O GOVERNO LULA E O PPA DE 2004/2007


Porjulianapr- Postado em 26 março 2012

Autores: 
Vinícius Moreira de Lima

O GOVERNO LULA E O PPA DE 2004/2007

 

 

Vinícius Moreira de Lima

Mestre em Direito Econômico/UFMG
Prof. da PUC/Minas-Contagem

 

1)A Herança do Governo Lula

 

Superprodução, superpopulação, subconsumo, expansão do trabalhoassalariado improdutivo, acumulação explosiva de capital fictício, endividamento externo e interno, crise econômica permanente. Seis monstros delicadíssimos do capital monopolista internacional, imperialista, que se abatem sobre o Brasil de forma avassaladora.

Na esfera do processo de produção imediato, as transformações tecnológicas alteram o antigo padrão de acumulação, baseado nos princípios da linha de montagem, da produção eletromecânica em massa do fordismo, verticalizada, da superespecialização do operário, que era viabilizada pelos acordos coletivo de trabalho e da ideologia econômica keynesiana. Agora é a vez do toyotismo, da acumulação flexível, do “just in time”, do método Kan-Ban, da base técnica com ênfase na microeletrônica digital, da horizontalização do processo de produção, da polivalência do trabalhador, da subcontratação (ou terceirização), do sindicalismo por empresa e do neoliberalismo (1).

A concorrência do capital monopolista internacional torna-se mais acirrada e a força de trabalho se fragmenta e se diferencia: amplia-se a composição orgânica do capital (investimento em capital constante), aumenta-se o desemprego estrutural e tecnológico, instala-se o refluxo do movimento operário e a baixa da consciência de classe; aprofunda-se a desconstrução de habilidades profissionais e há compressão da massa salarial. É a época do trabalho em tempo parcial, temporário ou terceirizado e da combinação de estratégias de mais-valia relativa nos países metropolitanos com mais-valia absoluta (prolongamento excessivo do tempo de trabalho: é a apologia do regime de “horas extras”) nos países periféricos, em outras palavras, da superexploração da força de trabalho e da dominação dos enormes cartéis e dos trustes internacionais.

No atual momento histórico, a repressão maciça dos trabalhadores e a desregulamentação de direitos sociais são a trombeta de salvação do novo regime de acumulação capitalista. O aperfeiçoamento dos métodos de subsunção formal do trabalho ao capital (novas formas de trabalho a domicílio, produção por encomendas, etc) assumem dimensões fantásticas: há insegurança e incerteza generalizadas para a força de trabalho, seja na contratação ou na manutenção de empregos. O produtor direto e real (o trabalhador) se torna o responsável pela crise econômica: a redução de custos e a busca de superlucros se amparam em discursos ideológicos de ampla envergadura. O “Custo Brasil”, por exemplo, é o hino da burguesia nacional que se considera atingida pela irracionalidade de passivos fiscais e trabalhistas insuportáveis e em contradição direta com a mundialização do capital.

Há crise de demanda efetiva, de realização do capital: o capital estrangeiro e nativo investe em larga escala no setor terciário (serviços), há aguda centralização de capitais no centro e na periferia do sistema capitalista internacional (fusão e aquisição de empresas gigantes, mas não aumento qualitativo da produção e do desenvolvimento tecnológico para atender às necessidades sociais), amplia-se a pressão pela desregulamentação dos mercados financeiro, de mercadorias e do trabalho. A guerra econômica internacional pelo controle dos centros de produção de matérias-primas e de ampliação de mercados cativos de exportação de capitais, com baixos salários, assume uma violência e um ritmo cada vez mais intensos e velozes.

O trabalho improdutivo adquire dimensões estratosféricas e é o Calcanhar de Aquiles da acumulação do Capital: a expansão do setor de serviços privados (médicos, educacionais, forenses, financeiros, imobiliários, de seguros, de espetáculos teatrais e cinematográficos, de aposentadorias e pensões, de publicidade e de turismo em suas diversas modalidades, etc) é o contraponto à diminuição dos serviços públicos estatais, mas não do tamanho e dos gastos do aparelho do Estado (administração direta) na periferia do sistema. A metrópole sustenta a acumulação através dos investimentos em meios bélicos destrutivos (complexo industrial-militar do keynesianismo de direita, corrida espacial, etc) e na manutenção da infra-estrutura econômica do capital (a velha Agenda das obras públicas: construção de estradas, ruas, praças, edifícios públicos, usinas, etc).

Salários diferenciados para os funcionários públicos civis e militares, magistrados, professores, cientistas etc mantêm o aumento da demanda efetiva de bens de consumo de luxo, sem que haja a correspondente expansão ilimitada da produção de bens materiais, o que evita os conflitos mortais na esfera distributiva do capital. Crescimento da burocracia estatal, consumismo consentido para a camada superior da pequena burguesia, bens de salário e penúria para as demais classes sociais. Malthusianismo prático. Gente supérflua sustenta a reprodução do capital, mas não desenvolve as forças produtivas.

