O Direito das Gentes e a efetividade dos direitos fundamentais de acordo com a concepção de Pontes de Miranda


Porwilliammoura- Postado em 23 abril 2012

Autores: 
PINHEIRO NETO, Othoniel

O Direito das Gentes e a efetividade dos direitos fundamentais de acordo com a concepção de Pontes de Miranda

O direito das gentes contém princípios (normas jurídicas) que são produtos de valores eleitos pelas nações ao longo dos séculos, devendo sempre orientar a criação do direito pelos legislativos estatais e alavancar a efetividade das normas supra-estatais.

RESUMO: O propósito do presente trabalho é apresentar a efetividade do direito das gentes como alternativa para efetivar a supraestatalidade dos direitos fundamentais. Tal instituto contém uma série de normas que vem da tradição dos povos e que são superiores e anteriores aos próprios Estados soberanos. Nesse contexto, a inseparável tríade de Pontes de Miranda, Democracia, Liberdade e Igualdade, mostra-se como elemento indispensável para a efetivação do direito das gentes em todo o globo terráqueo. Desde a década de 40, o jurista alagoano já defendia com maestria a aplicabilidade do direito das gentes e dos direitos fundamentais supraestatais entre as nações. Portanto, de suma importância é o instituto, pois todo governo que se preze deve obedecê-lo, sob pena de não praticar um bom direito e, consequentemente, ser derrotado.

PALAVRAS-CHAVE: Direito das Gentes - Pontes de Miranda – Supraestatalidade – Direitos Fundamentais


INTRODUÇÃO

Desde a década de 40, Pontes de Miranda já levantava a questão da defesa da supraestatalidade dos direitos fundamentais baseada no direito das gentes que, a princípio, pode ser conceituado como um ordenamento jurídico acima de todos os Estados “soberanos”, que banha e encobre os mesmos com seus valores dos quais nenhum deles pode se furtar. É o costume internacional consolidado que vem da tradição dos povos, não correspondendo necessariamente ao direito natural e aos tratados internacionais. Nessa esteira, o certo é que, atualmente, para o bem dos direitos fundamentais, o tema parece ganhar atenção especial do mundo jurídico.

Na visão de alguns teóricos do século XVIII, o direito das gentes ganhou dimensão não só entre as gentes, mas entre as organizações políticas estatais e de uma jurisdição aplicada aos negócios e à condução das nações e dos soberanos. Um dos teóricos da época, Vattel, destaca que o “Direito das Gentes é a Ciência do Direito que tem lugar entre as nações ou Estados e das obrigações que respondem a esse Direito.”[1] Dessa forma, o autor separava a lei natural dos homens e a lei natural dos Estados, sendo esta última a que ele chamou de direito das gentes, que é o direito natural aplicado aos Estados ou às nações[2].

De acordo com a concepção de Pontes de Miranda, percebe-se que os direitos fundamentais são concepções estatais dentro das raias que aos Estados permite o direito das gentes[3], cabendo ao Estado somente organizar os direitos fundamentais já reconhecidos, sendo que o conceito de Estado somente poderá ser retirado do próprio costume internacional consolidado[4].

Nos dias atuais, o direito das gentes representa importante instrumento a ser efetivado contra o arbítrio dos governos despóticos, pois sua aplicação obrigatória se faz necessária nos Estados, impedindo movimentos contrários aos valores universais dos direitos fundamentais. Obsta, também, a prevalência do velho conceito de soberania baseado na força, onde o Estado tudo pode, justificando também que, onde somente há a força, não há o Direito. Destarte, saliente-se que tal sistema ainda é carente de uma maior efetividade, devido à falta de um aparelho coercitivo internacional e, também, por motivos culturais encontrados em alguns Estados, especialmente os islâmicos.

À vista dessas considerações preliminares, pretende-se, neste estudo, apenas tentar retratar um pouco da grandiosidade que a doutrina de Pontes de Miranda concede ao estudo do direito das gentes e dos direitos fundamentais supraestatais, tentando mostrar a grande importância que tem a histórica doutrina, para a efetivação dos direitos na modernidade, e como Pontes de Miranda estava muito à frente de seu tempo.


