O Estado de Perigo como defeito do Negócio Jurídico


Porbarbara_montibeller- Postado em 17 abril 2012

Autores: 
CAVALCANTI, Lívio Coêlho

INTRODUÇÃO

Dentre as inovações trazidas com a entrada em vigor da Lei nº 10.406/02, destaca-se a inclusão do novo vício do negócio jurídico: o estado de perigo (art. 156).

Evidentemente que, como toda inovação no campo do Direito positivo, esse instituto deve ser objeto de estudos para traçar-lhe o conceito, os limites e a aplicabilidade, de modo a ensejar interpretação uniforme em território nacional, o que se enquadra plenamente no princípio da segurança jurídica.

Constituindo exceção ao princípio do “pacta sunt servanda”, que propõe a obrigatoriedade de cumprimento das cláusulas contratuais e que, durante muito tempo norteou o direito civilista brasileiro, notadamente pelo acentuado caráter individualista do Código Civil de 1916, o instituto deverá ser analisado com cautela, já que não se pode tornar a exceção em regra, sem que o próprio legislador tome essa posição.

1 DEFEITOS DO NEGÓCIO JURÍDICO

O negócio jurídico consiste em uma declaração de vontade, emitida com base no princípio da autonomia privada, com liberdade negocial e, por meio do qual, as partes disciplinam os efeitos que pretendem produzir. “O negócio jurídico é a manifestação de vontade tendente a criar, modificar ou extinguir um direito” (MONTEIRO, 2003, p. 219).

Com base no conceito acima, extrai-se facilmente que o principal elemento do negócio jurídico é a manifestação ou declaração de vontade. É o elemento estrutural, requisito de existência de um negócio jurídico.

No entanto, para a perfeita validade de um negócio jurídico, não basta a declaração pura e simples da vontade. É necessário que a mesma tenha sido idônea, consciente, em consonância com o verdadeiro querer do agente. Para Diniz (2004), a validade do negócio jurídico depende da manifestação de vontade e que esta haja funcionado normalmente.

Na lição de Pereira (2004, p. 513), “na verificação do negócio jurídico, cumpre de início apurar se houve uma declaração de vontade. E, depois, indagar se ela foi escorreita”.

Diante da própria inexistência da manifestação da vontade, v.g., quando a mesma é totalmente tolhida, não há que se falar sequer em existência do negócio jurídico.

No entanto, é possível que a manifestação de vontade tenha sido externada com “defeito na sua formação ou na sua declaração, em prejuízo do próprio declarante, de terceiro ou da ordem pública” (GONÇALVES, 2005, p. 359).

Quando o defeito se relaciona à formação ou declaração da vontade, que não corresponde ao querer do agente, seja por uma situação de ignorância, necessidade extrema ou por força de um fator externo, estamos diante de um vício de consentimento ou psíquico. O Código Civil de 1916 elencava como vícios do consentimento o erro, o dolo e a coação.

Quando a declaração de vontade corresponde ao íntimo desejo do agente, mas visa fraudar à lei ou a terceiros, estaremos diante dos vícios sociais. Esses vícios correspondem à fraude contra credores e a simulação.

O novel Código Civil, abandonando a concepção individualista em que foi elaborado o diploma antigo, e lastreando-se no tripé eticidade, sociabilidade e operabilidade, enunciou expressamente, em seu art. 156, um novo instituto capaz de fundamentar a anulação do negócio jurídico: o estado de perigo.

A maior parte da doutrina enumera esse vício dentre os vícios do consentimento. Consoante Venosa (2003, p. 424), “ao lado dos vícios de consentimento e deles muito se aproximando, coloca-se a lesão junto do estado de perigo, que não estavam no Código de 1916, mas é disciplinada pelo Código novo”.  

 

Parece-nos correto elencar o novo instituto entre os vícios do consentimento, pois o mesmo atinge a formação ou a declaração de vontade, distorcendo o consentimento que, em situação diversa, não se teria dado. Tal classificação restará melhor evidenciada ao longo do artigo.

2 DO ESTADO DE PERIGO

Para o início do estudo do tema, necessário a análise do texto legal e do contexto no qual está inserido. Enuncia o Código Civil:

Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.

Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias (ANGHER, 2007, p. 206).

Da simples leitura do artigo, é possível extrair a essência do instituto, que se baseia, sobretudo, na noção de necessidade. O necessitado assume a obrigação excessivamente onerosa como forma de evitar um dano.