É a era da máquina liliputiana (máquina que produz apenas movimento), integrante do processo de circulação e que destaca o mundo do desenvolvimento autônomo e espetacular dos meios de transporte, de comunicação e de utilidades domésticas em escala avançada, em contraponto à máquina-ferramenta ou de trabalho (que executa e substitui as mãos e braços dos trabalhadores), diretamente associada ao processo de produção imediato (2). Mundo da obsolescência planejada, do desgaste irreprodutível e do consumo não-produtivo, que não repõe o valor do objeto produzido ao final de sua vida útil.

Enfim, é o mundo fetichista da economia de exportação de mercadorias e manufaturados dos países periféricos, do saldo positivo na balança comercial, das altas taxas de juros, da penosa tributação direta, indireta e regressiva (consumo) para os trabalhadores, da enorme dívida pública externa e interna e da ausência de soberania.

 

2)A Questão do Estado e da Federação - A Crise Financeira e a Dívida Pública

 

A forma engenhosa que assegura a acumulação de capital é o recurso à Dívida Pública, o Estado máximo para a fração do capital financeiro e mínimo ou inexistente para os trabalhadores.

No Brasil burguês republicano, concordo em que existem três períodos de configuração de formação da crise financeira e da dívida pública (3): o que vai da República Velha a 1964, em que se destaca a reprodução liberal do sistema político, com exceção para o regime de 1937 da Era Vargas; o do período de 1964 ao início de 1980; e dos anos 80 à atualidade.

Na primeira fase, a superprodução do café, aliada à grande depressão de 1929, reduziu sensivelmente as exportações e a capacidade de arrecadação estadual. O capital cafeeiro perdeu a hegemonia na condução do processo de acumulação. O capital industrial assume a ponta. Com a Revolução de 1930, inaugura-se uma nova etapa na formação do Estado burguês no Brasil, em que desponta um movimento de centralização política do poder, que antes era descentralizado nas mãos das frações burguesas regionais. Os problemas tornaram-se nacionais: é a Era Vargas, o velho neoliberalismo. O Governo amplia o espaço na condução da política econômica, cria Institutos de proteção às economias do café, do cacau, do pinho, etc. Implanta-se o Ministério do Trabalho, da Educação, da Saúde Pública e da Indústria e Comércio, criam-se empresas estatais e comissões executivas para atuar em diversas áreas. Destaco a Comissão de Estudos Financeiros e Econômicos dos Estados e Municípios para estudar a situação das finanças estatais e propor normas de reformulação do sistema tributário.

Sob nova hegemonia do capital industrial, o Imposto de Vendas e Consignações é a vedete da arrecadação nas unidades federadas com maior poder econômico, o que possibilita a ampliação da capacidade financeira de responder por uma política de gastos públicos de fomento ao capital privado. As unidades estaduais mais fracas economicamente dependiam das formas de articulação com a esfera federal para defender seus interesses e financiar investimentos para a área de infra-estrutura de suas economias regionais.

Com o Governo Kubitschek e a implantação do Plano de Metas deparou-se o Estado com a necessidade de grandes magnitudes de recursos, haja vista da implantação do setor de bens de capital no país, projeto que impunha o alargamento da arrecadação fiscal e de uma nova engenharia financeira para a República.

O programa desenvolvimentista do Governo Kubitschek elevou de forma decisiva os gastos públicos com infra-estrutura e de apoio aos investimentos privados, não obstante a inexistência de um esquema adequado de financiamento ou de formas de alavancar uma participação mais acentuada na repartição das receitas tributárias em favor da União.

Tal prática abalou as finanças dos Estados Federados, que aumentaram as alíquotas de IVC e de adicionais sobre o referido imposto. Foi o suficiente para se inaugurar uma era de contínuos déficits orçamentários, de emissão de moeda (inflação) e de expansão de crédito aos capitalistas. Os Municípios foram os mais prejudicados, pois perderam enorme margem de arrecadação ao longo do período e não se recuperaram.

Veio a crise no início dos anos 60. O padrão de acumulação tornou-se patológico e o aumento do déficit público transformou-se em entrave político e econômico para as instituições do Estado. Assume Jânio, mas vem a renúncia. João Goulart, o vice, toma posse numa atmosfera explosiva. Funda-se o parlamentarismo, mas de curta duração. O resultado do conflito das unidades federadas com a União, associada à inquietação dos movimentos sociais e da inflação, preparou o clima reacionário do Movimento de 31 de março de 1964.

