O "JURISDICISMO" E O RACIOCÍNIO DO DIREITO ECONÔMICO


Porjulianapr- Postado em 26 março 2012

Autores: 
Ricardo Antônio Lucas Camargo

 

O "JURISDICISMO" E O RACIOCÍNIO DO DIREITO ECONÔMICO

 

 

Ricardo Antônio Lucas Camargo

 

Doutor em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais

Membro da Fundação Brasileira de Direito Econômico

 

Dentre as regras de Direito Econômico, voltamos a atenção para a regra da primazia da realidade econômica. Com efeito, um mito muito disseminado na cultura jurídica é o da onipotência do legislador. Com efeito, acredita-se que o legislador possa agir qual mago ou alquimista, alterando, sem qualquer limite, até mesmo os elementos que se possam encontrar porventura na natureza. É o terreno das ficções jurídicas. Com relação às ficções, cabe lembrar que, durante a Idade Média, as fronteiras entre o "real" e o "fantástico" eram freqüentemente transpostas, uma vez que a própria autoridade da Igreja embasava tais trânsitos. No filme Monty Python em busca do Cálice Sagrado (Monty Python and the Holy Grail ­– dir. Terry Gilliam et allii – Inglaterra, 1975), cenas com atores em carne e osso alternam-se com desenhos animados - "atores" nascidos da imaginação do desenhista -. Os cavaleiros protagonistas andam "montados" em cavalos imaginários, acompanhados por outros homens que batem as duas cuias que compõem a casca do coco para fazerem um ruído semelhante ao dos cascos dos cavalos. Quer dizer: são cavaleiros "de brincadeira", "de fantasia". Um historiador vestido à maneira dos homens do século XX que conta a história do Rei Artur e dos seus cavaleiros é passado, no início do filme, a fio de espada por um cavaleiro montado em um cavalo de verdade - talvez para apontar a diferença entre a imagem que fazemos dos cavaleiros medievais e o que eles eram, na realidade -. Mas seria, após a Idade Média, tão clara, mesmo, a distinção entre realidade e fantasia? SPINOZA [Tratado da reforma do entendimento. Trad. Abílio Queirós. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 78], no século XVII, observava a franca impossibilidade de, por palavras, se chegar, necessariamente, à essência das coisas e, portanto, estabelecer uma distinção clara entre o fantástico e o real: "as palavras se formam arbitrariamente e segundo a compreensão do vulgo, de modo que não são mais do que sinais das coisas tais como existem na imaginação e não no entendimento". Em pleno século XX, em que o ser humano se vem gabando de haver superado os absurdos de sua meninice, especialmente o ser humano ocidental, MARTIN HEIDEGGER [Ser e tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 1991, v. 1, p. 298-299] teve a oportunidade de consignar: "da mesma forma que não se pode refutar um cético, não se pode 'provar' o ser da verdade. O cético, quando o é, na realidade, não precisa ser refutado. Na medida em que é e se compreendeu nesse ser, ele dissolve a pré-sença e, com isso, a verdade, no desprezo do suicídio. [...] Na questão sobre o ser da verdade e sobre a necessidade de sua pressuposição, bem como na questão sobre a essência do conhecimento, supõe-se um 'sujeito ideal'. O motivo implícito ou explícito dessa suposição reside na exigência justa que, no entanto, também precisa ser fundamentada ontologicamente, de que a filosofia tem como tema o a priori, e não os 'fatos empíricos' como tais. Mas será que a suposição de um 'sujeito ideal' satisfaz a essa exigência? Ele não seria um sujeito fantasticamente idealizado? No contexto de um tal sujeito não estaria presente o a priori do sujeito de fato, isto é, a pré-sença?"). Mesmo com relação ao pensamento científico, ao qual o Ocidente tributava uma reverência quase religiosa no final do século XIX, a sua infalibilidade na perscrutação e revelação da verdade tem sido amplamente questionada no âmbito da filosofia, como se pode verificar nesta passagem de HILTON JAPIASSU [Introdução ao pensamento epistemológico. 6ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, [s/d], p. 153-154.]: "a ciência contemporânea, herdeira experimental da religião medieval, realiza hoje as mesmas funções que a teologia desempenhava na Idade Média. Até parece que seu papel seja o de compensar, com sua inteligência eterna de especialistas, os sentimentos de impotência, de frustração e de ignorância do homem moderno. Na realidade, porém, ela é a soma organizada e racional de suas limitações, para não dizer de suas alienações. O poder da ciência tornou-se tão espetacular que ele não encontra mais normas exteriores a si mesmo. No domínio das chamadas ciências exatas, podemos constatar que a significação do conceito de natureza parece consistir na delegação do poder que constitui o processo científico-técnico. O homem moderno delegou sua ciência físico-química aos mísseis, mas também, por outro lado, delegou seu saber aos computadores, aos