O império da interpretação enquanto poder simbólico.


PorDiogo- Postado em 24 outubro 2011

Autores: 
ALMEIDA, Leonardo Monteiro Crespo de

Bourdieu foi um dos poucos autores a prestar atenção também ao modo como o jurista teórico interpreta o Direito e quais repercussões isso tem para a prática.

1. Introdução

Ao longo de sua extensa tradição, os juristas desenvolveram inúmeras teorias com o intuito de clarificar e organizar suas experiências cotidianas nos foros e tribunais. Problemas de decisão, de interpretação e das fontes subjacentes ao direito eram tomados como foco central das suas reflexões, demarcando assim um interesse auto referencial conforme o espaço de sua atuação: o importante é o desenvolvimento interno das ideias que atuam, modificam e estruturam o campo jurídico, e nada mais. A busca pela purificação, isolando o espaço jurídico dos elementos que problematizam a sua autonomia percorre a colocação de questões como "o que é o direito?", "em que consiste a norma jurídica?" e tantas outras. Essa investigação expressa de maneira sutil o que mais acima apontamos como uma demarcação cristalina entre o não-direito e o direito, além de transformar os mais distintos conflitos sociais em disputas resolvidas a partir de seu enquadramento judicial [01].

O olhar jurídico acaba por transformar o outro que lhe é estranho em cotidiano, familiar – e se possível hegemonicamente controlado pelo jurista. Assim, a filosofia é cindida entre filosofia do direito e filosofia pura e da sociologia geral se ergue a sociologia do direito: a ênfase é no adjetivo. Tão natural e contínua é essa tendência que o fato de não havermos encontrado, ainda, uma psicanálise do direito acaba por levantar bons motivos para olharmos a criação de Freud com desconfiança. Para quem tem apenas um martelo na mão, qualquer elemento que lhe venha ao encontro rapidamente transformara-se em prego. Nomeamos essa posição de interna uma vez que seu interesse restringe-se apenas ao desenvolvimento interno do campo jurídico, subsumindo e analisando as relações não jurídicas a partir de um esquema conceitual oriundo do próprio direito. Reconhece não apenas uma lógica interna ao direito, como também a sua autonomia perante as outras esferas sociais.

Contrastando com essa visão voltada para si, inúmeros teóricos buscaram interrogar o direito para compreender qual é o papel que lhe cabe dentro do esquema social, assim como a maneira em que ele intervém nesse domínio. Esses teóricos se interessaram mais pelas repercussões provocadas pelo direito, pela maneira como ele cria e modifica relações do que com a sua mecânica interna. Para uma expressiva quantidade de teóricos oriundos do marxismo estruturalista, o que se destaca no Direito é o seu peso diante do corpo social, o seu discurso que serve de alicerce, e justificação, aos interesses do status quo. Retira-lhe a autonomia ao subordiná-lo ao campo das relações econômicas com a função de reproduzir os seus interesses a partir de disposições normativas institucionalizadas. Aqui não há outra saída senão visualizar o Direito como mais uma instituição voltada para a dominação e controle social.

Identificar o Direito ao papel de aparelho, ou ferramenta de dominação política significa perder de vista a lógica específica, e autônoma, do seu campo, lógica esta que viabiliza a sua reprodução. Nomeamos esse tipo de análise de externa por observar e definir o Direito não apenas através das relações com as outras áreas, mas também por verem o Direito através de teorias e posições que não foram originadas a partir dos teóricos do Direito.

Em seu artigo "A Força do Direito", Pierre Bourdieu realizou um esboço de como poderíamos analisar as ciências do Direito sem tardar a cair nesse impasse teórico as entre visões internas e externas. Sua posição almeja não se restringir a uma análise interna, desconsiderando todas as influências políticas e econômicas que lhe recaem, mas também não lhe nega a autonomia, nem ignora as peculiaridades que aparecem tanto a partir da prática cotidiana do jurista, como quando busca remetê-la ao campo especulativo da teoria do Direito.

Este paper pretende analisar o uso instrumental da hermenêutica jurídica através da análise do campo jurídico empreendida por Bourdieu no artigo já citado. Inicialmente, faremos um esboço da sociologia de Bourdieu para melhor situarmos os seus conceitos, ao passo que depois será realizada uma breve analise de seu artigo, onde poderemos melhor visualizar a maneira como o jurista transforma a hermenêutica em instrumento que aprioristicamente resolve qualquer caso a partir de uma suposta conformação com o ordenamento jurídico e seus princípios.


2. Aspectos Gerais da Sociologia de Pierre Bourdieu

O conceito de habitus talvez seja o que mais se destaca dentre aqueles fornecidos pelo sociólogo francês ao longo de sua trajetória intelectual, podendo ser tomado como um pequeno ponto de partida para a análise de sua obra. É com este conceito que Bourdieu retoma uma teoria da ação que enfatiza a importância de se teorizar os agentes sociais, mas sem fechá-los em uma subjetividade cartesiana, evitando também o behaviorismo e o interaciocinismo simbólico. O habitus acaba atuando como um suporte para a construção de uma abordagem econômica, mas que historiciza as categorias utilizadas no exame do social, como racionalidade, interesse, cultura. Esta é problematizada a partir de sua relação com a economia, ou seja, a compreensão da cultura necessita de um esclarecimento quanto a sua relação com as condições econômicas em que os sujeitos não apenas agem, como se sentem coagidos a agir de um determinado modo (VILLEGAS, 2004, p.59). Gostos e preferências culturais jamais são reproduzidos de maneira desinteressada, como se deslocados do panorama das relações sociais que os constituem.

O cultural é a construção interna absorvida pelo sujeito a partir do desenrolar de um processo de sociabilização. Essa construção opera por um duplo mecanismo, a saber, a percepção e compreensão do mundo circundante. O sujeito percebe o mundo, os acontecimentos e os objetos a partir desse esquema cultural, e através dele também interpreta o que lhe vem ao encontro. Mas essa internalização somente poderá oferecer uma estabilidade, em termos reprodutivos, através de uma correspondência com algo que é exterior ao sujeito. Sem essa menção ao exterior, a cultura perderia completamente a sua capacidade de se reproduzir, já que cada sujeito acabaria por se tornar o portador de uma cultura "particular", interna, insuscetível de comunicação. Nem tanto ao sujeito, nem tanto ao espaço social, caracterizam a dialética entre a construção cotidiana das estruturas que circundam o sujeito, e o modo como elas coagem e condicionam o seu agir.

Essa menção ao exterior faz-se através da correspondência entre o esquema cultural interno ao sujeito e a ordem hierárquica objetiva com que ele se defronta, subvertendo a relação entre sujeito/objeto no momento em que estabelece uma interdependência simétrica entre os dois termos. As estruturas mentais passam a serem validadas a partir de sua correspondência com as estruturas sociais. O social passa a ser interpretado como duplamente objetivo (WACQUANT, 2002, p.98). Em um dado momento, sua composição é a de distribuição material dos recursos e das posições em que os atores sociais se situam. Por outro lado, há que se considerar a produção classificatória simbolicamente construída por esses agentes, construção por meio da qual subjetivamente eles se relacionam com o mundo no momento em que o interpretam [02].