1 O DIREITO DAS GENTES E OS ESTADOS

O direito das gentes tem seu império jurídico em todos os povos do globo terráqueo. Até os locais que não pertencem ao território de um Estado são atingidos por essa força. Exemplo disso são as águas territoriais dos oceanos (que pertencem à comunidade dos Estados), que estão para os Estados assim como os jardins públicos estão para os cidadãos.

Desta sorte, sobressai verossímil que é do próprio costume internacional consolidado que surge a permissão jurídica de uma comunidade ser considerada Estado, sendo o conceito, para distinguir o que é Estado e o que não é, pertencente ao próprio direito das gentes. Ademais, é fácil perceber que há séculos já existiam regras comuns a todas as comunidades, levando-se à constatação de que o direito das gentes não foi produzido pelos Estados, sendo anterior a eles. Nesse sentido, apresenta-se oportuno invocar-se a lição abalizada de Pontes de Miranda:

Se descermos à análise mais profunda, vemos que, antes dos Estados propriamente ditos, conceitos de elaboração supra-estatal, já existiam regras entre as coletividades, de que provêm, ou a que sucederam os Estados. Por conseqüência, a transformação do direito acima delas, em direito das gentes, deve-se a fatores diversos, entre os quais, e principalmente, está a mesma realidade determinadora da transformação, que fez os Estados procederem de outras coletividades, ou sucederem a essas. Como quer que seja, não se pode dizer que os velhos Estados formaram a comunidade interestatal: a comunidade que se sobrepunha às coletividades de que procederam, ou a que sucederam os Estados. Portanto, o direito das gentes não é redutível à ordem jurídica produzida pelos Estados; não é, portanto, ordem jurídica posterior aos Estados[5].

Outro aspecto a se destacar é que o Estado, além de não ser o único meio exclusivo de revelação de normas jurídicas, também não é um criador arbitrário do direito, pois tem de obedecer ao direito das gentes, que é o responsável pela distribuição supraestatal de competências e que reconhece aos Estados competências legislativa, judiciária e executiva.

Interessante perceber que não é o poder de ditar suas regras que caracteriza o Estado, até por que todos os círculos sociais têm suas próprias normas. Nessa ótica, advirta-se, de plano, que o Estado surge evolutivamente de outros métodos sociais e de outras espécies de comunidades, que já tinham suas normas antes do aparecimento do Estado moderno.

Hodiernamente, o Estado tem sua regra interna maior: uma Constituição subordinada ao direito das gentes. Observe-se que um país desprovido dessa lei maior vai retirar a validade de suas normas do próprio direito das gentes, levando à fácil conclusão de que não é uma Constituição que institui e reconhece um Estado, mas o próprio costume internacional. Dessa forma, mesmo que as revoluções derrubem as Constituições dos Estados, ainda subsistirá o direito das gentes.

Nesse contexto, cada Constituição tem sua própria técnica de declarar os direitos consolidados pelo costume internacional, visto que tais institutos já se puseram anteriormente, tendo os Estados apenas que organizá-los da melhor forma que entender. Nesse sentido, eis as palavras de Pontes de Miranda:

A técnica das declarações de direitos é que muda. Se procederem do direito natural, ou não, é problema que não se deve levantar no direito constitucional. Antes, no direito das gentes, já se pôs. Sejam direitos naturais, ou não sejam, já no direito constitucional, se erguem diante do Estado, pela preeminência dos direitos das gentes, que – não obstante a sua imperfeição – é o direito humano, no alto grau de extensão.[6]

Portanto, forçoso repisar que o direito das gentes contém princípios (normas jurídicas) que são produtos de valores eleitos pelas nações ao longo dos séculos, devendo sempre orientar a criação do direito pelos legislativos estatais e alavancar a efetividade das normas supraestatais, tendo seu império banhando as relações entre o Estado e o indivíduo (eficácia vertical dos direitos fundamentais), assim como as relações dos indivíduos entre si (eficácia horizontal dos direitos fundamentais). Ademais, nota-se que os figurantes desse cenário são os Estados, que têm que respeitar as regras derivadas do processo costumeiro da elaboração de normas internacionais.