Inicia-se a segunda fase. A centralização tributária foi absoluta e o Presidente da República, Castelo Branco, passa a ter competência privativa para deliberar sobre política orçamentária.O novo poder lança o Programa de Ação Econômica do Governo. O Executivo passa a contar com duas novas instituições poderosas: o Banco Central e o Conselho Monetário Nacional. Estes dois aparelhos passam a realizar gastos à revelia do Congresso Nacional e sem expressão na peça orçamentária: a conta movimento entre o Banco do Brasil e o Banco Central permite a ampliação de empréstimos ao setor privado sem limites determinados pelas normas bancárias; a institucionalização do orçamento monetário dá poder ao CMN para ampliar os gastos públicos e emitir títulos, sem controle parlamentar e com plena assunção das obrigações decorrentes.

Os Estados Federados, o DF e os Municípios tornaram-se reféns da atitude imperialista da União: houve esvaziamento total do orçamento fiscal como peça que refletisse as finanças básicas do Estado como um todo. À União, com amparo dos Atos Institucionais, coube a fatia maior da tributação e as unidades federadas tiveram cassada sua autonomia na forma de efetuar as suas despesas de capital. O Governo Central controlava as oligarquias regionais através do FPE e do FPM.

Acuados, os Estados Federados, o DF e os Municípios buscaram outras formas de financiamento. A alavancagem dos gastos estaduais e municipais passou a depender de recursos do capital financeiro externo e interno, mediante a monitoração da União, em nítida violação dos princípios básicos do federalismo: a consagração da prática de antecipação de receita orçamentária tornou-se refém do usurário capital produtor de juros.

A dívida pública assumiu então dimensão jamais vista e o calvário veio para ficar. Não demorou e o respectivo movimento de endividamento da administração direta do Estado contagiou a indireta (empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações), já que a liberdade gerencial de buscar recursos sem base fiscal foi a única forma de se garantir os investimentos.

O Tesouro Nacional passou a se responsabilizar pelas operações deficitárias da administração direta e indireta. A federalização das dívidas estaduais foi o passo seguinte, que arruinou ainda mais o país (4).

Os agentes financeiros estaduais foram lançados na crise e os balanços passaram a não mais refletir a realidade contábil dos fluxos financeiros: a situação tornou-se insustentável.

Os Planos Nacionais de Desenvolvimento do regime militar passaram a depender cada vez mais de empréstimos externos do capital financeiro internacional: as empresas estatais do país, com a contenção de seus preços e tarifas, foram descapitalizadas; a criação de instrumentos voltados para a eliminação do risco cambial pavimentou a estatização da dívida externa do setor privado. Os juros explodiram no mercado interno e a emissão de títulos para conter a expansão monetária pôs a Nação de joelhos.

Surge então a terceira fase, do começo dos anos 80 aos dias atuais. O colapso das finanças estatais e do setor privado é uma realidade avassaladora. A classe dominante se especializa na rolagem da dívida externa e interna, intimamente entrelaçadas; a securitização dos títulos tomou conta da política econômica nacional. Crises cambiais puseram em risco as metas de superávits primários e os patrimônios privados: falências e desemprego assolam o país.

A redemocratização do país em 1985 põe a nu outra vez os conflitos distributivos entre as unidades federadas: a necessidade de uma nova Assembléia Constituinte, em pleno Governo Sarney, tem por objetivo o conserto das finanças estaduais, mas os legisladores passam ao largo da questão, pois os debates se reduzem à reconstituição do pacto federativo sem preocupação de solução eficaz para os passivos orçamentários. Fracassam os Planos Cruzado I e II e o Plano Verão.

Com as eleições de 1989, surge a idéia da operação desmonte do Estado, das privatizações, do socorro aos bancos privados e do novo neoliberalismo: como contraponto vem a exigência de corte dos gastos públicos, mais arrocho salarial e ampliação da receita, mediante aumento da carga tributária sobre os trabalhadores. A década está perdida.

A eleição de Collor é o marco de reação da política burguesa a este estado de coisas. Lula foi o derrotado. No lado dos trabalhadores, desânimo, choro, desmoralização, cisões generalizadas, acusações mútuas, debandada, renúncia, liqüidacionismo, capitulação, misticismo filosófico nas universidades (pós-modernismo, nova roupagem do empirismo), em suma, pornografia ideológica ao invés de política consistente e combativa.

Collor inicia o Plano de Desestatização, mas não completa a tarefa: há reação dos cidadãos, que recorrem aos Tribunais; não demora e o PR é deposto. O Plano de Estabilização Econômica fracassa, a inflação corrói a economia do país e a corrupção levanta a sua cabeça altaneira: o patrimonialismo, o clientelismo e o fisiologismo na esfera do Estado ganham proporções espetaculares. A primeira Reforma Previdenciária lesa profundamente o direito dos trabalhadores. Mesmo após o “impeachment”, a saga de ataques à Constituição de 1988 passa a ser a tônica do discurso dos partidos burgueses, pois tornou o Brasil “ingovernável”.