Essa correspondência preenche funções políticas esseciais na sociedade. Assim sistemas simbólicos não são apenas ferramentas de conhecimento mas, em primeiro lugar, instrumentos de dominação. Um dos objetivos centrais do trabalho de Bourdieu é mostrar como cultura e classe social se correlacionam. Em termos gerais, a teoria sociológica de Bourdieu levanta a seguinte questão: como é possível que sistemas baseados em hierarquias de dominação persistem e reproduzem a si mesmos através das práticas sociais? (VILLEGAS, 2004, p. 59) [03]

Bourdieu formula o conceito de campo social, que representa espaços permeados por relações históricas e objetivas entre atores sociais, estes lutando por poder ou capital. Deste modo, os atores acabam exercendo tanto uma função cognitiva diante da realidade, por meio de classificações, hierarquias e conceitos, como também uma função de subjugação, já que passam a impor aos outros esses esquemas particulares, organizados com base em interesses específicos.

Em conformidade com a sua teoria, o Direito é um campo social cujos participantes lutam pela apropriação do poder simbólico, que se encontra difundido pelos textos jurídicos. As especificidades do campo jurídico fazem deste um representante claro tanto do exercício do poder simbólico, quanto da violência simbólica que acompanha o jurista no momento em que cria e modifica relações sócio-políticas via interpretação dos textos que lhe servem de referencial para subsequentes decisões acerca dos casos particulares.

Acrescenta-se quanto a isso a quantidade de binômios que acabam sendo recorrentes para a compreensão da ordem social, binômios estes que são estabelecidos pelo campo jurídico, como Legal/Ilegal e Justo/Injusto (VILLEGAS, 2004, p. 60). A autoridade jurídica é uma forma privilegiada de poder no momento em que tem ao seu dispor a violência simbólica legitima, esta simultaneamente produzida e exercida pelo aparato estatal. Sua leitura da sociedade excede a simples constatação, entrando em uma dimensão performática onde o enunciado não apenas ganha sentido com o contexto, mas também o transforma. A leitura que um juiz da vara de família faz sobre a instituição familiar é técnica e vinculada a uma interpretação da lei, sim, mas trata-se de uma interpretação que confere um impacto direto na organização familiar [04].

A instrumentalização do simbólico acaba sendo permeada pela presença da violência, mas que tipo de violência é essa? Trata-se de uma violência decorrente do modo como o mundo e as próprias relações sociais passam a ter seus valores, que são contingentes e historicamente determinados, substituídos por relações de necessidade, normalidade, e até de obviedade.

Um ponto de destaque no enfoque jurídico de Bourdieu é a sua defesa de uma autonomia relativa do campo jurídico, buscando primeiro compreendê-lo enquanto campo que é interdependente aos demais, afastando qualquer argumento de auto suficiência ou independência. Ele comenta a sua posição da seguinte forma:

Para romper com a ideologia da independência do direito e do corpo judicial, sem se cair na visão oposta, é preciso levar em linha de conta aquilo que as duas visões antagonistas, internalista e externalista, ignoram uma e outra, quer dizer, a existência de um universo social relativamente independente em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a autoridade jurídica, forma por excelência de violência simbólica legítima cujo monopólio pertence ao Estado e que se pode combinar com o exercício da força física. (BOURDIEU, 2009, p. 211)

Essa relativa independência acaba sendo problemática tanto para os teóricos internos, quanto externos, já que ou se defende uma autonomia total, ou se nega qualquer autonomia ao campo jurídico. Mais importante ainda é a distinção levantada por Bourdieu entre a ordem das relações objetivas e a ordem simbólica do direito, que determinam a lógica específica do campo jurídico. A primeira revela os conflitos de competências, tratando-se da luta cotidiana pelo monopólio do "dizer o direito", luta que é realizada pelos juristas situados nas mais diversas posições. Já a ordem simbólica engloba, por via das disposições normativas e construções doutrinárias, o repertório de soluções que são tidas por propriamente jurídicas. Busca erguer uma vigiada fronteira entre as várias espécies de soluções, vinculando cada uma ao seu espaço: soluções jurídicas podem ser aplicadas a problemas políticos [05], mas soluções políticas para problemas jurídicos acabam constrangendo a autonomia da atividade jurídica.

Essa busca por uma posição mais detalhada, no sentido de evitar os extremos, é bem explicada por M. García Villegas, quando escreve:

Isso não significa, como outras teorias do direito nos fizeram acreditar, que o conhecimento das condições materiais nas quais ocorre a discussão jurídica é suficiente para sabermos o seu resultado. O campo jurídico em sua majestade, com seus rituais e altares não é suscetível de ser reduzido a forças econômicas existentes. Não é apenas um reflexo do mundo material. Contudo, o direito também não é pura erudição ao ponto de poder ser separado das condições sociais em que ele se encontra [06]. (VILLEGAS, 2004, p. 58).

Essa lógica específica, porém, exigirá do sociólogo uma análise da concorrência que há por parte dos vários operadores do direito. Já se foi colocado que as posições ocupadas são das mais diversas, mas isso também acaba por implicar uma divisão mais específica do campo direito. Conhecer essa divisão passa a ser de grande importância para a compreensão das tensões internas ao direito.

O monopólio de dizer o direito exprime-se na interpretação de um complexo normativo, o Corpus, que representa uma visão de mundo norteada pela legitimidade e justiça. Os dois termos possuem função similar, mas não se equivalem. A legitimidade permite ao jurista o auto reconhecimento de que a sua práxis foi construída e aceita por aqueles que se encontram fora do seu campo [07]. É essa constatação externa que lhe dará a segurança de voltar-se para a interpretação do seu corpus normativo sem maiores constrangimentos, uma vez que ele possui a aceitação da sociedade, destinatária das consequências originadas por essas interpretações. Por outro lado, a justiça expressa uma representação axiológica construída a partir dos valores mais caros da sociedade, fazendo do jurista uma figura que busca compensar, ou resolver, aquilo que se desloca para o espaço da injustiça, entendida aqui como desequilíbrio decorrente da desvirtuação do corpus jurídico-doutrinário. Legitimidade e justiça, sendo diferentes, atuam simultaneamente para reforçar a crença de que ele, jurista, atua de maneira autônoma e independente das pressões externas, acima do dinheiro e dos interesses políticos. Seu comprometimento é sempre com algo maior.


3. Autonomia Interna versus Exterioridade: a difícil relação entre o Direito e o seu contexto

A autonomia interna do Direito se constrói e se reconstrói sob as bases de uma linguagem hermética e artificial, linguagem que atua como distinção entre aqueles que partilham do mundo jurídico, e os profanos, localizados fora desse mundo, mas observadores temerosos dos rituais obscuros que pairam acima de sua compreensão [08]. Enquanto estratégia retórica, o campo jurídico ergue em torno de si uma aparência pautada pela dignidade, moralidade e equidade, atentando para jamais revelar ao profano os mecanismos internos de seu funcionamento (BOURDIEU, 2009, p. 212).