2.1 HISTÓRICO

Lotufo (2003) ensina que a categoria dogmática do estado de perigo e do estado de necessidade é fruto do desenvolvimento da ciência jurídica da Europa Continental, notadamente da cultura germânica do período oitocentista, com profundas raízes na tradição medieval.

O Direito Romano, embora em experiência tênue, fixou as primeiras bases do instituto do estado de perigo como conhecemos hoje. Na época justiniana, o contrato celebrado em estado de perigo era considerado válido “se uma pessoa recebia alguma coisa por defender outra da violência dos inimigos, ou dos ladrões, ou do povo, já que esta última assumira a obrigação de dar alguma coisa em pagamento” (LOTUFO, 2003, p. 425). No entanto, aproveitar-se do estado de perigo poderia ser considerado o mesmo que ter incutido tal temor, podendo o negócio ser anulado.

Outra aplicação do instituto derivava da Lex Rhodia, relacionada a regras do Direito Marítimo, aplicáveis no âmbito da Bacia do Mediterrâneo. Partia do pressuposto de que entre os proprietários de cargas de um mesmo navio havia uma comunhão para assumir os riscos inerentes ao perigo do transporte (sinistros marítimos), sendo autorizado ao comandante da embarcação jogar ao mar mercadorias para aliviar o peso da embarcação. Pela comunhão de perigo, os proprietários das mercadorias salvas ficavam obrigados a indenizar os proprietários das mercadorias perdidas, proporcionalmente ao valor da embarcação e da mercadoria salva.

Lotufo (2003) aponta que nos diplomas civilistas germânico e austríaco observa-se expressa previsão somente quanto ao estado de necessidade. Na Itália, o Código Civil de 1942 já dispõe sobre as regras para rescisão do contrato em estado de perigo.

No Direito Brasileiro a fonte mais remota de alusão ao estado de perigo encontrava-se no Código Comercial, arts. 735 a 739, revogados pela Lei nº 542/86, e estava relacionada ao Direito Marítimo. Consoante informa Nery Junior e Nery (2005, p. 248), “o estado de perigo, como vício do negócio jurídico, era previsto no art. 319 do Projeto Coelho Rodrigues e, posteriormente veio a constar do art. 121 do Projeto Beviláqua”. A norma fora rejeitada pela comissão revisora do Código de 1916.

No anteprojeto do Código das Obrigações de 1963, que serviu de base para a elaboração do novel Código Civil, Caio Mário da Silva Pereira consignou ao lado da lesão, o estado de perigo, no capítulo referente aos defeitos do negócio jurídico.

2.2 CONCEITO

Pela leitura do texto legal, entende-se que ocorre o estado de perigo quando o agente, diante de situação de grave perigo conhecido pela outra parte, emite declaração de vontade para salvar-se ou pessoa próxima, assumindo obrigação excessivamente onerosa.

É, portanto, “a situação de extrema necessidade que conduz uma pessoa a celebrar negócio jurídico em que assume obrigação desproporcional e excessiva” (GONÇALVES, 2005, p. 392).

São exemplos trazidos pela doutrina, extraídos de Gagliano e Pamplona Filho (2004), Diniz (2004) e Gonçalves (2005): o indivíduo que está se afogando promete quantia exorbitante ao seu salvador; indivíduo abordado por assaltantes promete recompensa ao seu libertador; vítima de acidente de automóvel que assume obrigação excessivamente onerosa para que não morra no local do acidente; o doente, em perigo de vida, que paga honorários excessivos para o cirurgião atendê-lo.

Gagliano e Pamplona Filho comentam um exemplo corriqueiro e hodierno:

Não há como não se reconhecer a ocorrência deste vício no ato de garantia (prestação de fiança ou emissão de cambial) prestado pelo indivíduo que pretenda internar, em caráter de urgência, um parente seu ou amigo próximo em Unidade de Terapia Intensiva, e se vê diante da condição imposta pela diretoria do hospital, no sentido de que o atendimento emergencial só é possível após a constituição imediata de garantia cambial ou fidejussória (2004, p. 367).

A anulabilidade do negócio jurídico em razão do estado de perigo encontra fundamento na inexigibilidade de conduta diversa, ante a comparação dos dois males irremediáveis. Ainda, consagra o princípio da função social do contrato, probidade e boa-fé, verdadeira cláusula implícita de conteúdo ético e exigibilidade jurídica. Visa a uma equivalência material entre os contratantes, proibindo os contratos iníquos.

2.3 ELEMENTOS

Para que se configure o estado de perigo, necessária a observância de alguns requisitos.

