O pensamento publicista e a superação do conceito de ação pelo de jurisdição


Porrayanesantos- Postado em 21 maio 2013

Autores: 
ALMEIDA, Beatriz Monzillo

 

O conceito de ação pode ser analisado sob duas óticas principais, quais sejam: a da concretude (ou civilista) e a da abstração (ou publicista).

 

                  Para os defensores da primeira corrente, existiria uma relação de dependência entre o direito processual e o material. Isso quer dizer que o direito de acionar o Judiciário estaria diretamente relacionado à existência de um direito material. Noutros termos, é como se, entre o pedido e o julgamento, houvesse uma "fase preliminar de julgamento de admissibilidade, que dá ao juiz um controle maior sobre os casos que ele deve ou não apreciar"[1].

 

                   De outro turno, os teóricos da corrente publicista ou abstrativista entendem que a ação é um direito público, dirigido contra o Estado e, por isso mesmo, independente do direito material subjacente, já que "o cidadão pode exigir do juiz uma resposta a qualquer dos pedidos que ele fizer"[2]. Além disso, para esta teoria, a ação seria também um direito abstrato, pois independente do resultado da demanda.

 

                   Atualmente, o pensamento civilista encontra-se relativamente superado[3], não restando dúvidas acerca da autonomia entre direito material e processual. Segundo ARAÚJO COSTA, o conceito de ação preconizado por referida corrente "é incompatível com a  jurisdição dos Estados modernos, nos quais se consolidou o princípio de que qualquer demanda pode ser levada ao Judiciário"[4].

 

                   Passou-se, então, a assegurar aos indivíduos o direito de propor uma ação, independentemente da existência, ou não, do alegado direito material.

 

                   No entanto, com o passar do tempo, viu-se que a mera existência de tal direito não era suficiente para assegurar a efetiva proteção dos bens jurídicos. Com efeito, muitos obstáculos sociais, como o custo do processo e a lentidão de sua tramitação, por exemplo, poderiam impedir a proteção da tutela material vindicada.

 

                   De acordo com MARINONI[5], o problema da falta de efetividade do direito de ação, "ainda que já fosse percebido no início do século XX, tornou-se ainda mais nítido quando da consagração constitucional dos chamados novos direitos, ocasião em que a imprescindibilidade de um real acesso à justiça tornou-se ainda mais evidente."

 

                   Nesse contexto, a partir da segunda metade do século XX, "a doutrina processual em todo o mundo começou a reclamar por uma urgente e profunda mudança de rumos, para compatibilizar-se com o moderno estado democrático e social implantado e desenvolvido após a segunda guerra mundial"[6].                 

 

                   De fato, "não há como pensar em proibição da tutela privada e, assim, em Estado, sem se viabilizar a todos a possibilidade de efetivo acesso ao Poder Judiciário"[7].

 

                   Assim, seguindo a tendência mundial, a Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XXXV) alçou o direito de ação à condição de direito fundamental, sendo assegurado aos indivíduos o amplo acesso à justiça, bem como o direito à tutela jurisdicional efetiva. A partir de então, o pensamento publicista ganhou contornos ainda mais amplos.  

 

                   Considerando que a jurisdição é uma das funções do Estado, pode-se afirmar que a nova ordem constitucional aumentou o protagonismo do Poder Judiciário, que passou a ter a atribuição de assegurar não apenas o exercício do direito de ação, mas também a sua eficácia.

 

                   Nessa linha, JOAN PICÓ I JUNOY[8] afirma que "en la medida en que tiene asignada la función pública de resolver los conflictos, se considera que deben atribuírsele [ao juiz] las iniciativas necesarias para lograr la máxima eficacia en su función".