Como já de antemão o corpus jurídico se coloca como legítimo e justo, ele automaticamente se auto purifica de qualquer resquício de injustiça e ilegitimidade. O que ocorre são injustiças provenientes da sociedade, e que deste modo não poderia o jurista fazer senão reproduzi-las institucionalmente. Quando os perseguidos e dominados conseguem fazer valer seus direitos a partir do ganho de poder social e prestígio, então o campo jurídico assume para si mesmo o justo reconhecimento dessas demandas ignoradas por tanto tempo. Bourdieu cita um exemplo curioso, retirado do livro Critique de la Raison Juridique de A.J.Arnaud mas aparecendo também em trabalho de J.M.Scholz, La Raison Juridique à l´ouvre: les krausistes espagnols, que envolve uma mudança de abordagem perante os sindicatos norte-americanos em conformidade com o seu ganho de poder:

Já se mostrou, por exemplo, como os sindicatos americanos têm visto o seu estatuto legal evoluir à medida que ganham em poder: enquanto que, em começos do século XIX, a ação coletiva dos assalariados era condenada como "criminal conspiracy" em nome da proteção do mercado livre, os sindicatos foram pouco a pouco tendo acesso ao reconhecimento legal (BOURDIEU, 2009, p.213).

A correlação entre força e apreciação torna-se aqui explícita, já que quanto maior for a ascensão ao poder dos grupos ou pessoas que busquem ter suas demandas reconhecidas pelo corpus, mais suave será essa recepção, caso contrário arriscará sofrer uma perda de legitimidade. Quando convém e a tendência do poder vai de encontro ao que é juridicamente vigente, os juristas estarão sempre prontos a alegar que seguem a evolução da sociedade e dos seus costumes, recepcionando-os conforme a ocasião. Quando não convém e as demandas sociais acabam por retroceder haja vista não encontrarem oportunidade para a sua assimilação, dirão que a sociedade estava equivocada e por isso não lhe recepcionaram as propostas, sob pena de cometerem injustiças, semear a desigualdade, ou atentar contra a dignidade da pessoa humana. A autonomia de tudo o que lhe é externo, origem de uma suposta percepção alienante do trabalho jurídico, serve-lhe como elemento retórico confirmativo de sua posição igualitária e imparcial.

A práxis jurídica impõe para si, em dimensão apriorística, um entrelaçamento entre moral e lógica. A lógica se revela na coerência do ordenamento jurídico, cabendo ao jurista hermeneuta o reconhecimento prévio dessa coerência como elemento fundamental para a sua interpretação. Por outro lado, o rigor na aplicação das disposições normativas confere ao campo jurídico uma dimensão moral onde, ali, as diferenças intrínsecas de status social, econômico, político, étnico recebem o seu nivelamento a partir da apreciação processual. Neste campo, o jurídico e o técnico se identificam, e aquilo que não se encontra na esfera da "técnica jurídica", não se pode explicitamente integrar à prática jurídica. Se, por um lado, a contextualização do Direito encontra-se como percurso indispensável para a devida compreensão não apenas da historicidade das ideias que lhe moldam, como também da incidência, ou não, de certas disposições normativas; por outro lado, o jurista descontextualiza o Direito ao jogá-lo para um espaço acima, e além de qualquer influência exterior ao seu âmbito operacional, como as influências econômicas, políticas, e até mesmo das íntimas relações pessoais. A pureza metodológica, levantada por Kelsen, é das menos problemáticas: o mais problemático é a sustentação da pureza moral [09].

O pensamento técnico não consegue cortar todos os seus laços com os elementos que lhe são exteriores, ainda que busque assumir o papel nivelador das divergências fixadas pela sociedade, política, ou economia. Ao contrário, ele se deixa influenciar pela percepção social daqueles que possuem o capital, status, poder para se fazerem assimilados pela justiça, indo assim de encontro com a pretensão científica, pregada pelos juristas, e magistrados em particular. Sua face problemática torna a sua admissão por si só capaz de instalar o mais profundo ceticismo ante a administração da justiça [10]. É necessário recobri-la com a aparência técnica, tendo para qualquer caso, por mais peculiar que venha a sê-lo, uma resposta convincente com o corpus jurídico doutrinário. O nome dessa aparência chama-se hermenêutica jurídica.

A peculiaridade deste tipo de interpretação diante dos outros campos, como o filosófico e o literário, é para Bourdieu o resultado do deslocamento de sua finalidade para além de si mesma: sua orientação é prática, busca resolver problemas concretos e oriundos do cotidiano forense. A eficácia proporcionada pela instrumentalização da hermenêutica jurídica vem com o custo de uma série de limitações, desconhecidas dos outros dois campos. Primeiro, levanta-se uma distinção entre aqueles que podem ser intérpretes autênticos do texto, conforme o entendimento kelseniano, delimitando assim o seu campo de possibilidades de interpretação, com a consequentemente fixação estrita dos efeitos que vinculam o texto interpretado e a posição jurídica do intérprete. Esta delimitação, que de maneira alguma evita a pluralidade concorrente das interpretações sobre o direito, termina abrindo espaço para a criação de uma estrutura hierárquica cuja finalidade encontra-se também na resolução dos conflitos hermenêuticos. A decisão jurídica passa a levantar a sua pretensão de validade a partir da interpretação de textos amplamente disseminados e de caráter impessoal, sendo este um dos aspectos que a distingue dos atos subjacentes à decisão política (BOURDIEU, 2009, p. 214).


4. Normas e Competências enquanto Representação de Dois Espaços Hierárquicos

A coerência do ordenamento jurídico passa a entrelaçar duas ordens verticalizadas, sendo concorrentes na construção do que tomamos por Direito, estendendo-se também às ciências do Direito. A primeira organiza os textos que devem ser instrumentalizados, enquanto a segunda busca equilibrar as lutas simbólicas pelo sentido do texto: uma ordem trata das normas e suas fontes (Constituições, leis ordinárias e etc), enquanto a outra abrange os intérpretes conforme a sua localização na escala do poder (tribunais superiores, segundas e primeiras instâncias...). Relacionamos a coerência, decorrente do ideal sistemático do ordenamento jurídico, com a conveniência subjacente ao momento de expressar a sua neutralidade. O jurista universaliza e projeta para além do seu campo visões que são constituídas especificamente no seu campo, fazendo com que o conhecimento científico jurídico acabe por repousar para além da intervenção de suas circunstâncias sociais e econômicas, garantindo assim a sua pretensão de universalidade e neutralidade, inscrita desde já na linguagem técnica do jurista:

O efeito de apriorização, que está inscrito na lógica do funcionamento do campo jurídico, revela-se com toda a clareza na língua jurídica que, combinando elementos diretamente retirados da língua comum e elementos estranhos ao seu sistema, acusa todos os sinais de uma retórica da impersonalidade e da neutralidade (BOURDIEU, 2009, p. 215).