O Governo de Itamar Franco debela a inflação com o Plano Real, mas vem grávido do bloco do poder (PFL/PSDB) que empobreceria o país em proporções alarmantes. A ideologia do bloco é neoliberal e prega a utopia reacionária da racionalidade do mercado e de suas soluções milagrosas.

A eleição de FHC traz à tona as privatizações criminosas, o PROER, o PROES, a desnacionalização, a desindustrialização, o aumento vertiginoso do desemprego, da corrupção e dos índices de criminalidade e exclusão social.

Vem à tona o Plano Diretor de Reforma do Estado (5). O Ministro Bresser Pereira distingue os quatro setores do novo Estado burguês no Brasil: a) o Núcleo Estratégico constitui a administração direta que formula políticas públicas, legisla e controla a sua execução, composto pelos três poderes estatais; b) o Setor de Atividades Exclusivas, onde são prestados serviços que só Estado pode realizar, como previdência básica, educação básica, segurança entre outros; c) o Setor de Serviços Não-Exclusivos, onde o Estado atua de forma simultânea com outras organizações públicas não-estatais, como as universidades, hospitais, centros de pesquisa, museus, parques, etc; é o terceiro setor das “organizações sociais” e das “sociedades civis de interesse público” e da era dos “termos de parceria” com ONG´s e instituições filantrópicas na execução de políticas “sociais”; e, finalmente, d) o Setor de Bens e Serviços para o Mercado, como as empresas não assumidas pelo capital privado (companhias de luz, água e água), mas submetidas a regulamentação e fiscalização rígida. Para o Núcleo Estratégico o Governo propõe um mix de administração burocrática e gerencial; nos demais, apenas a administração gerencial, que se estabelece mediante controle pactuado em “contratos de gestão” com o Poder Executivo.

Esta ideologia é social-liberal e se diz intermediária entre o Estado social-democrata tradicional (desenvolvimentista) e o neoliberalismo. Garantida a governabilidade, a preocupação se desloca para a “governança”, ou seja, a capacidade administrativa e financeira do Governo em atingir as suas metas ideológicas, ou seja, uma terceira modernização conservadora no Brasil, outra revolução passiva.

As práticas lesivas efetuadas no processo de privatizações durante o Governo FHC foram imortalizadas por Aloysio Biondi (6): 1) vendas de longo prazo, a serem pagas em prestações, dinheiro que não entrou no caixa do governo de imediato; quitação inexistente em face do valor dos editais; 2) estatização das dívidas sob responsabilidade para o Tesouro Nacional; 3) capitalização das empresas com recursos estatais antes da privatização, mas que não entrou no cômputo do preço dos editais de venda; 4) dispensa em massa antes da privatização, assunção unilateral de custos de aposentadorias e pensões, socialização de custos; 5) dividendos não recebidos pelo Governo antes das privatizações; 6) Governo deixou dinheiro em caixa para as compradoras movimentarem livremente; doação irresponsável; 7) perdas massivas na arrecadação de tributos, pois os novos compradores mascaram prejuízos ocorridos antes da privatização para se safar da arrecadação; 8) renúncia aos lucros das estatais, que não eram deficitárias; 9) prejuízos com empréstimos aos novos investidores, especialmente estrangeiros, que adquiriram as estatais através de subsídios generosos do BNDES e não cumpriram as metas previstas nos editais; 10) uso de “moedas podres” na arrematação dos leilões: títulos desvalorizados, “micados”, que serviram de meio de pagamento em 95% das privatizações nacionais.

L ula é eleito em 2002 e toma posse em 2003, mas este ano já está perdido.

 

3)O PPA DE 2004/2007

 

Chegamos, finalmente, ao PPA de 2004/2007 (7).

O PPA de 2004/2007 (“Plano Brasil de Todos”) é um projeto de lei de iniciativa do Executivo que até hoje não foi votado pelo Congresso Nacional: não pode ser proposto através de Medida Provisória desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 32 de 11/09/2001 (art. 62, § 1º, “d” da CR/88). Não obstante esta demora, já foram votadas a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária de 2004, que quantifica os valores em relação a programas e seus respectivos executores. No Brasil, todos os esforços se voltam para a votação da Lei Orçamentária Anual. A votação do PPA e da Lei de Diretrizes Orçamentárias ficam esvaziadas. A luta dos partidos políticos pela manipulação da distribuição dos fundos públicos é a tônica do Parlamento Federal.