 

                   Em sentido semelhante, cabe citar HUMBERTO THEODORO JUNIOR[9], segundo quem a consecução da justa pacificação dos litígios assumiu, para o juiz, a natureza de um encargo fundamental e, por isso mesmo, de ordem pública, observe-se:

 

Tendo a ordem constitucional contemporânea conferido a todos o pleno e irrestrito acesso à justiça, teve de instrumentalizar o processo com mecanismos que, efetivamente, pudessem assegurar, nos julgamentos judiciais, o efetivo “acesso à ordem jurídica justa”.Corolário dessa exaltação cívica da função jurisdicional foi o reforço da publicização do direito processual e dos poderes do juiz, cuja missão máxima se comprometeu com a efetiva implementação da tutela justa. A consecução da justa pacificação dos litígios assumiu, para o juiz, a natureza de um encargo fundamental e, por isso mesmo, de ordem pública" (Grifou-se).     

 

                   O direito de ação passou, então, a ser visto não mais apenas como o direito ao processo, mas como a garantia cívica de justiça, cabendo ao Poder Judiciário a missão de assegurar resultados práticos e efetivos que não só permitam a realização da vontade da lei mas que deem a essa vontade o melhor sentido, aquele que possa se aproximar ao máximo da aspiração de justiça[10].

 

                   Por tal razão, diz-se atualmente que o conceito de ação vem sendo superado pelo de jurisdição. Com efeito, não basta assegurar às partes o direito de acionar o judiciário, mas, principalmente, garantir-lhes uma efetiva prestação jurisdicional.

 

                   Não por outro motivo, o princípio da inércia da jurisdição, antes tão propalado, paulatinamente, vem cedendo espaço a um judiciário mais preocupado com a concretização dos valores constitucionais. Observem-se, a propósito, as precisas colocações de FREDIE DIDIER JUNIOR[11]:

 

"Atualmente, a inércia da jurisdição é vista com certos temperamentos. Ao magistrado, atualmente, são atribuídos amplos poderes de direção do processo, inclusive com a possibilidade de determinar, sem provocação, a produção dos meios de prova para a formação do seu convencimento. Além disso, a cada dia aumentam os casos de pedidos implícitos, autorizações legais para que o magistrado conceda tutela jurisdicional sem pedido expresso pela parte. Tem o magistrado, ainda, na forma do § 5º do art. 461 do CPC, poder geral de efetivação das suas decisões, estando autorizado a tomar todas as providências que reputar adequadas e necessárias para implementar na prática seu comando, mesmo que tais providências não estejam previstas expressamente em lei.”

 

                   Assim, cabe concluir dizendo que, embora o direito de acionar o Judiciário seja da parte interessada, o desenvolvimento do processo incumbe ao Estado. Com efeito, o processo não é mais um simples instrumento dirigido à tutela dos interesses privados, mas sim uma função pública do Estado, que passa a ser diretamente interessado no cumprimento efetivo de tal mister. Daí dizer-se que o indivíduo não tem apenas o direito de ação, mas sim o direito à jurisdição, que deve ser prestada dentro dos mais amplos conceitos de acesso à justiça e efetividade da prestação jurisdicional.

 

Referências bibliográficas

 

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo et al. Teoria geral do processo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

 

COSTA, Henrique Araújo; COSTA, Alexandre Araújo. Conceito de ação: da teoria clássica à moderna. Continuidade ou ruptura? Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, v. 19, n. 76, out./dez. 2011. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/42769>. Acesso em: 23/11/2012.

 

DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito processual civil. Teoria geral do processo e processo de conhecimento. Vol. 1. 7ª ed. Salvador: Ed. Podivm, 2007.

 

JUNOY, Joan Picó I. El derecho procesal entre el garantismo y la eficacia: un debate mal planteado. Ponencia presentada al “Congreso Internacional de Derecho Procesal” celebrado en Lima del 29 al 31 de octubre de 2003, y publicada en Derecho Procesal Civil. Congreso Internacional, Lima, 2003, pp. 55-66; también en la Revista Iberoamericana de Derecho Procesal, 2004, núm. 4, pp. 253-270. Y en su versión italiana cfr. Il diritto processuale tra garantismo ed efficacia: un dibattito mal impostato, en “Studi di diritto processuale civile in onore di Giuseppe Tarzia”, T. I, edit. Giuffrè, Milano, 2005, pp. 213 a 230. Disponível em http://egacal.e-ducativa.com/upload/JMA_Pico.pdf, acessado em 23-11-2012.