Em primeiro lugar, como assevera Lotufo (2003, p.430) “é necessário que exista uma ameaça de dano grave à própria pessoa, ou a alguém de sua família, bem como pessoa estranha a seu círculo”. É necessário que a ameaça de dano recaia sobre essas pessoas. Assevere-se que em relação à pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá de acordo com as circunstâncias de cada caso.

É irrelevante que o dano tenha sido provocado pela própria vítima ou por terceiro, podendo originar-se de ação humana voluntária ou involuntária ou acontecimento natural.

Para a aferição da gravidade do dano, o juiz não deve levar em conta tão somente o padrão do homem médio, devendo perquerir todas as circunstâncias que possam influir na gravidade do estado de perigo, tais como sexo, idade, condição de saúde, dentre outras.

A ameaça do grave dano deve ser atual, pois é a atualidade do dano que exerce a pressão psicológica sobre o indivíduo e o força a escolher dentre os dois males: o do grave dano, ou da assunção de negócio jurídico em condições excessivamente desvantajosas. Segundo Gonçalves (2005, p. 397), “se não tiver essa característica inexistirá estado de perigo, pois haverá tempo para o declarante evitar a sua consumação, sem ter de, pressionado, optar entre sujeitar-se a ele ou participar de um negócio em condições desvantajosas”.

No tocante à atualidade, também é apto a anular o negócio jurídico a declaração manifestada na hipótese em que a pessoa julga estar sob grave perigo (estado de perigo putativo). Isso ocorre pelo fato de que o fundamento da anulação é a diminuição da liberdade de contratação do indivíduo, ou seja, o vício no consentimento expressado. Logo, o dano não precisa ser concreto.

Temos ainda que o estado de perigo deve ser o motivo determinante da manifestação de vontade. Com efeito, deve haver um nexo de causalidade entre o perigo e a manifestação da vontade. Para Gonçalves (2005, p. 397), a “vontade deve se apresentar distorcida em conseqüência do perigo de dano”. A vítima do dano, por desconhecê-lo, ou por não imaginar a extensa gravidade do dano ao celebrar um negócio, não poderá requerer a anulação do negócio por esse fundamento, pois não foi o motivo determinante da declaração de vontade. A vontade deve se apresentar distorcida em conseqüência do perigo do dano.

A lei exige, para que se configure o estado de perigo, o conhecimento do dano pela outra parte. É o que alguns doutrinadores chamam de dolo de aproveitamento, caracterizador da má-fé. Deve ter em vista que a boa-fé se presume, e a má-fé deve ser comprovada. Desconhecendo o perigo de grave dano, o negócio jurídico não deverá ser anulado com fundamento no estado de perigo. O que o Código veda é o enriquecimento sem causa.

Por fim, é necessária que a obrigação assumida seja excessivamente onerosa. Essa onerosidade deve ser analisada de forma objetiva e deve ser concomitante à celebração do negócio. Se a obrigação assumida for razoável, o negócio deve ser considerado válido.

2.4 EFEITOS DO ESTADO DE PERIGO

Consoante dispõe o art. 178, II do Código Civil, é anulável o negócio jurídico celebrado em estado de perigo no prazo de quatro anos a partir de sua celebração. Trata-se, indubitavelmente, de prazo decadencial.

O Código Civil brasileiro não prevê compensação para aquela parte que prestou o serviço. Com efeito, a doutrina critica a rigidez da norma que enuncia a pura e simples anulação do negócio jurídico, sem a possibilidade de sua conservação, como pode ocorrer na lesão, consoante o parágrafo segundo do art. 157. De fato, seria muito mais recomendável a tentativa de continuidade do negócio, à luz do princípio da segurança jurídica e da estabilidade dos negócios.

Alguns atribuem o rigor da lei ao fato de que a parte que não a vítima agiu com o dolo de aproveitamento, ou seja, agiu de má-fé ao se beneficiar do temor do declarante.

Para outros, a impossibilidade de suplementar a obrigação para validar o negócio decorre da natureza da prestação e da contraprestação:

Ao conceito dado pela norma comentada, pode-se acrescentar a obrigação assumida por aquele que se encontra em estado de perigo é sempre de dar ou de fazer, e a contraprestação será sempre de fazer. Essa é a razão pela qual não se pode suplementar a contraprestação para validar o negócio. A oferta de quem se encontra em estado de perigo não vincula, pois a manifestação de vontade, nesse caso, é viciada. Em outras palavras, a simples oferta vicia o negócio (NERY JUNIOR e NERY, 2005, p. 248).