Esse duplo efeito retórico perpassa os mais distintos atos cotidianamente empregados pelo jurista. Desconhecer esse efeito não inviabiliza a sua reprodução contínua, ao contrário, torna-a mais intensa. Ao efeito de neutralização, Bourdieu ressalta o uso de elementos sintáticos, como frases impessoais, enquanto que o efeito de universalização é obtido através do "uso indicativo para enunciar normas, o emprego, próprio da retórica da atestação oficial e do auto, de verbos atestativos na terceira pessoa do singular do presente, ou passado composto que exprimem o aspecto realizado" (BOURDIEU, 2009, p.215-216). São esses os aspectos que, conforme o sociólogo francês, levaram os marxistas a vislumbrarem uma máscara ideológica que veste as ciências do Direito. Ele, porém, aí visualiza um contínuo processo de racionalização que subjaz o sistema das normas jurídicas (BOURDIEU, 2009, p.216).

Nesta análise social a pretensão de universalidade é elevada ao ponto de identificar-se com o sentido do Direito, no momento em que une os intérpretes das mais diversas posições aos aspectos de coerência jurídica subjacentes ao ordenamento. Assim aparecem as distinções gerais, como o público e o privado, ou então entre o direito processual e o direito material. Mais expressivo sob o ponto de vista da interpretação dos textos jurídicos encontra-se a distinção, quase que insuperável, entre teóricos e práticos.

Essa divisão permite a construção de uma "ponte" entre o corpo de regras e procedimentos com a pretensão universal, mostrando que a relação entre teoria e prática aqui se dá de maneira antagônica e complementar. Antagônica porque teóricos vão construir modelos jurídicos universais, atribuindo ao direito valores como coerência interna, sistematicidade, dentre outros, enquanto os práticos vão desenvolver formas de resolver os problemas jurídicos cotidianamente enfrentados por meio da manipulação do corpus jurídico. O antagonismo se torna claro a partir de duas formas muito distintas de se observar a prática do Direito, cada uma não apenas com problemas próprios, mas com entendimentos distintos sobre o que é um problema jurídico [11].

A complementariedade mostra-se na interdependência com que a pretensão universalizante é sustentada pelos dois lados simultaneamente, seja a partir da construção de teorias jurídicas auto referenciais, seja pela articulação do corpus técnico-jurídico como algo dissociado dos contextos sócio-políticos em que eles já se encontram. Em ambos os lados, a especificidade do problema jurídico, enquanto isolamento de seu campo, marca a produção simbólica do Direito por parte dos mais diversos agentes. A cisão entre os intérpretes autorizados acaba por gerar dois monopólios distintos, que se encontram firmemente relacionados aos limites das áreas em que atuam. Bourdieu considera essa divisão de trabalho entre teóricos e praticantes "uma forma subtil de divisão de trabalho de dominação simbólica na qual os adversários, objectivamente cúmplices, se servem uns aos outros" (BOURDIEU, 2009. p. 219).

O autor estabelece uma analogia entre o cânone jurídico e um banco central, na medida em que o cânone garante a autoridade dos atos jurídicos singulares, além de produzir inúmeras justificativas com o intuito de dissimular atos que visem a criar o Direito a partir da vontade do magistrado. A partir do momento em que o juiz decide ou cria, ele assim o faz porque reproduz uma visão legítima do ordenamento jurídico, e não a sua vontade enquanto expressão de sua concepção singular do ordenamento. Isso porque a legitimidade é tanto maior quanto menos o ato mostrar-se motivado pela valoração do intérprete jurídico, sendo esta substituída pela dita técnica jurídica. Neste sentido, de intérprete e construtor dos sentidos da lei, a figura do juiz se transforma na boca da lei, a expressão genuína de seu sentido e sua vontade. Nesta etapa, qualquer pretensão de clareza, ou busca analítica sobre o porquê de o juiz decidir de uma forma, e não de outra, perde sua razão de existir: a subsunção das normas transforma-se em um jogo de espelhos, onde a essência de qualquer disposição normativa restringe-se a sua aparência, ou seja, ao que a vontade do juiz, servindo-se da legitimidade do corpus jurídico, faz dela.

A relação de complementaridade mostra como teóricos e práticos continuam próximos sob uma perspectiva interdependente de construção do Direito, ainda que possuam visões de mundo distanciadas e divergentes acerca da constituição das ciências jurídicas. É o momento onde a pirâmide kelseniana, que é uma construção teórica, passa a ser largamente utilizada pelos especialistas em Direito constitucional, enquanto representação da estrutura hierárquica do ordenamento jurídico. Já as criações comumente relacionadas ao Direito Constitucional, como o controle de constitucionalidade, acabam por permear as preocupações dos teóricos quanto ao limite da atuação jurisdicional, as ligações entre Direito e política, dentre outras questões. Práticos fornecem elementos para a especulação teórica, enquanto os teóricos formulam respostas ou indagações sobre questões oriundas da atuação dos práticos. Daí Bourdieu relacionar a forma como as teorias do Direito e o cotidiano forense se interligam e a forma como teoremas matemáticos acabam sendo trabalhados pelos economistas:

Da mesma forma que o economista mais diretamente envolvido nos problemas práticos de gestão, permanece ligado, como numa "grande cadeia do Ser" à Lovejoy, ao teórico puro que produz alguns teoremas matemáticos pouco mais ou menos desprovidos de referente no mundo econômico real mas que se distingue ele mesmo de um puro matemático pelo reconhecimento que economistas mais impuros são obrigados a conceder às suas construções, também o simples juiz de instância (ou, para ir até aos últimos elos da corrente, o polícia ou o guarda prisional) está ligado ao teórico do direito puro e ao especialista do direito constitucional por uma cadeia de legitimidade que subtrai os seus actos ao estatuto da violência arbitrária. (BOURDIEU, 2009, p. 220)

O reconhecimento desse entrelaçamento não anula as tensões internas, ilustradas a partir da concorrência que envolve o exercício legítimo da competência jurídica. Os juristas teóricos comumente enxergam o Direito enquanto sistema autossuficiente e distinto, sendo essa separação o produto de uma abstração teórica que envolve o expurgamento das incertezas levantadas pelas lacunas e pelas incoerências que são observadas através do cotidiano forense, chocando-se assim frontalmente com os práticos. Os valores chaves de coerência e sistematicidade passam a assumir uma função de direcionar a reflexão teórica, sumindo os elementos que neste panorama não se encaixam. Por outro lado, os práticos conduzem o sentido do Direito para a resolução dos casos com que se defrontam, contestando a tranquilidade com que o teórico reflete acerca do Direito por via de um senso de urgência e "nervosismo" que caracterizam o cotidiano forense. Buscando incessantemente renovar o Direito, e atento às transformações sociais, os práticos realizam o trabalho complicado de adaptar a sistemática do Direito às exigências da realidade circundante:

É claro que os magistrados, por meio de sua prática jurídica, que os põe directamente perante a gestão dos conflitos e uma procura jurídica incessantemente renovada, tendem a assegurar a função de adaptação ao real num sistema que, entregue só a professores, correria o risco de se fechar na rigidez de um rigorismo racional: por meio da liberdade maior ou menor de apreciação que lhes é permitida na aplicação das regras, eles introduzem as mudanças e inovações indispensáveis à sobrevivência do sistema que os teóricos deverão integrar no sistema. (BOURDIEU, 2009, p. 220-221)