 

MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 2ª ed. São Paulo: RT, 2007.

 

THEODORO JUNIOR, Humberto. O processo justo: o juiz e seus poderes instrutórios na busca da verdade real. Disponível em: http://www.amlj.com.br/artigos/118-o-processo-justo-o-juiz-e-seus-podere.... Acessado em 24-11-2012.

 

________. Prova - princípio da verdade real - poderes do juiz - ônus da prova e sua eventual inversão - provas ilícitas - prova e coisa julgada nas ações relativas à paternidade (dna): Disponível em: http://www.jfgontijo.adv.br/2008/artigos_pdf/ Humberto/Prova.pdf>. Acessado em 24-11-2012.

 

Notas:

[1]        COSTA, Henrique Araújo; COSTA, Alexandre Araújo. Conceito de ação: da teoria clássica à moderna. Continuidade ou ruptura? Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, v. 19, n. 76, out./dez. 2011, p. 12. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/42769>. Acesso em: 21/11/2012.

[2]  IDEM, IBIDEM.

[3]   Não se pode afirmar que a teoria civilista esteja totalmente superada, pois a teoria eclética, adotada pelo Código de Processo Civil Brasileiro, representa um retorno ao concretismo, na medida em que permite a extinção de processos sem julgamento de mérito, nas hipóteses em que não preenchidas determinadas condições da ação.

[4]   COSTA, Henrique Araújo; COSTA, Alexandre Araújo. Conceito de ação: da teoria clássica à moderna. Continuidade ou ruptura? Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, v. 19, n. 76, out./dez. 2011, p. 7. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/42769>. Acesso em: 21/11/2012.

[5]   MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 2ª ed. São Paulo: RT, 2007, p. 188.

[6]   THEODORO JUNIOR, Humberto. O processo justo: o juiz e seus poderes instrutórios na busca da verdade real. Disponível em: http://www.amlj.com.br/artigos/118-o-processo-justo-o-juiz-e-seus-podere.... Acessado em 24-11-2012.

[7]  MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 2ª ed. São Paulo: RT, 2007, p. 189.

[8] JUNOY, Joan Picó I. El derecho procesal entre el garantismo y la eficacia: un debate mal planteado. Ponencia presentada al “Congreso Internacional de Derecho Procesal” celebrado en Lima del 29 al 31 de octubre de 2003, y publicada en Derecho Procesal Civil. Congreso Internacional, Lima, 2003, pp. 55-66; también en la Revista Iberoamericana de Derecho Procesal, 2004, núm. 4, pp. 253-270. Y en su versión italiana cfr. Il diritto processuale tra garantismo ed efficacia: un dibattito mal impostato, en “Studi di diritto processuale civile in onore di Giuseppe Tarzia”, T. I, edit. Giuffrè, Milano, 2005, pp. 213 a 230. Disponível em http://egacal.e-ducativa.com/upload/JMA_Pico.pdf, acessado em 23-11-2012.

[9]  THEODORO JUNIOR, HUMBERTO. Prova - princípio da verdade real - poderes do juiz - ônus da prova e sua eventual inversão - provas ilícitas - prova e coisa julgada nas ações relativas à paternidade (dna): Disponível em: http://www.jfgontijo.adv.br/2008/artigos_pdf/Humberto/Prova.pdf>. Acessado em 24-11-2012.

[10]  THEODORO JUNIOR, Humberto. O processo justo: o juiz e seus poderes instrutórios na busca da verdade real. Disponível em: http://www.amlj.com.br/artigos/118-o-processo-justo-o-juiz-e-seus-podere.... Acessado em 24-11-2012.

[11]   DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito processual civil. Teoria geral do processo e processo de conhecimento. Vol. 1. 7ª ed. Salvador: Ed. Podivm, 2007, p. 74.

 

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