Em que pese a qualidade de seus defensores, não compartilhamos a interpretação estanque da norma jurídica. À luz dos princípios constitucionais citados, deve-se oferecer a possibilidade de dar continuidade ao negócio jurídico, mormente naquelas situações em que o desfazimento do mesmo importaria em enriquecimento sem causa da vítima.

Ora, se de um lado o ordenamento invalida o negócio decorrente de estado de perigo, também o faz em relação ao enriquecimento sem causa. A solução a esse aparente conflito seria a aplicação do parágrafo segundo do art. 157 do Código Civil, segundo o qual o negócio poderá ser mantido ante o oferecimento de suplemento suficiente ou, se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.

Nesse exato sentido tem se posicionado o Conselho da Justiça Federal, ao aprovar o enunciado nº 148 da III Jornada de Direito Civil, com o seguinte verbete: “Ao ‘estado de perigo’ (art. 156) aplica-se, por analogia, o disposto no § 2º do art. 157”.

2.5 JURISPRUDÊNCIA SOBRE O ESTADO DE PERIGO

Abaixo, elencamos algumas ementas de decisões judiciais que reconheceram ou afastaram, no caso concreto, a ocorrência do estado de perigo:

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. CHEQUE. DESPESAS MÉDICO-HOSPITALARES. ESTADO DE PERIGO. ENTIDADE FILANTRÓPICA. Comprovado, de forma inequívoca, o vício de consentimento decorrente do estado de perigo do paciente, impõe-se o decreto de nulidade do título executivo. Apelação improvida. (Apelação Cível Nº 70038758116, Décima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Bayard Ney de Freitas Barcellos, Julgado em 14/12/2011)

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. ESTADO DE PERIGO. REQUISITOS PARA A CONFIGURAÇÃO. HOSPITAL. 1. De acordo com o disposto no art. 156 do Código Civil, para a configuração do estado de perigo, é necessária a presença dos seguintes requisitos: a) necessidade de salvar-se ou a pessoa de sua família; b) atualidade do dano; c) obrigação excessivamente onerosa, e; d) conhecimento do perigo pela outra parte. 2. No caso específico dos autos, não é possível considerar como excessivamente onerosa a obrigação. Também não se pode falar em aproveitamento da situação de necessidade por parte do hospital, que apenas estava cobrando pelos serviços realizados. 3. Não havendo defeito no negócio jurídico mantido entre as partes, a sentença merece ser reformada, no sentido da improcedência dos pedidos da inicial. Apelo provido. (Apelação Cível Nº 70011372141, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Dálvio Leite Dias Teixeira, Julgado em 01/09/2005)

Ementa: AÇÃO DE COBRANÇA. EQUIPAMENTOS MÉDICO-HOSPITALARES. ALEGAÇÃO DE ESTADO DE PERIGO. Aquisição, pelos réus, de equipamentos necessários à realização de intervenção cirúrgica à qual se submeteu o primeiro demandado. Alegação de estado de perigo. Ausência de onerosidade excessiva. Interpretação do art. 156, CCB. Falta de prova de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da autora. Ação improcedente. Negaram provimento. (Apelação Cível Nº 70039241252, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Rafael dos Santos Júnior, Julgado em 13/09/2011)

ADMINISTRATIVO. ANISTIA POLÍTICA. TERMO DE ADESÃO. RENÚNCIA A OUTRAS PRETENSÕES PECUNIÁRIAS. AUSÊNCIA DE PROVA DE COAÇÃO OU DE ESTADO DE PERIGO. BENEFÍCIO INDIRETO. AUSÊNCIA DE DIREITO.

1. Firmado o termo de adesão não cabe à autora, anistiada política, questionar os valores percebidos a título de indenização, quer no tocante ao montante mensal da reparação econômica, quer no que tange aos atrasados.

2. Nada nos autos justifica o "fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens", exigido pelo art. 151 do Código Civil para configuração da coação. Não há, igualmente, provas de que o Estado conhecia a situação de saúde da filha da autora, a fim de se enquadrar a hipótese no conceito de estado de perigo (art. 156, CC).

3. O art. 14 da Lei n. 10.559, de 2002, assegura aos anistiados "os benefícios indiretos mantidos pelas empresas ou órgãos da administração pública a que estavam vinculados quando foram punidos". Entretanto, não há notícia de que a entidade à qual se vinculava a autora disponibilize aos seus servidores o plano de saúde ora pretendido.