Se o campo jurídico necessita da atividade criadora dos praticantes que, por meio da instrumentalização da hermenêutica jurídica, dinamizam o Direito conforme seus interesses e necessidades, acabando também por servirem de "ponte" entre o sistema jurídico e a realidade circundante, a função dos teóricos não é menos importante. Deixado o Direito tão somente nas mãos dos praticantes, o elo acabaria por correr o risco de explicitamente se tornar uma "terra de ninguém", onde a vontade do juiz assume o referencial sagrado sob o qual devem se curvar aqueles que anseiam por uma decisão redentora. Qualquer relevância dos direitos e garantias positivados deixariam de existir, já que ao juiz é dada a possibilidade de instrumentalizar a interpretação para a direção que mandar a sua vontade, podendo muito bem ignorar, ou remover, as garantias que lhe vão de encontro através do controle da extensão dos efeitos normativos. Esse é o terreno por excelência da Kadijustiz, a justiça dos juízes.

Tudo isso nos levaria a acreditar que a função do teórico acaba sendo a de impor limites ao poder, ou de até mesmo buscar inviabilizar o surgimento das situações esboçadas acima. Contudo, a falha principal da situação anterior foi a clareza com que explicitamente a interpretação passou a ser instrumentalizada, viabilizando assim as mais diversas críticas e objeções quanto a prática do jurista [12]. Cabe ao teórico suprir essa falha, assimilando todas as incoerências levantadas pela prática jurídica ao ordenamento jurídico autônomo, racional, e coerente. O teórico também instrumentaliza a interpretação no momento em que, orientado pela visão de um Direito coerente e racional, atribui ao arbitrário o status de "anomalia" jurídica, tratando-o muito mais como uma raridade, uma exceção, do que um elemento presente e persistente na prática do jurista. A função de assimilação, atribuída ao teórico, longe de inviabilizar a arbitrariedade dos juízes, torna-a mais sofisticada por fazê-la menos evidente. Bourdieu comenta essa função:

Por seu lado, os juristas, pelo trabalho de racionalização e de formalização a que submetem o corpo de regras, representam a função de assimilação, própria para assegurar a coerência e a constância ao longo do tempo de um conjunto sistemático de princípios e de regras irredutíveis à série por vezes contraditória, complexa e, a longo prazo, impossível... e ao mesmo tempo, oferecem aos juízes – sempre inclinados, pela sua posição e pelas suas atitudes, a confiar no seu sentido jurídico – o meio de subtraírem os seus veredictos ao arbitrário demasiado visível de uma Kadijustiz. (BOURDIEU, 2009, p. 221)

Não cabe ao jurista teórico a função de descrever minunciosamente o que ocorre na prática jurídica, como se fosse um observador externo, mas sim a de conferir uma forma aos princípios e regras que são empregados pelos juristas. Cria desse modo uma ciência nomológica, que atua em duas frentes: por um lado, tenta visualizar a justiça a partir da lei, por outro lado, faz uso do método dedutivo como instrumento de resolução dos casos particulares (BOURDIEU, 2009, p. 221). A finalidade aqui é a enunciação científica do dever-ser, ou seja, conciliar uma visão orientada para o alto, representada pela preocupação com o justo, e uma para baixo, representada pelo Direito positivo, conciliação esta que é tarefa da ciência normativa do Direito.


5. O lugar da teoria do direito e a reprodução do conhecimento jurídico: organização racional e evolução histórica

Já o vimos que o jurista teórico também desempenha a tarefa de preservar e reproduzir o conhecimento jurídico, apresentando-o como um lento trabalho de evolução de séculos e mais séculos de teorizações sobre o Direito, enfatizando ainda mais a força da tradição jurídica e a coerência das várias interpretações realizadas sob o Direito, sendo esta também uma forma de interpretação [13]. A reprodução do conhecimento jurídico se dá inicialmente nas faculdades, lugar onde encontramos o monopólio dos acadêmicos, que em sua maioria são teóricos. Estes interpretam e organizam a prática jurídica, reproduzindo também uma lógica de dominação, ainda que esta seja imperceptível para aquele que a reproduz. Um bom exemplo encontra-se na forma com que o método dedutivo passa a ser identificado como o próprio percurso decisório realizado pelo juiz. Está claro que se trata de uma leitura sobre um aspecto da prática jurídica, mas essa leitura é muitas vezes passada como a própria realidade. Essa ficção acaba sendo denunciada pelos juristas pertencentes ao realismo jurídico:

Como os "realistas" bem mostraram, é completamente vão procurar isolar uma metodologia jurídica perfeitamente racional: a aplicação necessária de uma regra de direito conforme um caso particular é na realidade uma confrontação de direitos antagonistas entre os quais o Tribunal deve escolher; a regra tirada de um caso precedente nunca pode ser pura e simplesmente aplicada a um novo caso, porque não há nunca simplesmente dois casos perfeitamente idênticos, devendo o juiz determinar se a regra aplicada ao primeiro caso pode ou não ser estendida de maneira a incluir o novo caso (BOURDIEU, 2009, p. 222).

O que se encontra por trás desta discussão é a substituição aparente da interpretação pela lógica. Neste jogo de aparência, a lógica resume-se a explicitação de uma dedução que escapa à vontade do juiz, consolidando a decisão como legítima e imparcial. Esse elemento criador e arbitrário, que integra o momento decisional, é o primeiro a ser desmentido e recalcado porque atenta contra a cientificidade do Direito e o princípio de sua universalização. Bourdieu vê na interpretação uma historicização da norma jurídica, momento em que a "ponte" que liga o campo jurídico à realidade social é cruzada, onde possibilidades interpretativas ainda não examinadas passam a serem descobertas conforme novos casos passam a serem examinados pelo poder judiciário. Esse trabalho de criação envolve também a destruição e esquecimento tanto das normas consideradas obsoletas, como das interpretações sobre as normas que não mais podem ser acolhidas a partir de uma nova realidade social.

É importante enfatizar também a relação entre reprodução do saber e dissimulação, já que para Pierre Bourdieu as relações de poder ganham força e se mantém a partir da dissimulação, enquanto omissão consciente de aspectos que expõem a lógica da dominação, com isso viabilizando a sua reprodução [14]. Do professor que apresenta aos alunos uma visão rigorosamente sistemática e coerente do Direito ao juiz que sentencia conforme a sua convicção íntima, em ambos os casos a interpretação é utilizada para dissimular a lógica de dominação subjacente ao campo jurídico, que como vimos é indispensável para a sua reprodução.