Doutra banda, importa consignar que Silva e Accioly não distinguem o direito internacional público e o direito das gentes, afirmando que ambos são “o conjunto de princípios ou regras destinados a reger os direitos e deveres internacionais, tanto dos Estados ou outros organismos análogos, quanto dos indivíduos.”[7] Todavia, esta pesquisa não segue esse posicionamento, pois se acredita que são institutos diferentes e que o direito internacional público está subordinado às normas costumeiras contidas no direito das gentes, levando a crer que toda e qualquer norma contida nos tratados internacionais também deve estar em harmonia com tais postulados.

Diante desse contexto, só é possível descartar a existência do direito das gentes, se só houvesse um único Estado, ou se os corpos sociais não tivessem contato entre si, razão pela qual a existência de Estados interligados pressupõe a existência do direito das gentes.


2 A RELATIVIZAÇÃO DA SOBERANIA ESTATAL

Desde a revolução francesa, observa-se certa relativização do conceito de soberania estatal, na medida em que o próprio Estado já foi criado limitado pelos direitos fundamentais das liberdades públicas, ou seja, desde seu surgimento, o Estado sempre esteve obrigado a respeitar certos direitos dos cidadãos, sendo tais direitos caracterizados como de primeira dimensão ou de primeira geração.

Nesse passo, é oportuno afirmar que Pontes de Miranda relativizou o conceito de soberania, preceituando que o direito das gentes tem a função de atribuir competências aos Estados, de forma que não é a soberania dos Estados que confere competência ao direito das gentes, como a sombra nada confere aos corpos. Portanto, aqui não há lugar para o conceito de força, pois ou a soberania deriva do direito, ou não pode existir.[8]

Registradas essas questões, percebe-se que todo esse conceito de força ilimitada surgiu devido a um antigo enfrentamento que o Estado tinha que exercer contra outros três antigos poderes, quais sejam, igreja, império e o poder feudal, porém, atualmente, não há mais justificativa técnica para a permanência desse embate, já que o Estado tornou-se o único poder dotado de coerção.

Calha salientar que a noção de soberania foi fortalecida devido ao caráter positivista que se deu ao direito ao longo de uma geração, sem esquecer que tal imposição se fazia necessária em uma época em que o que se pretendia com o positivismo era retirar o poder do rei e obrigá-lo a respeitar a lei, fazendo-o se curvar ao Direito[9]. Por outro lado, observou-se, com o passar dos séculos, que o exagero no exercício desse poder legal está criando um perigo: o absolutismo legal. Tal situação está perfeitamente retratada no Brasil, no princípio da legalitariedade[10], onde o inciso II do art. 5º da Constituição Federal, na verdade, diz, com outras palavras, que todo cidadão está sempre obrigado a fazer o que o legislador manda. Tudo isso, aliado ao fato de que as leis, mesmo as mais abusivas, presumem-se constitucionais. Doutra banda, saliente-se que não se quer aqui defender o absolutismo dos juízes. Defende-se uma produção do direito pelo Estado legislador, mas sem absolutismo, ou seja, um legislativo subordinado e dentro das raias que aos Estados permite o direito das gentes.[11]

Infelizmente, sobressai verossímil que o conceito de soberania atual tende a criar uma espécie de absolutismo que não pretende ser submisso ao direito das gentes, o que, entende-se, poderá ser perigoso e gerar instabilidade. Percebemos que os elementos do arbítrio e do cerceamento do império do direito das gentes sempre sairão derrotados na história humana, pois a tendência universalizante dessa corrente mundial e sua constatação no seio das sociedades tendem a fazer com que todos os Estados respeitem as normas supraestatais, quer queiram ou não. E é por isso que governos ditatoriais não permanecem por muito tempo.

