O locus standi no sistema interamericano e a necessidade de um 'Protocolo n. 11': forçosa reverência à novel concepção do Jus Gentium


PorJeison- Postado em 01 abril 2013

Autores: 
FARIAS, Gregory Victor Pinto de.

 

Resumo: O procedimento abraçado pelo sistema interamericano é bifásico, de modo que, para que a vítima tenha acesso à Corte, deverá submeter a sua pretensão, ex ante, ao crivo da Comissão. Cuida-se, pois, de cópia do antigo procedimento do sistema europeu, atualmente já superado, dado que o vetusto sistema bifásico não mais subsiste. O indivíduo, no âmbito europeu, tem direto acesso (locus standi) à Corte Europeia de Direitos Humanos, conforme modificações perpetradas pelos Protocolos 11 e 14. É medida alvissareira, que se encontra em perfeita sintonia com as aspirações do Jus Gentium do Século XXI.

Palavras-chave:Humanização do direito internacional. Sistema interamericano. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Vítima.

1. Introdução

            A proteção dos direitos humanos no espectro americano é formada, fundamentalmente, por duas sistemáticas. A primeira é a da Organização dos Estados Americanos (OEA), a qual se vale da Carta de Criação da OEA e da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. A segunda, mais difundida nas academias brasileiras, baseia-se no sistema da Convenção Americana de Direitos Humanos (o que engloba, à evidência, os preceitos vazados pelo Protocolo de San Salvador, atinente aos direitos sociais e econômicos).

            Focar-se-á, no quadrante em vigor, o estudo do sistema da Convenção Americana de Direitos Humanos – é de se notar que a carta da Convenção Americana de Direitos Humanos, observada sob a ótica de um verdadeiro tratado, também recebe o timbre de Pacto de San José da Costa Rica, assinada que foi, propriamente, em San José, na Costa Rica, em 1969, cuja entrada em vigor se deu em 1978.

            Nessa urdidura, quadra vincar que o sistema da Convenção Americana de Direitos Humanos é formado, estruturalmente, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgãos que atuam em uma verdadeira ambiência de sistematicidade, aprioristicamente de modo harmônico, de sorte que é intolerável que se lhes atribuam o mote de entidades autopoiéticas.

            Como apontado por Flávia Piovesan[1], a Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem uma pletora de atribuições ungida na própria Convenção Americana de Direitos Humanos:

Promover a observância e a proteção dos direitos humanos na América é a principal função da Comissão Interamericana. Para tanto, cabe-lhe fazer recomendações aos governos dos Estados-partes, prevendo a adoção de medidas adequadas à proteção desses direitos; preparar estudos e relatórios que se mostrem necessários; solicitar aos governos informações relativas às medidas por eles adotadas concernentes à efetiva aplicação da Convenção; e submeter um relatório anual à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos.

            De outro bordo, no que toca à Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuida-se de órgão jurisdicional, composto por sete juízes de Estados que façam parte da OEA; incumbe-lhe não só o exercício de um múnus contencioso, senão, igualmente, consultivo. Esclareça-se, nesse sentido, à luz das balizas ventiladas por Flávia Piovesan[2], trazendo a reboque as lições de Héctor Fix-Zamudio:

De acordo com o disposto nos artigos 1º e 2º de seu Estatuto, a Corte Interamericana possui duas atribuições essenciais: a primeira, de natureza consultiva, relativa à interpretação das disposições da Convenção Americana, assim como das disposições de tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados Americanos; a segunda, de caráter jurisdicional, referente à solução de controvérsias que se apresentem acerca da interpretação ou aplicação da própria Convenção.

            Com efeito, saliente-se que o busílis da problemática em tela, ensejadora do estudo vertente, guarda simbiótica conexão com a relação entre a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Isso porque, como será minudenciado doravante, a rotulagem atribuída à sistemática em observação é bifásica, de modo que incumbe à Comissão – regra geral, tão somente – o matiz de dominus litis, cabendo a ela, pois, desaguar a pretensão engajada de violação a direitos humanos no córrego da Corte IDH.