O PPA foi instituído pela CF/88 (art. 165, § 1º). Antes da CF/88 não havia este tipo específico de regulamentação. O propósito principal do PPA é decidir quais serão os investimentos necessários do país para desenvolver a acumulação de capital (infra-estrutura), bem como a solvabilidade do pagamento do serviço da dívida pública.

O método de formulação do PPA de Lula é a materialização do princípio do “orçamento participativo” na administração federal (mediante os Fóruns de Participação Social), não adotado em Governos anteriores. Constitui uma velha bandeira ideológica do PT social-democrata, em que se consultam formalmente setores sociais a respeito da programação do plano em um prazo determinado (o limite de prazo dos debates ocorreu em 31/08/2003). Na realidade, não são estes setores que efetivamente decidem para onde irão os recursos arrecadados do Estado. Não há um órgão do Executivo com encargo exclusivo da formulação política do PPA.

Reitero que o PPA foi debatido, previamente, na Escola Nacional de Administração Pública (em abril de 2003), no Conselho de Desenvolvimento e Econômico Social (em junho de 2003) e nos Fóruns de Participação Social em todo o Brasil (em 26 Estados da Federação e no DF, com a presença de 4.738 pessoas, e mais representantes de 2.170 entidades da sociedade civil organizada). O PPA também foi objeto de revisão da Secretaria de Planejamento e Investimentos e da Secretaria Geral da Presidência da República, sem prejuízo da participação subordinada de outros setores da sociedade civil.

Trata-se de um plano conjuntural, indicativo, que visa evitar e prever crises econômicas, orientando o setor privado quanto aos riscos de investimentos em determinado período histórico. Visa regular o modo de acumulação do capital e tende, no máximo, a propor teses “desenvolvimentistas” à moda keynesiana.

Não significa a planificação da economia, socialista, com o objetivo de eliminar crises econômicas e atender as necessidades sociais, mediante a supressão paulatina do setor privado capitalista. Nesta o objetivo primordial é erradicar a anarquia da produção capitalista e devolver o controle direto e democrático do processo de produção para os produtores associados (trabalhadores).

Posto isto, destaco as bandeiras e os eixos ideológicos do PPA de Lula: inclusão social e redução de desigualdades sociais; crescimento com geração de emprego e renda, ambientalmente sustentável e redutor das desigualdades regionais; promoção e expansão da cidadania e fortalecimento da democracia.

São três os fundamentos básicos em que se baseia a política econômica do Governo Lula: contas externas sólidas (saldo positivo de reservas cambiais), consistência fiscal com pagamento sustentável da dívida pública e inflação baixa e estável.

O Governo pretende atingir, em síntese, os seguintes mega-objetivos: desenvolver o mercado interno com suporte de crédito e micro-crédito às micro, pequenas e médias empresas e aos trabalhadores, investir pesadamente em infra-estrutura econômica (substituir a malha rodoviária por outras vias de transporte, alcançar a auto-suficiência em petróleo, avançar na universalização das telecomunicações e incentivar a pesquisa, o desenvolvimento e produção de equipamentos de “software”, melhorar os programas de serviços sociais e de acesso à moradia, regular a oferta de alimentos mediante estoque governamentais, ampliar programas oficiais de transferência de renda aos necessitados, dar consolidação e articulação do Sistema Nacional de Inovação Tecnológica), revitalizar o MERCOSUL e expandir o mercado de consumo de massa com elevação dos salários reais, do salário mínimo e do seguro-desemprego, reduzir a taxa de juros, incentivar o turismo rural, ecológico e cultural, estimular o reflorestamento e o reflorestamento sustentável, aperfeiçoar a política de biossegurança, integrar as regiões econômicas, rever a Lei de Patentes em relação a fármacos e medicamentos, combater a biopirataria, apoiar o cooperativismo e associativismo, valorizar o servidor público e acabar com a corrupção, entre outras.

O Governo Lula quer um “círculo virtuoso” na economia da seguinte forma: aumento de rendimentos das famílias trabalhadoras/ampliação da base de consumo de massa/investimentos/aumento da produtividade e da competitividade/aumento de rendimentos das famílias trabalhadoras. Enfim, um sofisma neoclássico sob a aparência de “distribuição de renda” à moda keynesiana...

Para os reacionários como Bresser Pereira, esta fórmula não passa de “populismo econômico”, que significa consumo de massas no curto prazo e crise econômica aguda no médio ...