programas, aos processos de automação e de cibernética social. E, com isso, ele se torna um alienado. No fundo, podemos dizer que ele não 'sabe' mais aquilo que confia ao processo de que é origem. Quer dizer: não sabe mais aquilo que pode. Portanto, não pode mais aquilo que pode. Porque não é mais ele quem pode, mas o próprio poder da ciência realizada em técnica. E a racionalidade científica se transforma em ideologia, a partir do momento em que pretende impor-se como a única forma de racionalidade possível". Ao jurista, sobretudo, a distinção entre a verdade e a ficção se estabelece no terreno da prova. Com efeito, para que a norma jurídica incida, é necessário que se reconstitua o fato a que ela vincula determinadas conseqüências. Verificado que o fato é pertinente e relevante, para os fins de incidência da norma jurídica, resta saber se ele, efetivamente, ocorreu. Provada que seja a proposição, tem-se-a por verdadeira. OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA [Curso de processo civil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991, v. 1, p. 276], contudo, adverte acerca da ilusão de que se possa reconstituir, em plenitude, a verdade dos fatos: "é necessário extremo cuidado quando, ao tratar-se de uma questão probatória no domínio da ciência jurídica, imaginando-se que a demonstração de um fato equivalha à demonstração da veracidade de sua existência. No direito moderno, a partir de JEREMY BENTHAM, eminente jurista e filósofo inglês do século XVIII (nascido em 1748) e por influência do utilitarismo que tem marcado de forma tão profunda toda a filosofia contemporânea, verifica-se uma crescente tendência a considerar a prova judiciária como a demonstração da verossimilhança da existência de uma determinada realidade, restaurando-se, neste sentido, a doutrina aristotélica da retórica como 'ciência do provável', a que se chega através de um juízo de probabilidade". Também se coloca o tema da verdade e da mentira, quando são úteis ou inúteis. A dogmática jurídica, ao se ocupar do dolo, distingue entre o dolus bonus e o dolus malus. O primeiro apareceria como estratégia negocial e estaria presente, também, na denominada “mentira piedosa”, bem como na sonegação, a quem pretendesse causar mal injusto e grave a terceiro, de informação essencial à consumação de tal intento. No âmbito filosófico, por vezes se mostra difícil sustentar o dolus bonus. Para IMMANUEL KANT [ A paz perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 174-175], por exemplo, vale a sentença posta na boca da personagem Pamina, da ópera A flauta mágica, de WOLFGANG AMADEUS MOZART, pelo libretista IMMANUEL SCHIKANEDER, quanto à verdade dever ser dita, mesmo que seja um crime a sua enunciação: "a veracidade das declarações, que não se pode evitar, é o dever formal do homem em relação a quem quer que seja, por maior que seja a desvantagem que daí decorre para ele ou para outrem; e se não cometo uma injustiça contra quem me força injustamente a uma declaração, se a falsifico, cometo, pois, mediante tal falsificação, a qual também se pode chamar mentira (embora não no sentido dos juristas), em geral uma injustiça na parte mais essencial do Direito: isto é, faço tanto quanto de mim depende que as declarações em geral não tenham crédito algum, por conseguinte, também que todos os direitos fundados em contratos sejam abolidos e percam sua força; o que é uma injustiça contra a humanidade em geral". HEGEL [Propedêutica filosófica. Trad. Artur Morão. Lisboa: Ed. 70, 1989,p. 320] também segue esta linha, embora estabeleça condicionantes de tempo e espaço: "é ignóbil não dizer a verdade quando se está no justo lugar para a dizer, porque assim se diminui a si e aos outros. Mas também não se deve dizer a verdade quando para tal não se tem competência alguma ou nem sequer um direito". Neste particular, ao clausular o dever de dizer a verdade, HEGEL, curiosamente, está mais próximo do que se pensa de MAQUIAVEL [O príncipe. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2000, p. 104], a quem muitos chamariam de Apóstolo da Mentira (é moda não o ler e chamá-lo bandido, como lembrou GUSTAVE FLAUBERT), que diz expressamente nesta passagem: "é bom ser e parecer misericordioso, leal, humanitário, sincero e religioso, mas é preciso ter a capacidade de se converter aos atributos opostos, em caso de necessidade. Deve-se entender que um príncipe, especialmente se for novo no poder, nem sempre pode observar tudo o que é considerado bom nos outros homens, sendo muitas vezes obrigado, para preservar o Estado, a agir contra a fé, a caridade, a humanidade e a religião". JOSÉ HERMÍLIO RIBEIRO SERPA [A política, o Estado, a Constituição e os direitos fundamentais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002, p. 152], entretanto, tomando a palavra ideologia no sentido de "mentira útil", assim se