"O envio de cartão de crédito, sem solicitação do consumidor, como prática abusiva"


PorLucimara- Postado em 15 maio 2013

Autores: 
Neto, Oldack Alves da Silva

 

Introdução

 

Busca-se, por meio do presente artigo, tecer breves considerações acerca das práticas abusivas constantes do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, em especial aquela consistente no envio ou entrega de produtos sem solicitação prévia (inciso III), mormente quando consubstanciada no envio de cartão de crédito ao consumidor.

 

Analisar-se, ainda, em linhas gerais, a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça que considerou prática abusiva o envio de cartão de crédito, ainda que bloqueado, à residência do consumidor sem prévia e expressa solicitação.

 

A consagração da boa-fé objetiva e a vedação de práticas abusivas

 

O Código Civil de 2002 promoveu uma verdadeira alteração principiológica do direito privado, em relação aos ditames básicos que constavam na codificação anterior, buscando valorizar a eticidade, a socialidade e a operabilidade, princípios apontados como regramentos fundamentais da atual ordem privada por Miguel Reale[1].

 

No que concerne especificamente ao princípio da eticidade, uma das grandes inovações trazidas pelo atual Código Civil foi a previsão expressa do princípio da boa-fé (ou boa-fé objetiva), com a valorização de condutas éticas, a exemplo dos seguintes dispositivos:

 

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

 

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

 

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

 

No entanto, antes mesmo da entrada em vigor do Código Civil de 2002, a boa-fé objetiva já havia sido contemplada no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) no seu artigo 4º, inciso III, in verbis:

 

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

 

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

 

Na verdade, na intepretação da cláusula geral da boa-fé objetiva, deve-se levar em conta o sistema do Código Civil e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos, como é o caso do Código de Defesa do Consumidor, que não mais deve ser considerado um microssistema jurídico totalmente isolado do Código Civil, em evidente aplicação da tese do diálogo das fontes[2].

 

Em prestígio à boa-fé objetiva, o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 39, elencou um rol exemplificativo de condutas vedadas ao fornecedor de produtos ou serviços, denominando-as de práticas abusivas.

 

Sérgio Cavalieri Filho[3] entende por práticas abusivas “ações ou condutas do fornecedor em desconformidade com os padrões de boa conduta nas relações de consumo. São práticas que, no exercício da atividade empresarial, excedem os limites dos bons costumes comerciais e, principalmente, da boa-fé, pelo que caracterizam abuso de direito, considerado ilícito pelo art. 187 do Código Civil. Por isso, são proibidas”.

 

Ainda a respeito das práticas abusivas, Rizzato Nunes[4] acrescenta que “uma vez existentes, caracterizam-se como ilícitas, independentemente de se encontrar ou não algum consumidor lesado ou que se sinta lesado. São ilícitas em si, apenas por existirem de fato no mundo fenomênico”.

 

O envio de cartão de crédito sem solicitação e o posicionamento do STJ

 

O artigo 39, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor estabelece ser vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: “III – enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço”.

 

A respeito da hipótese mencionada, Sérgio Cavalieri Filho[5]assevera que “o exemplo mais comum e abusivo é o envio de cartão de crédito não solicitado, sendo constantes os casos levados à Justiça em que o consumidor não só foi cobrado indevidamente, como ainda teve seu nome lançado no rol de inadimplentes”.

 

O Superior Tribunal de Justiça já vinha se posicionando nesse sentido, entendendo que o envio do cartão de crédito, sem solicitação do consumidor, poderia gerar dano patrimonial, em razão, por exemplo, da cobrança indevida de anuidades, ou moral, em virtude do incômodo ocasionado pelas providências para cancelamento do cartão. Vejamos:

 

RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ENVIO DE CARTÃO DE CRÉDITO NÃO SOLICITADO E DE FATURAS COBRANDO ANUIDADE. DANO MORAL CONFIGURADO. I - Para se presumir o dano moral pela simples comprovação do ato ilícito, esse ato deve ser objetivamente capaz de acarretar a dor, o sofrimento, a lesão aos sentimentos íntimos juridicamente protegidos. II - O envio de cartão de crédito não solicitado, conduta considerada pelo Código de Defesa do Consumidor como prática abusiva (art. 39, III), adicionado aos incômodos decorrentes das providências notoriamente dificultosas para o cancelamento cartão causam dano moral ao consumidor, mormente em se tratando de pessoa de idade avançada, próxima dos cem anos de idade à época dos fatos, circunstância que agrava o sofrimento moral. Recurso Especial não conhecido.