Em seguida, informo aos ouvintes as estatísticas do Anexo I do PPA: 10% dos mais ricos se apropriam da metade de toda a renda das famílias, enquanto os 50% mais pobres (não indica o critério do que é ser pobre; presumo ser o ganho mensal de um a dois salários mínimos) ficam com apenas 10% deste total; 51 milhões de brasileiros são considerados pobres (34% da população, 23 milhões de pessoas); 12% da população é de analfabetos totais e a escolaridade média é de cerca de seis anos de estudo; 59% das crianças da 4ª série (4 anos de escolarização) são analfabetas (não sabem ler) e mais de 1,6 milhão são capazes de ler apenas frases simples; 35 milhões de brasileiros têm menos de 4 anos de escolaridade, aprenderam a ler, mas não sabem interpretar; de acordo com o censo do IBGE em 2000, dos cerca de 3,2 milhões concluintes do ensino médio, 1,2 milhões entraram nas universidades, mas apenas 274 mil nas universidades públicas; o déficit na oferta de esgotos sanitários é de 21,7% dos domicílios urbanos e o de abastecimento de água é de 11,5%; 15 milhões de brasileiros não têm acesso à água e 39 milhões não têm esgoto sanitário; a maior parte do esgoto não é tratada: das 125 mil toneladas de lixo produzidas no país, 68,5% são de resíduos sólidos das grandes cidades; dos 2,9 milhões de resíduos industriais apenas 600 mil toneladas recebem tratamento adequado; 19.836 Km foi a área devastada na Amazônia entre agosto/1999 e agosto/2000; as exportações brasileiras são de 0,9% do total mundial em 2002; 2/3 da força de trabalho estão empregados nas micros, pequenas e médias empresas; 14% da população é de indigentes; 11,2 milhões de famílias têm uma renda familiar mensal “per capita” de até ½ salário mínimo (dentre estas 4,6 milhões têm uma renda de até ¼ do salário mínimo); 40% da população ocupada não está coberta por nenhum dos subsistemas de previdência social; 90% da população é usuária, de algum modo, do SUS; os índices de mortalidade materna são de 45,8 por 100.000 mil nascimentos vivos; há 29,6 óbitos infantis por mil nascimentos vivos (estes índices são mais graves no Nordeste); apenas 16% das crianças pobres usufruem de serviços de creches; o déficit habitacional é estimado, em 2000, em 6,6 milhões de novas moradias, concentrado nas áreas urbanas (81,3%) e na população com renda inferior a cinco salários mínimos (89,1%); 75,8% deste déficit se encontra nas regiões Nordeste e Sudeste; as tarifas dos transportes públicos subiram de 1995 a 2002 em cerca de 25% acima do IGP-DI; 80% dos jovens vivem nas periferias das cidades, sem qualquer infra-estrutura urbana; o Brasil é a 2ª população negra do mundo: são 76,4 milhões de pessoas, o que corresponde a 45% da população (Censo de 2000); 47% da população negra é pobre, enquanto 22% é branca; os jovens adultos negros têm dois anos a menos de estudo do que os jovens e adultos brancos; 18% dos negros são analfabetos e 8% são brancos; 43% das mulheres (2001) no Brasil declaram ter sofrido alguma forma de violência: sexual, doméstica, tráfico internacional e simbólica; 20% dos partos são de meninas e jovens entre 10 e 19 anos; nas profissões de nível superior, 52,8% dos homensrecebem mais de dez salários mínimos e apenas 30,1 de mulheres atingem este patamar social;33% da força de trabalho no campo é feminina: a maioria vive de economia de subsistência ou é doméstica; 38% do valor bruto da produção agropecuária e 77% dos empregos gerados no campo pertencem à agricultura familiar; dos 56.000 Km de estradas federais, 7.300 Km estão concedidos à iniciativa privada; 31% estão em bom estado, 27% regular e 42% em mau estado de conservação; 62% da carga transportada escoa pela malha rodoviária federal; 27.000 Km de ferrovias foram arrendadas, mas as oito concessionárias do setor não cumpriram as metas fixadas nos leilões de privatização; nas telecomunicações, as tarifas de telefonia fixa e móvel estão entre as mais latas do mundo; a taxa de homicídios subiu de 25,8 em 1998 para 75,4 em 2003 por 100 mil habitantes (os homicídios são a principal causa de mortalidade entre os homens e na faixa de 15 a 24 anos; o Brasil ocupa o 3º lugar do mundo neste índice de violência; o PPA pretende adotar o policiamento comunitário e a integração das polícias nas três esferas de Governo); os idosos representam 14,5 milhões de pessoas e vivem em sua maioria em condição de pobreza e são vulneráveis à violência doméstica; 24,5 milhões de brasileiros são pessoas portadoras de algum tipo de deficiência (altos índices de acidentes de trabalho); o trabalho escravo assola o campo e a tortura policial tem níveis alarmantes: 1.345 denúncias oficiais entre out/2001 e out/2002; a população índia é de apenas 365 mil pessoas (0,2% da população); dos municípios brasileiros, 35,7% não possuem vídeo-locadora, 65% não possuem lojas de discos, fitas e CDs, 64% não possuem uma livraria, 92,7% não possuem TV a Cabo, 81% não possuem cinema e 75% deles não possuem teatro ou casa de espetáculos, 73% não possuem museus e 19% não possuem uma biblioteca.