Desta sorte, para Pontes de Miranda, o que pode existir é a possibilidade material das Nações fazerem prevalecer suas leis frente ao direito das gentes, mas possibilidade jurídica é outra coisa. Um país pode desrespeitar o direito das gentes, negando sua efetividade, mas jamais pode revogá-lo, pois os costumes internacionais consolidados estão acima dos Estados, fora de seu poder. Portanto, fácil constatar que é um dado real a relatividade dos poderes estatais diante do direito das gentes, principalmente as de direitos humanos. E qualquer construção social posterior ao surgimento do próprio homem, em que se cerceiam a liberdade, deve ser tratada como regressiva, anti-humana ou pré-humana[12].

Deveras forçoso apontar que as construções e divergências doutrinárias, acerca da falta de limitações dos poderes constituintes dos Estados, merecem atenção especial. Moraes entende que o poder constituinte originário é um poder ilimitado e autônomo, não estando limitado de forma alguma pelo direito anterior.[13]

Atualmente, a doutrina moderna vem rejeitando esse tipo de entendimento, prevalecendo a ideia de que esse poder possui limites em princípios supraestatais.[14]

Ainda sob esse enfoque, apresenta-se oportuno invocar-se a lição abalizada de Miranda, que descreve três categorias de limites ao poder constituinte originário: limites transcendentes (que dizem respeito aos imperativos do direito natural); limites imanentes (decorrentes da forma de Estado) e limites heterônomos (que dizem respeito às regras internacionais, incluindo aí o jus cogens que é o conjunto de regras internacionais de direitos humanos).[15]

Já Canotilho considera limites, ao poder constituinte originário, certos princípios de justiça e os princípios de direito internacional.[16]

Dirley da Cunha Júnior vê limitações, ao poder constituinte originário, através de princípios que correspondem aos valores prevalecentes de um contexto interno e internacional.[17] Nesse diapasão, é preciso destacar que também há limitações espaciais, temporais e ético-jurídicas à soberania.

Nesse mister, Pontes de Miranda ajudou a melhor compreender a questão da relatividade da soberania, através de um primoroso estudo em que ele denominou de “técnica da liberdade”. Para ele a liberdade não é o branco que não é regulado pelas leis, já que não é do Estado que surge essa liberdade, pois é somente a sociedade, e não o Estado, que concede ao cidadão o “sentir” a liberdade através dos campos de relações entre os indivíduos. Melhor dizendo, não é a própria sociedade, mas sim, as esferas jurídicas de outras pessoas (dentro do contexto social) que impõem os limites.[18]

Com efeito, nota-se a pouca participação que tem o Estado soberano na criação do direito à liberdade que, na verdade, brota das relações entre os indivíduos.

Ademais, em seu livro, Democracia, Liberdade, Igualdade, Os três Caminhos Pontes de Miranda, conceitua o Estado como “o conjunto de todas as relações entre os poderes públicos e os indivíduos, ou daqueles entre si.”[19]

Portanto, ao analisar a técnica da liberdade, percebe-se que seu exercício tem regramento acima do Estado e do cidadão e exige linhas supraestatais de legalidade,[20] já que, repita-se, a liberdade não vem do Estado, que só vai atuar como mero instrumento no exercício desse direito.

Ainda segundo Pontes de Miranda, nos dias atuais, é inconcebível a elaboração de Constituições que não contenham, ao mesmo tempo, regras de forma e regras de fundo. Sob esse enfoque, as regras de forma são aquelas que cuidam de como se cria a ordem do Estado; já as de fundo são as que “contém princípios que se assentaram para a vida social”. Dessa forma, a democracia é regra de forma e deve ser observada por todos os Estados, convivendo obrigatoriamente com a liberdade e a igualdade, que são regras de fundo, lembrando que nenhum desses elementos pode faltar.[21] Por essas razões, tudo isso tende a relativizar a ilimitada soberania estatal.