Os dois casos descritos servem como forma de ilustrar o poder que existe na operação hermenêutica chamada por Bourdieu de declaratio. A polissemia das normas jurídicas, agora enfatizadas ainda mais a partir da utilização exorbitante dos princípios jurídicos, permite aos juízes e demais juristas instrumentalizar a interpretação recorrendo aos mais diversos meios. Além da declaratio, pode-se fazer-se uso da restrictio, como meio de afastar a aplicação que seria necessária a partir de uma interpretação literal da norma, ou fazendo-se uso da extensio, aqui com o intuito de aplicar uma norma que se interpretada literalmente não caberia a sua aplicação. Esses mecanismos também acabam por mostrar as desigualdades entre os profissionais engajados nessa luta simbólica pelo ato de dizer o Direito.

Com efeito, o conteúdo prático da lei que se revela no veredicto é o resultado de uma luta simbólica entre profissionais dotados de competências técnicas e sociais desiguais, portanto, capazes de mobilizar, embora de modo desigual, os meios ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das "regras possíveis", e de os utilizar eficazmente, quer dizer, como armas simbólicas, para fazerem triunfar a sua causa; o efeito jurídico da regra, quer dizer, a sua significação real, determina-se na relação de força específica entre os profissionais... (BOURDIEU, 2009, p. 224)

Por trás dos rituais formais que impregnam a prática jurídica, a funcionalidade da hermenêutica jurídica também se encontra dissimulada, na medida em que vem a se tornar mais um artifício para mostrar como a decisão do juiz exprime a vontade da lei (voluntas legis), ou do legislador (voluntas legislatoris). Trata-se da atuação do elemento dissimulante, que não apenas intensifica o poder, como também faz com que ele seja reproduzido:

É próprio da eficácia simbólica, como se sabe, não poder exercer-se senão com a cumplicidade – tanto mais certa quanto mais inconsciente, e até mesmo mais subtilmente extorquida – daqueles que a suportam. Forma por excelência do discurso legítimo, o direito só pode exercer a sua eficácia específica na medida em que obtém o reconhecimento, quer dizer, na medida em que permanece desconhecida a parte maior ou menor de arbitrário que está na origem do seu funcionamento. (BOURDIEU, 2009, p.243)

Essa cumplicidade sentencia a todo e qualquer jurista ao papel problemático de hipócrita. Longe de ser apenas um adjetivo moral, a hipocrisia opera por uma reversão entre aparência/essência, instituindo um jogo onde se toma por essência aquilo que é a aparência. Mas para que essa ilusão se mantenha firme é indispensável fazer com que a aparência manifeste-se o mais próximo possível de uma realidade fictícia, mas amplamente compartilhada, ainda que jamais venha a sê-la: é necessário que o mentiroso, ou o charlatão, venha a parecer nos mínimos detalhes com uma pessoa de bem, caso contrário o encanto é quebrado.

A ilusão que os juristas praticantes produzem é a própria representação social do que é uma instituição jurídica. A seriedade que se imprime na cara dos operadores do Direito, o jargão pomposo que os distingue dos demais falantes da língua portuguesa, os trajes, tudo aponta para um universo distinto e isolado, mas que deles, operadores do Direito, todos nós necessitamos. A arbitrariedade integra o jogo, mas não pode ser admitida, sob pena de romper com toda a imposição que os juristas criam em torno de si, unindo o prestígio profissional à influência social. As operações hermenêuticas se passam por saber profundo, que por si só resolvem casos complexos e atestam a perícia técnica do advogado, sem fazer menção ao modo como o próprio magistrado instrumentalizou a hermenêutica jurídica, e quais eram as suas convicções para ter optado por essa linha de argumentação na hora de sentenciar. A seriedade que mantém a legitimidade do Direito deve ser preservada custe o que custar.

Os vereditos emitidos pelo poder judicial acabam por identificar-se com uma visão impessoal, "de cima", incomunicável e inconfundível com as perspectivas particulares dos agentes sociais singulares. O que se tem é a própria manifestação da visão geral e soberana do Estado (BOURDIEU, 2009, p. 236). A proximidade com o poder coloca o jurista em uma posição dúbia: por um lado, torna-se símbolo de densas transformações sociais, propondo leituras novas para normas jurídicas que já não mais se encontram em consonância com as necessidades levantadas pela sociedade, por outro lado, o jurista encontra-se intimamente ligado ao poder soberano, tomando para si o delicado ofício de legitimar a ordem vigente a partir da interpretação de disposições normativas que devem fazer valer a voz do Estado, ainda que por meio da fala do juiz monocrático, ou órgãos colegiados, sendo todos esses meandros dissimulados a partir da racionalização do discurso jurídico. O jurista não apenas cria e reforma o seu mundo, como assegura a sua permanência:

O direito é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos; ele confere a estas realidades surgidas das suas operações de classificação toda a permanência, a das coisas, que uma instituição histórica é capaz de conferir a instituições históricas. (BOURDIEU, 2009, p. 237)

A ênfase na atividade classificatória realizada pelo jurista não é sem sentido, já que para Bourdieu nós percebemos e compreendemos o mundo ao nosso redor via esquemas construídos social e historicamente. Mas ele quis evitar posições extremas e desbalanceadas: nem o sujeito, por si só e através das suas categorias, constrói e impõe sentido ao mundo, nem o sujeito é completamente estruturado pelas estruturas sociais que lhe circundam. Ocorre que os esquemas acabam por contribuir com a construção do sentido das coisas que se encontram no mundo, mas necessitam de uma correspondência com as estruturas preexistentes. Como ao Direito é dada a função performática de criar coisas através da nomeação, impor hierarquias e fazer valer a ordem, encontra-se justificado o porquê de Bourdieu considerar o Direito como "forma por excelência do poder simbólico de nomeação".

Longe de ser um produto de dedução lógica, essas ordens hierárquicas decorrem da própria interpretação que o jurista realiza a partir do seu mundo, como também partindo de uma leitura sobre a "vontade" do ente estatal soberano. Contudo, a exposição do caráter contingente da interpretação poderá subtrair ao discurso do jurista uma vantagem retórica de grande importância, a saber, o peso da cientificidade, do distanciamento e do rigor que encontramos na lógica, mas desconfiamos que exista na interpretação. Ao invés de esclarecer que, ao falar do mundo, ele assim o faz conforme a sua leitura, o jurista pula essa etapa, sentindo-se mais a vontade ao desvelar a ordem que há no mundo, e mostrar o quanto essa ordem que ele enxerga é legitima, necessária e que precisa ser defendida.

O que se encontra por trás da hermenêutica jurídica, o que lhe é específico e distinto, é a sua dimensão performática que dela não pode ser dissociada. A interpretação realizada pelo jurista, ou pelo juiz, não apenas constata um sentido de uma suposta norma jurídica: ela transforma o entendimento sobre essa norma, podendo também intervir diretamente sobre um estado de coisas preexistentes, modificando-os a partir da força da lei. É por isso que a interpretação jurídica é o momento central na decisão judicial, já que é neste momento onde o texto é semanticamente conduzido para provocar os efeitos esperados.