4. Apelação improvida.

(PROCESSO: 200983000101038, AC504078/PE, DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO DE BARROS E SILVA (CONVOCADO), Primeira Turma, JULGAMENTO: 14/07/2011, PUBLICAÇÃO: DJE 22/07/2011 - Página 69)

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO MONITÓRIA. DESPESAS COM INTERNAÇÃO E TRATAMENTO HOSPITALAR. CONFIGURAÇÃO DO ESTADO DE PERIGO (ARTIGO 156 DO CÓDIGO CIVIL) PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. DECLARAÇÃO PARCIAL DE NULIDADE DA OBRIGAÇÃO.  IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA Nº 7/STJ.

1. Não há falar em negativa de prestação jurisdicional pelo fato de o Tribunal de origem ter decido, de forma fundamentada, em sentido contrário às pretensões do recorrente.

2. O estado de perigo, nos termos em que definido pelo artigo 156 do Código Civil ("Configura-se estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa") restou demonstrado no caso concreto, conforme assentado no acórdão. Rever tal entendimento demandaria o reexame do contexto fático-probatório, procedimento vedado na estreita via do recurso especial, a teor da Súmula nº 7 desta Corte Superior.

3. Negócio jurídico anulado pelo Tribunal de Justiça apenas na parte em que foi considerado excessivamente oneroso.

4. Agravo regimental não provido.

(AgRg no Ag 830.135/PR, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 01/03/2012, DJe 07/03/2012)

Percebe-se da seleção acima, que os Tribunais pátrios comportam-se de forma bastante rigorosa ao analisar a efetiva ocorrência dos requisitos que configuram o estado de perigo, os quais dependem de robusta comprovação tanto da situação de extrema necessidade, como da excessiva onerosidade da obrigação assumido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito, baseado no princípio da autonomia da vontade, valoriza a celebração de negócios jurídicos livres, condenando qualquer interferência na formação do consentimento dos contratantes, razão pela qual possibilita o reconhecimento de nulidade em contratos, decorrentes de vícios da vontade.

Dessa sorte, busca o legislador preservar os interesses daqueles que são forçados a celebrar um contrato, assumindo obrigação excessivamente onerosa, porém necessária para o seu próprio salvamento ou de pessoa próxima ou de desconhecidos, prescrevendo a anulabilidade do negócio jurídico no prazo de quatro anos contados de sua celebração.

A interpretação literal do disposto no art. 156 do Código Civil levaria à conclusão de que no estado de perigo, diante do dolo de aproveitamento, ficaria impossibilitado o aproveitamento do negócio jurídico mediante a suplementação do negócio ou redução do proveito do beneficiário.

No entanto, asseverou-se a necessidade de interpretar o estado de perigo consoante os princípios constitucionais e o tripé principiológico sobre o qual se assenta o novel diploma civil.

Diante disso, não se pode negar a afronta à segurança jurídica e a boa-fé de terceiros que causaria a eventual anulação do negócio, sem a possibilidade de suplementação ou de redução do proveito. Ainda, não se pode olvidar que, a depender da situação, a anulação poderia resultar em enriquecimento sem causa, o que é rechaçado, de um modo geral, pelo ordenamento jurídico, inclusive em sede de Direito Público[1].

Com efeito, embora parte da doutrina não admita, entendemos a necessidade de se aplicar o §2º do art. 157 do Código Civil ao estado de perigo, desde que seja possível e socialmente recomendável, podendo a parte beneficiada elidir a anulação mediante a suplementação ou redução de seu proveito.

Consoante apontado neste artigo, o Conselho da Justiça Federal, através dos enunciados firmados na III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, corrobora com esse entendimento, afirmando, ainda, a necessidade do magistrado proceder, sempre que possível, a revisão do contrato, em detrimento de invalidação.

REFERÊNCIAS

ANGHER, Anne Joyce (Org.).Vade Mecum acadêmico de direito. 4. ed. São Paulo: Rideel, 2007.

CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. III Jornada de Direito Civil: enunciados de ns. 138 a 271. Disponível em: <www.jf.gov.br >. Acesso em 10 set. 2007.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. (v. 1).

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. (v. 1).

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. (v. 1).

LOTUFO, Renan. Código civil comentado: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2003. (v. 1).

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 39. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. (v. 1).

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. (v. 1).

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. (v. 1).

Notas:

[1] Exemplo disso é a Súmula nº 363 do Tribunal Superior do Trabalho.