pronuncia: "o fenômeno ideológico está ligado à necessidade de, para um grupo social, conferir-se uma imagem de si mesmo, de representar no sentido teatral do termo, de representar e encenar. A ideologia é uma teoria da motivação social. Ela é movida pelo desejo de demonstrar que o grupo que a professa tem razão de ser o que é". Temos, evidentemente, divergência com o culto constitucionalista gaúcho quanto à conceituação de ideologia, porque, para nós, esta não se refere ao plano do ser, onde comparece a questão da verdade, mas sim do dever ser, onde comparece a questão da validade, razão por que preferimos dizer que a ideologia é uma cosmovisão dominante em um determinado grupo social, sendo que a cosmovisão que aspira a se tornar dominante é a utopia. Quaisquer que sejam, no plano filosófico ou religioso, as reações que se espera a respeito das ficções, o fato é que elas podem ter a sua utilidade na possibilitação do convívio social. É assim que HERMES LIMA [Introdução à ciência do Direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1970, p. 57] expõe a finalidade das ficções: "no direito antigo, conservador, intangível, as ficções eram recurso através do qual se atendiam as novas necessidades. No direito moderno, constituem meio de igualar relações de índole diversa, de introduzir princípios desejáveis, mas de maneira a não perturbar a harmonia do sistema com disposições contraditórias ou anômalas. A ficção não torna verdadeiro o que não é, mas produz conseqüências como se fosse" . KARL LARENZ [Metodologia da ciência do Direito. Trad. José de Sousa e Brito & José Antônio Veloso. Lisboa: Gulbenkian, 1978, p. 240], neste particular, recorda que “a ficção jurídica consiste na equiparação voluntária de algo que se sabe desigual”. Mire-se o exemplo clássico dos juristas, do conhecimento universal da lei, exigível, nos países de direito escrito, inclusive do analfabeto [CASTRO, Amílcar de. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 20.]. Sabe-se que este jamais poderia ter tido acesso ao texto da lei, mas lhe é exigido, no entanto, que respeite a vida, a integridade física, a honra e a propriedade alheias. Ou da representação popular, em se tratando de cargos eletivos, considerando que os ocupantes de tais cargos representam inclusive os que não tenham neles depositado o voto, caráter que foi bem percebido pelo jurisconsulto maior do nacional-socialismo, CARL SCHMITT [Legalidad y legitimidad. Trad. José Diaz García. Madrid: Aguilar, 1971, p. 42]. CARLOS CAMPOS, grande Profesor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e um dos primeiros a estabelecerem os vínculos entre o Direito e a psicanálise, apontou também para este caráter ficticio da representação popular em se tratando de cargos eletivos, ao falar que a Constituição de 1891 “se materialmente valorizou o indivíduo, nao o fez mais feliz ou melhor. Ao contrário, reduziu o cidadão à condição miserável do regime tribal em que, sem proteção jurídica para sua cidadania, teve, para sobreviver, de alienar ao representante local do Executivo, como em um ritual primitivo de adoção, o título eleitoral, que, segundo a falácia dos constituintes de 1891, devera ser o seu instrumento de construção nacional e da própria felicidade” (A reconstrução constitucional. Revista Forense. Belo Horizonte, v. 30, n. 62, p. 18, jan 1934). Este dado – o da ficção da representação popular -, aliás, é explorado por MARÇAL JUSTEN FILHO ao examinar o problema da legitimidade das decisões das agências de regulação [O Direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 348; SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo regulatório Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 235.]. Ou ainda o exemplo da confissão ficta, trazido por JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA [Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 65]: "é evidente que, se a parte não comparece, ou se recusa a prestar depoimento, de modo nenhum confessa: o fato da confissão, em tal hipótese, é um fato que não se pode considerar senão como inexistente. Aqui não há qualquer 'juízo de probabilidade': estamos diante de algo que sabidamente não ocorre e ao legislador não é dado 'presumir' que ocorra. Nem é isso, aliás, que ele pretende: quer apenas atribuir a um fato diverso (o não-comparecimento ou a recusa de depor) os mesmos efeitos que decorreriam do fato não ocorrido (a confissão)". Como se pode ver, a presença da ficção na nossa civilização é explicada como um dos seus cimentos. A civilização ocidental não consegue viver totalmente desligada das ficções. Agora, por úteis que sejam, não se hão de converter em dogmas, tolhendo a busca constante do caminho para sua superação, pena de se ficar qual a Carolina da canção homônima de Chico Buarque de Hollanda, indiferente à passagem do tempo na janela... . Estamos a