A generalização universalizante e o jogo das dissimulações acaba por colonizar a moralidade da sociedade. Interpretando a ordem social e construindo a mesma, as instituições sociais passam a serem juridificadas, identificando-se a normalidade com aquilo que prescreve o Direito, ou seja, a normalidade jurídica. Práticas que se desviam, ou destoam daquelas que são prescritas pelo jurista acabam por serem interpretadas como deslocadas, ou desviantes. A simples não correspondência com o que é prescrito pelo jurista já é suficiente para despertar suspeitas quanto a procedência desses atos. Essa dimensão universalizante do Direito, que encara todo e qualquer fenômeno social tão somente enquanto algo que se relaciona com o Direto, não tem como evitar terminar em um etnocentrismo:

Vê-se que a tendência para universalizar o seu próprio estilo de vida, vivido e largamente reconhecido como exemplar, o qual é um dos efeitos do etnocentrismo dos dominantes, fundamentador da crença na universalidade do direito, está também na origem da ideologia que tende a fazer do direito um instrumento de transformação das relações sociais e de que as análises precedentes permitem compreender que ela encontre a aparência de um fundamento na realidade... (BOURDIEU, 2009. p.247)

O etnocentrismo produz percepções contraditórias sobre o Direito e os juristas. Ao visualizarem os acontecimentos externos a partir de suas idiossincrasias, eles são vistos como herméticos, excessivamente formais, ou conservadores. Não necessariamente representariam o que há de pior em termos ideológicos dentro do espaço social, mas é alguém que por habitar a indefinição, pode se beneficiar tanto das mais radicais mudanças sociais, como também da conservação do status quo. Ao repudiar o elemento ideológico no Direito mediante uma ênfase na técnica das resoluções do conflito, a ideologia acaba sendo apenas mais um elemento latente no processo de interpretação e decisão.


Conclusão

Em "Força do Direito" Bourdieu esboçou uma visão sofisticada e sensível do mundo jurídico não apenas voltada para teóricos, como também valorizando e trazendo para o centro de sua reflexão a prática jurídica e sua relação complementar, e antagônica, com a teoria. Evitou também recair em uma visão plenamente subjetiva do Direito, onde o veríamos como construído exclusivamente pelas percepções dos sujeitos, como também evitou incorreu em um objetivismo que negaria qualquer relevância aos atos individuais praticados por cada um desses sujeitos. Tangenciando todas essas questões encontra-se a insistência na interpretação realizada pelo jurista, seja modelando o mundo ao seu redor conforme as suas convicções, seja a partir das técnicas de decisão aplicadas aos casos particulares, é a interpretação que integra a temática central do artigo.

Essa abordagem histórica e dialética permite realizar uma leitura mais complexa e completa de vários elementos encontrados na prática jurídica, mas que também habitam os interesses dos teóricos. A decisão judicial, por exemplo, pode até ter a sua sustentação na autoridade do magistrado, mas é também um ponto localizado em uma rede de relações entre agentes diversos que interpretam o Direito, interpretações essas que podem alterar conjuntos de categorias essenciais para a própria decisão judicial, tais como a introdução dos princípios jurídicos.

Por fim, Bourdieu foi um dos poucos autores a prestar atenção também ao modo como o jurista teórico interpreta o Direito e quais repercussões isso tem para a prática. Ao expandir o campo de instrumentalização da hermenêutica jurídica, esta deixa de assumir o seu papel de ferramenta de resolução dos casos concretos para integrar tanto a práxis teórica, quanto prática, inclusive viabilizando pontes de intercessão entre os dois domínios. É verdade que Bourdieu não elimina a distinção entre práticos e teóricos, respeitando as pretensões intrínsecas a cada campo, mas flexibiliza essa oposição, mostrando que as linhas são bem mais flexíveis do que imaginamos, linhas estas que ajudam a reproduzir e circular o poder simbólico no Direito.


Referências

ABEL, Richard L. The Legal Profession in England and Wales. Oxford: Basil Blackwell, 1988.

BOURDIEU, Pierre. A Força do Direito. O Poder Simbólico. 12 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. p. 209-253.

VILLEGAS, Mauricio García. On Pierre Bourdieu´s Legal Thought. Droit et Société, 56-57. 2004.

SIN, Wai Man. Law, Politics and Professional Projects: The Legal Profession in Hong Kong. Social & Legal Studies. Ano: 2001. Vol: 10. p: 483

WACQUANT, Loïq J. D. O Legado Sociológico de Pierre Bourdieu: Duas Dimensões e uma Nota Pessoal. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 19, p. 95-110, nov. 2002.