            Lado outro, sob os auspícios de abalizada e arguciosa doutrina internacionalista, e notadamente em consonância com os Protocolos 11 e 14 do sistema Europeu de Direitos Humanos, os quais redefiniram sobremaneira o modus operandi do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (ou Corte de Estrasburgo), impõe-se uma releitura (a princípio, de lege ferenda) do sistema da Convenção Americana de Direitos Humanos no desiderato de conceder-lhe – ao indivíduo – o jus standi perante a Corte IDH.

            Nessa tessitura, saliente-se que seria absolutamente intolerável olvidar a claudicante e apaixonada posição de Antônio Augusto Cançado Trindade em relação ao tema em voga, ex-juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos e atual juiz da Corte Internacional de Justiça: para o insigne internacionalista, defensor contumaz da maximização da tutela dos direitos humanos, cumpre uma premente modificação no âmago da Convenção Americana a fim de que o indivíduo – real destinatário de toda a pujante vereda dos direitos humanos – possa acionar diretamente, sponte propria, a Corte.

            Cuida-se, a bem de servir, de uma das variantes impositivas para que se consiga alcançar a humanização do direito internacional: o novo Jus Gentium do Século XXI, conforme alcunha timbrada pelo erudito professor Antônio Augusto Cançado Trindade.

2. Desenvolvimento

            Convém observar, a princípio, que o procedimento interamericano, no panorama hodierno, é bifásico, tal qual o vetusto modelo europeu (hoje já substancialmente alterado pelo Protocolo n. 11), o que descortina o inegável fato de que o modelo interamericano recebeu intensas reverberações do modelo europeu.

            Nessa senda, algumas considerações sobre o modelo europeu se impõem.

            O antigo procedimento europeu de apuração de violações de direitos humanos reflete, mutatis mutandis, o que hoje se vivencia na sistemática americana. A Comissão Europeia de Direitos Humanos era um órgão imparcial e independente, com a caraterística de ser não permanente. Diz-se que a natureza jurídica da indigitada Comissão era de órgão quase judicial.

            De acordo com as precisas lições de André de Carvalho Ramos[3] a respeito do que competia à Comissão, verbo ad verbum:

Eram duas espécies de demandas que poderiam ser analisadas pela antiga Comissão. A demanda interestatal era prevista pelo antigo artigo 24 e consistia em petição de um Estado acusando outro de violar os direitos protegidos em seu próprio território, consagrando, pela primeira vez no Direito Internacional, uma actio popularis de direitos humanos. Já o antigo artigo 25 da Convenção Europeia de Direitos Humanos estabeleceu o direito de petição individual, pelo qual o indivíduo possuía o direito de acionar diretamente um organismo internacional, no caso a Comissão Europeia.

                Sobreleva frisar, pois, que incumbia à Comissão, à época, a função de proceder ao exame de admissibilidade da pretensão levada ao seu crivo, bem como tentar a conciliação entre as partes envolvidas no conflito. Após essas etapas, a Comissão elaborava um relatório de conclusão (ao qual se deu a rubrica de Relatório 31, em razão do artigo 31 da Convenção Europeia de Direitos Humanos), o qual, ao largo de ser uma peça conclusiva, tinha a feição de uma verdadeira decisão da Comissão sobre aquela celeuma apresentada.

                O Relatório 31, acima assinalado, era despido de força vinculante, de sorte que cabia a provocação, pela Comissão, da Corte Europeia, ou mesmo que fosse acionado o Comitê de Ministros. Esse órgão – Comitê de Ministros – não tem afinidade fática no bojo do ordenamento interamericano. À luz da Convenção Europeia de Direitos Humanos, trata-se de ente com competência decisória subsidiária e automática; vale dizer, acaso a Corte não fosse acionada pela Comissão, ou mesmo por um Estado (o que André de Carvalho Ramos chama de actio popularis), automaticamente o Comitê era erigido à tona para decidir sobre aquele feito.