 

(REsp 1.061.500/RS, Rel. Min. SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, DJe 20/11/2008) [original sem grifo]

 

Contudo, o mesmo órgão prolator da decisão acima mencionada – Terceira Turma do STJ –, avançando na proteção do consumidor, passou a entender que o envio de cartão de crédito, ainda que bloqueado, sem pedido pretérito e expresso do consumidor, caracteriza prática comercial abusiva. Eis a ementa do julgado:

 

RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ENVIO DE CARTÃO DE CRÉDITO NÃO SOLICITADO. PRÁTICA COMERCIAL ABUSIVA. ABUSO DE DIREITO CONFIGURADO. 1. O envio do cartão de crédito, ainda que bloqueado, sem pedido pretérito e expresso do consumidor, caracteriza prática comercial abusiva, violando frontalmente o disposto no artigo 39, III, do Código de Defesa do Consumidor. 2. Doutrina e jurisprudência acerca do tema. 3. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

 

(REsp, 1.199.117/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, Decisão 18/12/2012)

 

Entendamos o caso em exame.

 

Na origem, ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo foi julgada procedente, em primeiro grau, para condenar as empresas rés, locadora de vídeo e administradora de cartão de crédito, a se absterem de emitir, enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, cartões de crédito “ou outro tipo de produto que infrinja o disposto nos artigos 6º, IV e 39, III, do CDC”, bem como a “indenizarem os consumidores pelos danos morais e patrimoniais causados em razão do envio dos cartões de crédito, sem solicitação prévia”.

 

A sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao argumento de que o envio de cartão de crédito bloqueado ao consumidor, que pode ou não solicitar o desbloqueio e aderir à opção de crédito, constitui proposta, e não oferta de produto ou serviço, esta sim vedada pelo art. 39, III, do CDC.

 

Sustentava o voto condutor do acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que tal prática “não traz nenhum prejuízo ou dano patrimonial ao cliente, que recebendo o cartão tem a opção de: a) continuar com o seu antigo cartão; ou, b) aderindo à proposta do cartão de crédito, solicitar o seu desbloqueio ou não”. É que se trata de “mera proposta de contrato, cuja adesão pode ou não ser formulada pelo consumidor, constituindo essa prática mera oferta de serviço sem qualquer dano ou prejuízo patrimonial”.

 

Ou seja, o tribunal a quo – cujo acórdão viria a ser reformado – diferenciava a hipótese em que o cartão de crédito é enviado bloqueado ao consumidor, não gerando qualquer tipo de débito automático nem exigindo qualquer ato para cancelá-lo, daquela em que o envio do cartão de crédito, sem solicitação do consumidor, acabava por lhe gerar dano patrimonial, em razão da cobrança de anuidades, ou moral, em virtude do incômodo ocasionado pelas providências para cancelamento.

 

Como se denota da ementa acima transcrita, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do REsp 1.199.117, reformou o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, considerando prática abusiva o envio de cartão de crédito, ainda que desbloqueado, sem pedido pretérito e expresso do consumidor.

 

Por esclarecedor, cumpre transcrever trecho do voto do Ministro relator:

 

“(...)

 

Assim, impõe-se seja reconhecida a abusividade da conduta daadministradora com o simples envio do cartão de crédito, sem pedido pretérito e expresso do consumidor, pois tutela-se os interesses dos consumidores em geral no período pré-contratual, evitando a ocorrência de abuso de direito na atuação dos fornecedores no mercado de consumo com esse tipo de prática comercial, absolutamente contrária à boa-fé objetiva.

 

Esta Turma, ainda que analisando situação diversa, consistente na caracterização de dano moral individual em caso em que o cartão foi enviado desbloqueado para pessoa idosa e ensejou o envio de faturas, assentou entendimento condizente com a fundamentação supra, qual seja, o de que o simples envio de cartão de crédito não solicitado configura ato ilícito, incidindo na conduta vedada pelo artigo 39, III, do CDC.

 

(...)

 

No presente caso, embora o cartão tenha sido enviado bloqueado, a situação vivenciada pelos consumidores, especialmente pessoas humildes ou idosas, é semelhante, pois pode gerar uma desnecessária angústia.

 

Enfim, impõe-se o parcial provimento do recurso especial, restabelecendo-se os comandos da sentença.

 

Ante o exposto, voto no sentido de dar provimento ao recurso especial para restabelecer os comandos da sentença.

 

É o voto”. [original sem grifo]

 

Conclusão

 

Não se pode afirmar que o entendimento consagrado no julgado em exame (REsp 1.199.117/SP) reflete o posicionamento majoritário do Superior Tribunal de Justiça, tampouco que o próprio órgão prolator – terceira turma daquela Corte – o adotará doravante.

 

Contudo, a verdade é que o teor do mencionado decisum, em evidente avanço na proteção do consumidor, consagra a tutela do interesse dos consumidores já no período pré-contratual, visando evitar a ocorrência de abuso de direito, o que prestigia os deveres anexos de proteção, informação e lealdade, que decorrem da boa-fé objetiva.

 

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