Notas

  1. Conflitos sociais transformam-se em disputas técnicas, onde o que realmente conta é a destreza e a habilidade do conhecimento técnico-normativo por parte dos advogados. A eleição dos representantes do povo, os projetos desenvolvidos em prol da resolução dos problemas sociais transformam-se em um conjunto de regras e princípios técnicos acessíveis somente ao jurista especializado em Direito Público.
  2. A dupla objetividade do social permite realizar um trabalho de autorreflexão. Não apenas questiona e descreve a realidade social conforme um esquema conceitual sociológico, como também é capaz de questionar e criticar a prática das ciências sociais, podendo esta tornar-se objeto para a própria ciência social, daí autorreflexão.
  3. No original, "This correspondence fulfills essential political functions in society. Thus symbolic systems are not only tools of knowledge but, first and foremost, instruments of domination. A central objective of Bourdieu´s work is to show how culture and social class correlate. In general terms Bourdieu´s sociological theory asks the following question: how is it possible that hierarchically based systems of domination persist and reproduce themselves through social practices?".
  4. Esse é um ponto importante para distinguir a interpretação jurídica de interpretações literárias, ou filosóficas. Não é que em ambos os casos a dimensão performativa deixe de existir, mas de maneira alguma o elemento performativo dessas interpretações assume posição central, como ocorre no Direito. A força de uma interpretação corresponde a solidez do elemento performático que a faz não apenas integrar um contexto, como também modificá-lo. Assim, uma interpretação sobre leis e doutrinas que é completamente insuscetível de ser operacionalizada já é suficiente para despertar a desconfiança do jurista, ainda que venha interessar ao literato, ou historiador das ideias.
  5. Esse tipo de abordagem, ainda que não institucionalizado, tem sido prática recorrente nos tribunais superiores brasileiros. Algumas decisões desses tribunais, sobretudo quanto ao STF, tornam o trabalho de separar o político do jurídico desafiador.
  6. No original: "This does not mean, as some theories of the law have led us to believe, that knowledge of the material conditions in which the legal discussion takes place is sufficient to know the outcome. The legal field in its majesty, its rites, and its shrines is not amenable to being reduced merely to existing economic forces. It is not just a reflection of the material world. Neither is the law pure erudition that can be detached from the social conditions in which it is found".
  7. Em um artigo de fina qualidade, Wai Man Sin, professor da Universidade da cidade de Hong Kong, mostrou como a resistência dos advogados diante da mudança da língua inglesa para a chinesa no cotidiano forense era motivada pela necessidade de manter as distinções profissionais adquiridas a partir da língua inglesa. Tendo todos eles obtidos uma formação na Hong Kong colonial, o uso do inglês era largamente utilizado também como mecanismo de distinção, e até de sofisticação, entre os advogados diante de uma população que majoritariamente desconhecia o inglês. As sentenças e demais peças processuais eram escritas em inglês, sem tradução para o chinês. Isso fazia do advogado, nesta época colonial, não apenas um tradutor dos interesses particulares do cliente, como também aquele que permitiria destrinchar os meandros da prática jurídica e sintonizar o cliente do que lhe acontecia ao seu redor – ou seja, desempenhava também o papel de tradutor. Para além disso, o uso do inglês fixava uma distinção interna à categoria profissional dos advogados, a saber, entre os profissionais mais experientes, e os mais jovens. Os primeiros, pelo momento em que obtiveram a sua educação, demonstravam um inglês elegante, gramaticalmente correto, enquanto os segundos, formados a partir do novo sistema educacional já em um contexto pós-colonial, demonstravam um inglês mais limitado e pobre. A mudança dos idiomas faria com que os primeiros vissem o seu "capital social", enquanto representação simbólica socialmente construída a partir das relações profissionais com a sociedade, diminuído em dois segmentos, um externo à categoria, outro interno: (1) externo - a função de tradução tornaria a ser irrelevante, já que as peças processuais acabariam por ser traduzidas no idioma pátrio; (2) interno – a mudança da língua faria com que a vantagem profissional de se conhecer um idioma não assimilado pelos novos profissionais, mas que engloba todo o campo de atuação profissional.
  8. Richard L. Abel, partindo de uma análise sociológica calcada na tradição weberiana, afirmou que para um setor profissional se estabelecer em uma economia de mercado, que é organizada pelo Estado, mas dominada pela iniciativa privada, devem ser estabelecidas duas coisas: (1) Construir uma "mercadoria profissional" (professional commodity), onde tratando-se de advogados seriam os seus serviços jurídicos. Essa mercadoria é algo que não pode ser possuída pelos seus clientes, mas também ser capaz de integração no rol de suas necessidades. (2) Deve criar uma clausura social de modo a afastar outros profissionais, exteriores à área, da prestação de seus serviços, ou seja, instituir um monopólio simbólico, mas se possível também jurídico, como seria o caso dos vários exames mundiais de admissão à carreira de advogado (ABEL, 1988, p. 8-21).
  9. O Ministro Público transforma-se em "paladino da justiça", ou "fiscal da lei". A Magistratura busca a "verdade material em detrimento da verdade formal", esta última existindo como elemento tipicamente processual e que viabiliza, por outro lado, o ganho de causas por parte dos advogados através da exploração de "falhas técnicas" (perda de prazos, indeferimento das testemunhas, falha na citação...). Por fim, os advogados são indispensáveis à administração da justiça. Por todo o lado, a grandeza e pura moral do Direito é exaltada com contornos religiosos. O ambiente de sacralidade somente passa a ser quebrado quando os subsídios ou honorários passam a ser discutidos, mas ainda aqui o adjetivo ´justo´ é comumente acrescentado: "os justos honorários", "os justos e modestos subsídios".
  10. Daí a prudência sustentada pelos juristas praticantes ao limitarem a crítica diante do seu ofício, respeitando a legitimidade dos atos jurídicos diante do ordenamento. Se o jurista teórico é capaz de duvidar até mesmo dos alicerces mais sólidos da dogmática jurídica, inclusive ao questionar a existência de um ato decisório completamente destituída de arbitrariedade, proclamando livremente o seu ceticismo, o jurista praticante atua como representante de uma ordem que o engloba, e é muito maior do que ele: sua decisão torna-se cada vez mais forte conforme se aproxima do ordenamento jurídico em vigor. A declaração de um suposto ceticismo, por parte de um representante da ordem jurídica no exercício de seu ofício, enquadra-se em um ato de fala performativo, já que realiza ação de colocar em evidência a legitimidade da função jurisdicional.
  11. O que é um problema para um prático pode não passar de trivialidade ou preciosismo para um teórico, enquanto os problemas suscitados pelos teóricos podem ser vistos como devaneio. Os mecanismos de resolução dos casos, as estratégias retóricas empreendidas pelos advogados, a maneira como juízes resolvem os casos mais difíceis, podem ser encaradas pelo olhar teórico como construções simplórias, pouco esclarecedoras, ou até mesmo arbitrárias. As distinções conceituais, a procura pela coerência, os problemas de decisão, dentre outros pontos, podem ser encarados como exercícios ornamentais de erudição acadêmica aos olhos daqueles que vivenciam a prática cotidiana do Direito. Neste sentido, o antagonismo atinge a sua mais alta expressão a partir do uso retórico de termos como ´relevância´ e ´importância´. Práticos dirão que não há grande relevância naquilo que muitos teóricos realizam, já que as implicações perante o mundo jurídico são mínimas, e suas constatações não ajudam resolver os casos mais intricados, ou as posturas mais questionáveis, seja por parte dos juízes (a arbitrariedade), como advogados (a dissimulação, o ardil desenfreado que transforma recursos jurídicos em verdadeiras armas jurídicas). Teóricos, em contrapartida, podem não ver grande relevância nas construções conceitualmente pouco sofisticadas dos práticos, sobretudo porque são passageiras, e transformam-se radicalmente ao sabor das mudanças no ordenamento. Em ambos os casos, o que se encontra por trás do "abismo", são noções distintas de problemas, fazendo com que aquilo que seja de fundamental importância para uns, torne-se trivial para outros.
  12. O problema não é o fazer, não é a decisão arbitrária, nem a manipulação do ordenamento jurídico. Esses elementos há muito se reproduzem no horizonte das decisões judiciais e do cotidiano forense, é algo que integra o imaginário popular sobre o direito e os juristas. O que é verdadeiramente problemático é o parecer, a forma como a arbitrariedade se expõe e se faz conhecer. O problema não é o juiz realizar uma decisão arbitrária, mas deixar claro que a sua decisão foi arbitrária.
  13. A utilização dupla do termo ´interpretação´ não está querendo expressar uma suposta redundância, mas sim uma meta-reflexão sobre a interpretação jurídica, e a sua história. Os juristas constantemente enfatizam os métodos interpretativos que utilizam para a resolução dos casos práticos, mas esquecem-se de prestar atenção sob a forma como essas teorias da interpretação são historicamente recepcionadas e interpretadas. A abordagem ao modo com que se interpretam as teorias hermenêuticas é a de que estas são suficientemente claras para serem problemáticas por si só. Sua eficácia, ou ineficácia, acaba sendo mostrada quando passam a ser utilizadas na resolução dos casos.
  14. Um exemplo simples seria o das empresas multinacionais que desempenham um duplo comportamento. O comportamento voltado aos países considerados de terceiro mundo enfatiza a responsabilidade social com que essas empresas sustentam perante a sociedade, gerando empregos, realizando doações, buscando proteger o meio ambiente, dentre outros pontos. O outro comportamento, voltado aos países subdesenvolvidos, expressa o contrário. A ideia é uma postura ética e protecionista ao meio ambiente voltada aos países desenvolvidos enquanto simultaneamente beneficiam-se da "flexibilidade" dos sistemas jurídicos dos países subdesenvolvidos para explorarem de maneira predatória o meio ambiente local.