                Sobressai-se, nesse contexto, que o festejado Protocolo n. 11 perpetrou cartesianos intercâmbios na sistemática do procedimento europeu, de sorte que, nos quadrantes atuais, o procedimento bifásico foi sepultado por terra; ao Comitê de Ministros, que antes desempenhava a sobredita função anômala de órgão com mote decisório, foi adjudicado tão somente o múnus de curador do cumprimento das decisões da Corte pelos Estados.

                Acentue-se, pois, petitio principii, que, empós a introdução dos Protocolos 11 e 14, o indivíduo ganhou, perante a Corte de Estrasburgo, legitimação ativa. Não mais subsiste aquela prévia e defasada filtragem perante a Comissão. Não é mais ela, a suplantada Comissão, o dominus litis da pretensão de direitos humanos. Foi incorporado a ele, indivíduo, o espírito de ascender diretamente à Corte.

                O indivíduo detém, fundamentalmente, verdadeiro direito de petição perante a Corte Europeia. Insta anotar, nesse lume, os motivos geradores de inadmissibilidade da petição, em consonância com as balizas trazidas por André de Carvalho Ramos[4]:

Os motivos da inadmissibilidade são os seguintes: 1) ausência de esgotamento dos recursos internos; 2) perda do prazo de seis meses a contar da data da decisão interna definitiva para peticionar à Corte EDH; 3) anonimato da petição; 4) coisa julgada, caso a petição seja essencial, idêntica a uma petição anteriormente examinada pela Corte ou já submetida a outra instância internacional de direitos humanos sem qualquer fato novo; 5) teor incompatível com o disposto na Convenção ou manifestamente mal fundada ou com caráter abusivo; e, finalmente, 6) não ocorrência de qualquer prejuízo significativo ou matéria de grave indagação, salvo se o respeito pelos direitos exigir uma apreciação da petição.

            Impende que se abram parêntesis, nessa toada, para acenar ao fato de que subsistem diversas críticas, em doutrina, no tocante ao fato de que os Protocolos 11 e 14, ao abrirem o leque de legitimidade perante a Corte para o indivíduo, impulsionaram um assaz assoberbamento de demandas, de sorte que um efeito contraproducente poderia ser entrevisto. Isto é, em vez de maximizar uma jusproteção aos direitos humanos, os aludidos protocolos, por via de ricochete, trariam consigo um nó górdio à purificação dos feitos: o aumento atroz de casos, o que entraria em rota de colisão com a duração razoável do processo, espinha dorsal da tutela dos direitos humanos.

            Não obstante, já é possível a elucubração de mecanismos, os quais calharam à fiveleta a partir do próprio Protocolo 14, para apaziguar as turbações legitimamente apontadas – ao menos no plano abstrato – pela doutrina internacionalista. Com a sua notória argúcia de espírito, aduz André de Carvalho Ramos[5]:

Há aqui duas inovações do Protocolo n. 14 para dar maior eficiência ao mecanismo europeu. A primeira inovação é a introdução da figura do juiz singular, com poder de indeferir demandas. A segunda inovação são os novos fundamentos do indeferimento sumário, que pode ser adotado se a demanda for manifestamente infundada ou ainda não ter sido provado ‘prejuízo’ ou ‘desvantagem’ insignificante, sem que haja necessidade de discussão maior dos direitos previstos na Convenção (de minimis non curat praetor). Esses dois fundamentos novos para o indeferimento das petições permite concentração de esforços em casos nos quais há violação grave de direitos.

            Gravite-se, doravante, os holofotes para o sistema interamericano, no qual ainda vige o malfadado sistema bifásico. Se é certo que o modelo interamericano se inspirou, tout court, no espírito que à época sobejava do modelo europeu, atualmente apenas persiste, no altiplano fático, os resíduos do seu superado corpo. À medida que o sistema europeu já se elevou por vários degraus, imiscuindo-se nos anseios e conceitos da humanização do direito internacional, o sistema interamericano parece estar adormecido em terreno pantanoso, uma vez que, de lege lata, mantém-se incólume às acerbas críticas diuturnamente proclamadas pelos doutos internacionalistas.

