causar prejuízo a imagem individual ou, simplesmente, não dizem respeito a toda coletividade. Essa é exatamente a situação dos laudos médico-periciais originados na perícia oficial para concessão de licença para tratamento de saúde (Lei nº 8.112/90), que, por força de lei, estão cobertos pelo sigilo.

O sigilo dos laudos médico-periciais, entretanto, não é absoluto. Diante da diferenciação feita pelo Código de Ética Médica entre sigilo médico-paciente e sigilo dos prontuários médicos e da posição manifestada pelo Conselho Federal de Medicina nos Pareceres nº 24/1990 e 28/1992, o acesso aos laudos médico-periciais pelo juiz, pelo advogado da União e pelo procurador da República é uma exceção ao sigilo médico, estando essas autoridades legalmente autorizadas a requisitá-los no exercício das suas atribuições.


Notas

[1] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 18.ed.rev.atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 104/105.

[2] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 204/205.

[3] FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Comentários à constituição brasileira de 1998. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 35

[4] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 26.

[5] BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Processo Consulta CFM nº 6032/09. Interessado: Comissão de Ética Médica/ Gex Campo Grande/ MS - INSS. Relator: Cons. Renato Moreira Fonseca. Brasília, 14 de janeiro de 2010. Disponível em: < http://www.cfm.org.br>. Acesso em 17/03/2013.

[6] Ibidem, acesso em 17/03/2013.

[7] Disponível em: < http://www.cfm.org.br>. Acesso em 17/03/2013.

[8] É vedado ao médico: (...) Art. 89. Liberar cópias do prontuário sob sua guarda, salvo quando autorizado, por escrito, pelo paciente, para atender ordem judicial ou para a sua própria defesa.

[9] BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Processo Consulta CFM nº 3016/89. Interessado: Petrobrás - Petróleo Brasileiro S/A. Relator: Cons. Hércules Sidnei Pires Liberal. Brasília, 11 de agosto de 1990. Disponível em: < http://www.cfm.org.br>. Acesso em 01/08/2011.

[10] BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Processo Consulta CFM nº 2156/92. Interessado: Marcelo Augusto L. Cardoso. Relator: Cons. Hércules Sidnei Pires Liberal. Brasília, 11 de dezembro de 1992. Disponível em: < http://www.cfm.org.br>. Acesso em 28/02/2013.

[11] FERREIRA, Fabrizio Rodrigues. Da importância do sigilo profissional na advocacia. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3331, 14 ago. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22409>. Acesso em: 17 mar. 2013.

[12] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 994/997.

[13] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado, volume 1. 8.ed.rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 29.

[14] Ibidem, p. 42.

[15] Ibidem, p. 42.




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