A impressão que se tem é que voltamos para os anos 50...

Já foram aprovadas 3 emendas constitucionais após a posse de Lula: a Emenda 40 excluiu a fiscalização direta dos bancos privados, mediante regulamentação por lei complementar, e extinguiu a possibilidade de regulamentação da taxa de juros à razão de 12% ao ano;a Emenda 41 aprofundou a Reforma Previdenciária de 1998 e taxou inclusive os inativos (na Mensagem do PPA se diz que os direitos previdenciários aumentaram a renda dos beneficiários e causou impacto na redução da pobreza); a Emenda 42 permite a perniciosa prática da antecipação de receita orçamentária com vinculação à arrecadação de tributos e prorroga a DRU até 2007.

O Governo Lula quer o Estado como “planejador”, definidor, regulador e fiscalizador dos setores de infra-estrutura; nada do Estado como investidor e empresário; nada de reestatizações ou encampações, pois dá continuidade ao desenvolvimento da co-gestão e de parcerias com as organizações da sociedade civil para implementar as políticas sociais; nada de revanches contra o modelo de privatizações do Governo FHC e de agências reguladoras nem de ameaças de CPI, não obstante as duas leis do setor elétrico que dão mais poderes ao Ministério das Minas e Energia e criam planejamento específico para o setor.

Já reformou o CP (trabalho escravo) e a LEP para controlar os traficantes nos presídios; já legislou em matéria de agricultura orgânica e concedeu agudos empréstimos à agricultura patronal e familiar no ano passado, sem prejuízo da rolagem das imensas dívidas agrícolas, proibiu os bingos e criou a Lei de Implementação de Projetos de Interesse Social.

Qual o futuro do Governo Lula?

Bem, o Governo não é de Lula ou do PT, pois é de coalizão e o seu programa é claramente capitalista. O PT desistiu de ser socialista já faz muito tempo. Basta ver a atual composição das forças políticas nos Ministérios, no Parlamento e na distribuição de cargos da enorme burocracia do Executivo. Coalizão não pressupõe hegemonia, mas subordinação às forças políticas organizadas do capital. Esta estratégia estrábica e irresponsável, a de uma Frente Popular mitigada, é a aplicação de uma técnica antiga e fracassada, uma herança do stalinismo europeu e que virou apanágio atávico social-democrata, mas que só agora conseguiu ter êxito no Brasil. Esta é uma novidade “transformista”, pois o PT nasceu junto ao movimento operário, mas chega ao Poder com um atraso histórico enorme, como um resultado da crise orgânica e da degenerescência disciplinadora de sua direção partidária.

O PT só foi eleito porque os partidos burgueses se dividiram, uma conseqüência da luta de frações da classe dominante e da falta de perspectiva diante do terrível empobrecimento do povo trabalhador no Brasil e na América Latina. O que restou para o PT e a Frente Popular mitigada? Simples: a gerência da crise econômica, mas quase sem margem de manobra política. Não se priorizou a conquista da maioria no Parlamento Federal, um reflexo mediato da autonomia alienada das bancadas parlamentares e dos diretórios burocráticos, bem como do distanciamento ativo de suas bases de massas. A opção pela aliança com os partidos direitistas reflete a fraqueza de sua estratégia, amparada apenas na letárgica guerra de posições, no eleitoralismo e na capitulação ideológica de seus quadros de liderança.

As bandeiras reformistas estruturais do reajuste do salário mínimo (acima de US$ 100,00!), da diminuição da jornada de trabalho (40 horas), da proteção contra a dispensa arbitrária no emprego, do antiarrocho dos impostos diretos e regressivos sobre os assalariados, da moratória da dívida externa, do reajuste real dos funcionários públicos federais, da reforma agrária e urbana, da tributação contra as grandes fortunas, dos investimentos em infra-estrutura etc, já foram adiadas em 2003. Dificilmente serão implementadas em 2004 ou mesmo até o fim do primeiro mandato.

Não basta dizer que a herança falimentar do Governo FHC impede as reformas. O calote ficou mais uma vez para o trabalhador: Monsieur Capital merece respeito. A habilidade para sair da crise econômica, sem arranhões na legitimidade política, é ônus de prova do PT “light”. As sanções disciplinares, os expurgos e a disseminação do medo pela direção não constroem o partido, só o debilitam. O liqüidacionismo autofágico assumiu proporções alarmantes em 2003, surpreendendo até mesmo a direção. O fracasso político da agremiação forçará, mais cedo ou mais tarde, a reestruturação dos partidos políticos no Brasil. O PT tornou-se um enorme partido burocrático, administrativo e consumido pelo Estado, o que o levou a se distanciar das massas e reprimir a política das bases.