            De efeito, na esteira dos argumentos suso alinhavados, o sistema interamericano remanesce bifásico, de maneira que há uma etapa prévia, indispensável e cogente, perante a Comissão, e uma eventual segunda etapa perante a Corte IDH.

            A despeito do tratamento normativo atribuído à Comissão perante a Carta da OEA, temática que refuga do ponto nevrálgico da digressão em tela, impende tecer considerações precisamente no que toca à atuação da Comissão quando atua sob a indumentária da Convenção Americana de Direitos Humanos.

            Urge lembrar, nessa toada, que a Corte Interamericana só pode ser acionada pelos Estados que tenham aceitado a sua jurisdição e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. As vítimas não detêm direito de petição perante a Corte, mas única e tão somente perante a Comissão. Logo, a Comissão atua como verdadeiro dominus litis da pretensão do indivíduo, cabendo a ela fazer uma verdadeira filtragem daquele caso.

            Anote-se, aqui, que essa função de filtragem desempenhada pela corte não se restringe apenas às matérias de admissibilidade, senão, também, aos assuntos de mérito. A Comissão atua, a bem da verdade, como um verdadeiro juiz preliminar, uma real sentinela meritória, daquele caso, porquanto pode obstar o acesso do indivíduo à Corte de acordo com as suas próprias pré-compreensões (leia-se: ao seu talante). É possível que se diga, ao fim e ao cabo, que a Comissão bitola a atividade da Corte, uma vez que a Corte só aprecia, objetivamente, a matéria que a Comissão decidir por bem.

            Em um primeiro momento, a Comissão atua na fase preliminar de admissibilidade, ocasião em que irá perquirir se a petição levada pelo indivíduo (ou outro ente, como, v.g., uma ONG) atende aos requisitos formais, como, à guisa de exemplificação, o esgotamento dos recursos internos, o que satisfaz o princípio da complementariedade que norteia, a bem de servir, o direito internacional dos direitos humanos.

            Traga-se à baila, mais uma vez, as palavras de André de Carvalho Ramos[6]:

A Convenção ainda estipula expressamente casos de dispensa da necessidade de prévio esgotamento dos recursos internos, a saber: 1) não existir o devido processo legal para a proteção do direito violado; 2) não se houver permitido à vítima o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e 3) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos (artigo 46.2). A jurisprudência da Corte ainda agrega mais três hipóteses de dispensa do esgotamento dos recursos internos; 4) o recurso disponível for inidôneo; 5) o recurso for inútil (por exemplo, já há decisão da Suprema Corte local em sentido diverso) ou 6) faltam defensores ou há barreiras de acesso à justiça.

            Seguidamente, calhará a fase de conciliação ou solução amistosa, em respeito ao art. 48, “f” da Convenção Americana de Direitos Humanos.

            Ultrapassada a fase de conciliação, cabe à Comissão a emissão do primeiro informe, ou relatório (Relatório 50, em razão do artigo 50 da Convenção, em simetria à nomenclatura dada no bojo do antigo sistema europeu), no qual será constatada eventual ofensa à Convenção Americana de Direitos Humanos. Cuida-se de relatório confidencial em que é recomendado ao Estado violador seguir as pegadas estampadas no seu dispositivo.

            Acaso transpassado o prazo de três meses e o Estado violador não houver cumprido as recomendações da Comissão, poderá ela, a própria Comissão, repassar o feito à Corte, se o Estado houver reconhecido a sua jurisdição. Entende-se, hoje, que esse procedimento é feito pela Comissão de modo automático, com a excepcional hipótese de haver entendimento manifestado em sentido contrário por parte dos comissionários, caso em que a Comissão agirá como intérprete final (alcunha criada por André de Carvalho Ramos) da Convenção Americana de Direitos Humanos.  