trazer a mesma questão que foi documentada por JHERING acerca da jurisprudência de conceitos: “reputo como um erro fundamental de nossa concepção dominante, no que respeita ao direito, o fato de a mesma haver negligenciado sobremodo o fator real da atividade pessoal em favor do fator ideal de seus próprios pensamentos, erro que eu repetidas vezes combati em público” (A finalidade do Direito. Trad. José Antônio Faria Corrêa. Rio de Janeiro: Rio, 1979, v. 1, p. 139). Não se trata de adotar postura iconoclástica em face do Direito – até porque este tem um caráter de consolidação e não de revolução -. Trata-se, sim, da humildade diante dos fatos, preconizada por WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOUZA: “definida a ideologia liberal no Direito do século XIX, entretanto, nas Constituições, com o Estado de Direito, a lei assumiu a posição de instrumento de poder em lugar da vontade do soberano reinante nos modelos anteriores. O dogmatismo passou a comandar-lhe a aplicação. A sua interpretação se fazia em nome da correspondência com um direito muitas vezes osteolado no texto legal sob alegação de estabilidade e segurança jurídica. Os impactos dos avanços sociais só lentamente seriam absorvidos, mesmo assim, pela ação dos juristas esclarecidos e sensíveis que levaram a percepção daquelas modificações até o rompimento das resistências dos tribunais e dos corpos legislativos” (Arnoldo Wald e o Direito Econômico. In: PLURES. O Direito na década de 1990: novos aspectos – estudos em homenagem ao Prof. Arnoldo Wald. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 451). Veja-se que esta permeabilidade não se coloca como uma negação do valor do que se produziu ao longo de séculos, mas sim de se adequar os conceitos à realidade verificada. Outro grande cientista do Direito, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES alerta contra a conversão do conceitualismo jurídico em culto da personalidade: “o estudioso deve obsstinadamente recusar-se a engrossar as fileiras dos que encaram as hipóteses científicas como dogmas de fé (‘esta teoria é indiscutivelmente correta e verdadeira’). Desconfiar das hipótses teóricas (‘qual o ponto decisivo em que será vulnerável esta teoria?’) é recusar-se, numa atitude intelectualmente sadia, à anestesia do senso crítico. Nada tem a ver com a atitude de quem se aproxima do pensamento alheio com preconcebida hostilidade. Porém, não há lugar, no conhecimento científico objetivo, para as ‘corporações de elogios mútuos’, tão expressivas da indigência do próprio pensar” (Ciência feliz. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 28). Se é identificado aqui um paradoxo entre as citações do pensamento alheio e o próprio conteúdo do pensamento citado, responde-se, pura e simplesmente, que é importante, no que tange à mensagem que se transmite, torná-la digna de ser ouvida, e isto, no meio jurídico principalmente, somente se consegue demonstrando a venerabilidade de quem sustenta o ponto de vista em questão. Isto foi bem expresso por CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA: “todo jurista é conservador, pois é da essência do jurismo manter a disciplina das condutas e preservar a ordem constituída. E o jurista, como defensor espontâneo das situações adquiridas é essencialmente conservador. Mas entre conservador e misoneísta, muita é e deve ser a distância. Se o conservador cultiva as tradições, o misoneísta encrespa-se contra toda contribuição da atualidade e condena por péssimo tudo que seja novo” (Reformulação da ordem jurídica e outros temas. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 4). Sem quaisquer proselitismos de natureza religiosa, em SIDDARTHA GAUTAMA encontramos esta passagem que, se fosse dita por um ocidental, seria francamente levada a sério, por corresponder, justamente, à premissa básica de que partiram os pensadores que se ocuparam do problema da percepção como limite para alcançar a totalidade do conhecimento: “é difícil conhecer o mundo como ele é verdadeiramente, pois embora ele pareça real, ele não o é, e embora pareça fácil, ele não o é”.(A doutrina de Buda. Trad. Jorge Anzai. São Paulo: Martin Claret, 2003,. p. 29). Não é o mérito do que dito, mas sim a forma como é dito e a pessoa que diz que fazem a diferença em termos de credibilidade, mesmo perante muitos que já deveriam estar imunizados contra a famosa falácia genética...[CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Reflexões sobre as distintas valorações da violência. In: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=263JDB002, acessado em 10 fev 2004]. Mas, de qualquer sorte, toda esta exposição acerca do papel das ficções e da própria configuração da credibilidade no Direito coloca-se no sentido de destacar que, por outro lado, o limite do legislador se coloca na própria inexeqüibilidade de seus comandos.