Em mais de 20 anos de existência (9), o PT só realizou um Congresso (de 27 de novembro a 1º de dezembro de 1991): este fenômeno já demonstrava a aguda burocratização do partido e a divergência vertical entre a liderança pequeno-burguesa, estável, e a base proletária desorganizada e amorfa. O início do expurgo de suas tendências à esquerda (em 1990) e a liqüidação dos seus núcleos de base revelaram um processo vampiresco e de desfiguração programática e sociológica. O PT cedeu à direitização do espectro partidário pós-89 e jamais se recuperou do erro de viragem histórica.

Os novos e escandalosos expurgos de 2003 já selam de fato e de direito esta tendência. Um oportunismo adulto se cristalizou de forma irreversível no partido. Hoje, o PT declara oficialmente opção política pela social-democracia: é adepto do keynesianismo reformista (monetarismo envergonhado), do fordismo, do nacionalismo pequeno-burguês, do populismo, do cretinismo parlamentar e do neocorporativismo. Cresceu sem qualidade, amadureceu para o “realismo político” positivista e abortou de seu ideário as estratégias de emancipação social. Resiste a ser um partido social-democrata clássico, com maioria parlamentar e ampla atividade de massas, pois suas correntes hegemônicas temem a politização das bases e preferem a certeza e a segurança burocráticas. Predominam a filantropia, o revisionismo, o aliancismo transformista, o carreirismo, o pragmatismo, o arrivismo, a luta encarniçada pelos cargos partidários e estatais e a preocupação exclusiva com os vencimentos, enfim, a adaptação às estruturas opressivas existentes.

A “esquerda” do partido não gosta do que vê, é perseguida, está desorientada com os recentes expurgos, mas teme o desconhecido. Todos se esqueceram de que os gastos estatais com os custos de reprodução da força de trabalho são improdutivos e conflituosos, incompatíveis com a acumulação do capital financeiro produtor de juros. Com esta orgia de capital fictício, é irracional falar em Soberania. Se a razão é “o mercado”, a nebulosa entidade metafísica, a esfinge bate às portas do Governo Lula.

Termino meu discurso com este grave lembrete ao PT “light”: o Brasil não é a Bolsa, o FMI, o Dólar, os Bancos, as Multinacionais, o Estado-Maior, as Igrejas ou as Seitas Religiosas. O Brasil é a maioria proletária de sua população, os desempregados, os trabalhadores manuais e intelectuais, esgotados de tanto sofrer e de trabalhar para gente supérflua e de nada ter, fartos de sustentar demagogias inescrupulosas às custas de suas próprias existências. Não optar por eles, certamente, explodirá a cúpula partidária, que não conseguirá conter em definitivo os movimentos sociais reivindicativos.

Se Lula já declarou em público que na Reforma Política seu sonho é fundir o PT com o PSDB, o medo foi triplamente renovado e a esperança foi jogada na lata de lixo da história.

Aos trabalhadores restou ainda o velho brado: Liberdade! Liberdade!

 

Obras e textos consultados:

 

(1)Coriat, Benjamin – “Pensar pelo Avesso” – Ed. da UFRJ/Revan – RJ- 1994.

(2)Campos, Lauro – “A Crise Completa – A Economia Política do Não) ” – Boitempo Editorial – SP – 2001.

(3)Lopreato, Francisco Luiz Cazeiro – “O Colapso das Finanças Estaduais e a Crise da Federação” – Ed. Unesp/Unicamp – SP –2002.

(4)Oliveira, Fabrício Augusto de – “A Reforma Tributária de 1966 e a Acumulação de Capital no Brasil” – Ed. Oficina de Livros – 2ª Ed. – Belo Horizonte – 1991

(5)Revista da Procuradoria Geral do Estado de Minas Gerais – “O Pacto Federativo e os Contratos de Renegociação de Dívida entre a União e os Estados Federados” – Vol. 1, nº 1 – Jan/Jun/1999.

(6)Behring, Elaine Rossetti – “Brasil em Contra-Reforma – Desestruturação do Estado e Perda de Direitos” – Cortez Editora – SP –2003.

(7)Biondi, Aloysio – “O Brasil Privatizado” – Ed. Fundação Perseu Abramo – 3ª Reimpressão – SP – 1999.

(8)PPA de 2004/2007 in www.planobrasil.gov.br

(9)Partido dos Trabalhadores – “Resoluções e Congressos – 1979/1998” – Ed. Fundação Perseu Abramo – SP - 1998

 

Em 23/03/2004 (dia da palestra).