            Se não houver ação judicial perante a Corte[7], a Comissão elaborará um segundo informe, o qual terá caráter de publicidade. Discute-se, nesse caso, sobre a força vinculante desse segundo informe (é pacífico o entendimento segundo o qual o primeiro informe possui o colorido de mera recomendação). Lastreando-se na boa-fé objetiva, princípio de carátererga omnes no plano internacional, diz-se que esse segundo informe tem, com efeito, força vinculante.

            É possível concluir, sinteticamente, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos só poderá ser acionada (locus standi) em duas ocasiões: pela Comissão e pelos Estados (nunca houve, na prática, um caso em que o Estado exerceu essa atribuição). Diante da pletora normativa que justifica o afastamento do direito de petição do indivíduo perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, permanece ele altaneiro à maximização da proteção dos direitos humanos no plano internacional, em frontal rota de rechaço com as aspirações que emergem da melhor doutrina internacionalista. Nesse diapasão, convém alvitrar as palavras de Valerio de Oliveira Mazzuoli[8]:

(...) os indivíduos compõem o conceito contemporâneo de Direito Internacional Público, ao lado dos Estados e das organizações internacionais intergovernamentais. A condição dos indivíduos como detentores de personalidade jurídica internacional é uma das mais notáveis conquistas do Direito Internacional Público do século XX, lograda em decorrência do processo de desenvolvimento e solidificação do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Como se sabe, não há regra alguma em Direito Internacional Público proclamando não ser o indivíduo um sujeito do direito das gentes. Não vemos como possa ser negada a personalidade jurídica internacional dos indivíduos atualmente, principalmente levando-se em conta o ocorrido após a eclosão da Segunda Guerra, quando as pessoas passaram a ter direitos próprios, estranhos às normas endereçadas aos Estados, tendo sido dotadas, inclusive, de instrumentos processuais para vindicar e fazer valer seus direitos no plano internacional. Tal se deu, principalmente, pela multiplicação dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos concluídos nos últimos tempos, que estão a permitir expressamente, além do ingresso direito dos indivíduos às instâncias internacionais, que também sejam demandados perante cortes internacionais de direitos humanos, como é o caso do Tribunal Penal Internacional.

            Aponte-se, ainda, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos deu um passo à frente na proteção das vítimas, quando, em 2001, alterou o seu regulamento a fim de permitir a participação da vítima e de seus representantes nas fases do processo judicial perante a Corte, com a possibilidade de manifestar-se nas mesmas condições da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Estado-réu.

            Note-se que não se trata de uma mudança final, graúda, como sucedeu com a introdução dos Protocolos 11 e 14 no sistema europeu; cuida-se de uma guinada miúda, mas com requintes de inegável positividade, uma vez que, a despeito da ausência do poder de locus standi ao indivíduo, chancela-se a ele o brilho e as idiossincrasias de um verdadeiro assistente processual. A vítima já tem a flecha; carece, todavia, do arco. 

            É de se dizer, nesse pórtico, que a plena humanização do direito internacional, na mundividência que lhe é destacadamente peculiar, deverá acelerar os seus passos a fim de romper com os paradigmas pretéritos, etiquetando ao indivíduo, vítima de violações de direitos humanos, o legítimo passaporte de direitos e garantias endossados pelas cartas internacionais.  

Devem-se lembrar, aqui, inclusive, os propósitos insculpidos a partir da cláusula Martens, que, com mais de um século de trajetória histórica, objetiva dar ao indivíduo proteção em todas as situações, mesmo que não abraçadas pelas normas de direito humanitário. A par de sua ligação com o direito humanitário, a cláusula em cotejo gera valiosos influxos exegéticos sobre o direito internacional, uma vez que afasta o que se convencionou chamar de razão de Estado, quanto atua como monopolizador de todos os direitos no plano internacional, permitindo a emancipação subjetiva e objetiva da face humana da pessoa, erigindo-a, em caráter de paridade, como titular de direitos humanos, ao Estado.