Em sede de Direito Econômico, principalmente, o manuseio das ficções se mostra profundamente delicado, justamente em virtude dos efeitos que podem decorrer do desprezo pela realidade qual ela efetivamente se mostra. Mire-se o exemplo da extinção do subsídio do trigo nacional, com a liberação da importação de trigo subsidiado do estrangeiro: medida que, sem dúvida, possibilitou o estabelecimento de uma concorrência desigual, ao equiparar os que estavam em condições diversas de atuação no mercado. Ou então, no que tange ao emprego das ficções onde elas têm seu lugar, na disciplina do "solo criado", voltada à solução do problema das limitações do espaço urbano para acondicionar a respectiva população. Trata-se de um terreno, como se vê, extremamente delicado, a exigir a necessária atenção do juseconomista, na perquirição das posições juridicamente protegidas e da própria definição das responsabilidades. Aqui entra, inclusive, o papel da Ciência Econômica enquanto fonte auxiliar, exigindo, inclusive, o conhecimento dos pressupostos de que parte cada uma das linhas - monetaristas, estruturalistas, keynesianos etc. -, para que se verifique a cuidadosa reconstituição dos fatos jurídicos de interesse político-econômico.

É bom advertir que não estamos, aqui, a ingressar no pantanoso terreno dos que investem contra KELSEN, chamando-o legalista vulgar ou cousas que tais, ao contrário de LARENZ, que textualmente diz que a Teoria Pura “limita a interpretação jurídica à mera interpretação verbal, a indicação das significações possíveis, de acordo com o sentido das palavras” (op. cit., p. 96). Sem se negar a merecida homenagem que se lhe presta nos meios jurídicos brasileiros, as críticas por ele formuladas ao grande mestre de Viena não podem deixar de passar pelo crivo da circunstância lembrada por HORST OTTO HERKELMANN: “o hegelianista mais eminente, Larenz, atacou sobretudo o posititivismo de Kelsen assim como o individualismo do liberalismo. Segundo ele, o direito tem uma função na política de grande porte. Larenz, como Hegel, teve em mira queo Estado se estende como vontade viva do povo, o indivíduo participa do direito apenas como membro do Estado. Assim se tentava, recorrendo a Hegel, começar a luta contra positivismo, neokantismo e liberalismo. O povo como sociedade política serviu como fundamento a desenvolver novos conceitos judiciais. Estas considerações levaram até ao ponto de basearem as leis racistas de Nuremberg (1935) na vontade do povo” (Nacional-socialismo. In: FRANÇA, Rubens Limongi [org.]. Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1980, v. 54, p. 18). Também não estamos aqui a lançar mão do estratagema de submeter a proposição a uma categoria odiada, referido por SCHOPENHAUER, mas sim a dizer que as críticas de LARENZ a KELSEN, muitas vezes, podem ser passadas pelo crivo concernente à percepção de até onde estaria presente o interesse político do intelectual nazista em demolir a doutrina do jurista judeu. Não pensamos, ao contrário de FRANCISCO BILAC PINTO FILHO, que “a regra democrática cultuada no mundo ocidental tem claras conotações de intolerância, semelhantes, guardadas as devidas proporções, às perseguições da Inquisição aos não católicos do século XV ao século XIX” e que “só se convive numa sociedade democrática se o cidadão aderir ás regras de convivência de que todo e qualquer preconceito, limitação, disciplina ou autoridade são tidos como anti-democráticos” (O segredo de Estado e as limitações do habeas data. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 99, n. 366, p. 98, mar/abr 2003), até porque o próprio pensamento do autor em questão, ressuscitando em muitos pontos a doutrina da segurança nacional, vem a apontar para o acerto da lição posta em famoso voto proferido por PEDRO LESSA, segundo a qual o melhor do pensamento democrático estaria justamente em permitir que pudesse ser sustentada inclusive a postura contrária à democracia. A intolerância pura e simples somente legitimaria a rejeição. Nosso alvo, ao contrário, é justamente o desprezo pela perquirição do fato que, na realidade, traduz o pressuposto para que a norma incida, algo que nos vem ocupando há algum tempo. Talvez como decorrência de uma contínua burocratização da formação do jurista é que tenha sido fortalecido tal preconceito tecnocrático. É, pelo menos, a tese do grande magistrado ROBERTO WANDERLEY NOGUEIRA: “não se concebe que os estudos filosóficos e sociológicos aplicados sejam relegados a segundo plano, portanto como disciplinas meramente eletivas, no ensino jurídico acercado por inúmeras Faculdades de Direito no país. Os currículos dos estabelecimentos regulares são, pois, montados de forma a propiciar a insensibilização do aprendizado, inviabilizando-o em seu cabedal universal e profundo, gerando como efeito provocador a formação de hordas de tecnocratas” (Justiça acidental: nos bastidores do Poder Judiciário. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003, p. 87). O resultado deste tecnocratismo, a que se dá o nome de "jurisdicismo", é conhecido: quando se tenham presentes questões como a continuidade da prestação do serviço por empresa privatizada, ou conflitos agrários, surgem soluções que, por vezes, desviam o foco e mostram dissintonia completa com o próprio fato que se permite reconstituir. Não estamos defendendo o denominado "Direito Alternativo", que nos parece, em realidade, um nome pomposo para o arbítrio desenfreado, balizado tão-somente pelo senso subjetivo de justiça do julgador. Muitas vezes, curiosamente, o jurisdicismo pode conduzir a desprezar a própria solução posta em abstrato na legislação. Podemos citar como exemplo o reconhecimento de validade e eficácia a contrato de locação de imóvel vinculado ao Sistema Financeiro da Habitação, cujo financiamento era destinado à aquisição da moradia do locador, apesar de, antes de entrar em vigor a Lei 8.245, de 1991, ser vedada por norma de ordem pública tal tredestinação. E outros tantos exemplos que podem ser trazidos à tona, sempre mostrando que o jurisdicismo, no seu aparente simplismo, acaba por conduzir, por vezes, ao desprezo do direito positivo em nome de uma determinada postura ideológica. Mas, de qualquer sorte, fica o alerta de WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOUZA: "a interpretação por 'extração' de um artigo, desligando-o do conjunto ou isolando-o do 'espírito' da Constituição, talvez pudesse ser aceita para as estruturas das Constituições liberais do século XIX ou nelas inspiradas. Justificar-se-ia tal posição, embora não seja aceitável, para aqueles que preferem, em lugar de Constituição, preservar o Código Civil e os métodos da era das discussões sobre 'codificação', como referência aos fundamentos do Direito. Em se tratando de Constituição Econômica, ou seja, daquelas Cartas que introduzem o elemento econômico em seu conjunto, tal expediente é inadequado, pela própria natureza destas Cartas" [Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 289].