 Por derradeiro, aventem-se as sempre milimetricamente preciosas palavras de Antônio Augusto Cançado Trindade[9]:

En suma, ya no se sostienen el monopolio estatal de la titularidad de derechos ni los excesos de un positivismo jurídico degenerado, que excluyeron del ordenamiento jurídico internacional el destinatario final de las normas jurídicas: el ser humano En nuestros días, el modelo westphaliano del ordenamiento internacional se configura en definitiva agotado y superado. La emancipación de la persona humana vis-à-vis el propio Estado avanza lentamente, pero avanza. Nadie podría suponer o antever, hace algunos años atrás, que las causas de los desplazados, de los migrantes indocumentados (en búsqueda de alimento, vivienda, trabajo e educación), y de los niños abandonados en las calles, alcanzasen un tribunal internacional como la Corte Interamericana de Derechos Humanos. El hecho de haberse tornado el acceso de los pobres y oprimidos a la justicia internacional una realidad en nuestros días se debe, sobre todo, al despertar de la conciencia humana para las necesidades de protección de los más débiles y de los olvidados.

            Em outra oportunidade, salientou o maior internacionalista pátrio de todos os tempos[10]:

É este um tema que me parece de importância capital: impõe-se o direito de acesso à justiça nos planos tanto nacional como internacional. A proteção judicial constitui a forma mais aperfeiçoada de salvaguarda dos direitos humanos. Em meu entender, devemos assegurar a maior participação possível dos indivíduos, das supostas vítimas, no procedimento perante a Corte Interamericana, sem a intermediação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

É esta uma bandeira que venho empunhando já há algum tempo nos foros internacionais e que, apesar das costumeiras resistências, vem ganhando ultimamente crescentes e importantes adesões. É esta a causa que continuarei defendendo, no plano internacional, até suas últimas consequências. Os europeus tiveram que esperar por mais de quatro décadas, até a entrada em vigor, em 01.11.1998, do Protocolo XI à Convenção Europeia de Direitos Humanos, que veio enfim assegurar o jus standi dos indivíduos diretamente ante a Corte Europeia de Direitos Humanos, em todos os casos.

3. Conclusão

            O sistema interamericano perfilhou copiosamente as pegadas do seu antecessor no plano ideológico, o sistema europeu. Pode-se dizer – e aqui apenas no plano deontológico, gize-se – que há uma relação de criatura e criador. As evoluções perpetradas pelo sistema europeu merecem, nesse exato sentido, serem copiadas. Uma cópia legítima, ressalte-se, a bem de servir a plena e completa humanização do direito internacional.

            Afigura-se, por derradeiro, que a necessidade de possibilitar que o indivíduo possa levar a sua pretensão – com violência de direitos humanos – à Corte Interamericana de Direitos Humanos é medida que se impõe incontinenti. A universalização dos direitos humanos, umbilicalmente ligada ao viés da eficácia empírica que lhe é atávica, só poderá ter a sua plenitude de eflorescência quando atribuir ao indivíduo o instrumento necessário para ter direito aos seus direitos.

            Em outros termos: sem embargo de toda a miríade de direitos externados, a ferro e fogo, pela Convenção Americana de Direitos Humanos (e pelo Protocolo de San Salvador, por evidente), deve-se imputar legitimamente à vítima a possibilidade de que tenha acesso a esses direitos. Cuida-se, em verdade, de uma relação de direito a ter direitos. Sem a possibilidade de o indivíduo reclamar os seus anseios diretamente à Corte IDH, a Convenção tornar-se-á não mais do que um sino sem badalo...

4.Bibliografia

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5ª ed. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2011.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A Humanização do Direito Internacioanl. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

Notas:

[1]PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva 2012, p. 131.

[2]PIOVESAN, op. cit., p. 139.

[3]RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 156.

[4]RAMOS, op. cit., p. 164.

[5]Ibid. p. 165.

[6]Op. cit., p. 210.

[7]Saliente-se que não existe propriamente uma demanda perante a Corte, pois, conforme sua jurisprudência, precisamente a partir de 2009, a ação é iniciada a partir do envio do informe pela Comissão.

[8]MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, pág. 420.

[9]TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A Humanização do Direito Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 394.