O desvio de finalidade da Justiça Gratuita: um critério caracterizador do uso abusivo


PorJeison- Postado em 24 outubro 2012

Autores: 
GALVÃO, Márcio Pirôpo.

 

Resumo: A Justiça Gratuita tem por fim promover o acesso dos hipossuficientes ao Poder Judiciário. Assim, quando utilizada por pessoas que carecem do “status” da hipossuficiência estamos diante do desvio de sua finalidade, um caracterizador do uso abusivo do direito.

Palavras-chave: justiça gratuita. desvio de finalidade. uso abusivo.

Sumário: Introdução. 2.- A finalidade da Justiça Gratuita. 3.- O desvio de finalidade: um critério que caracteriza a prática abusiva. 4.- A utilização abusiva da Declaração de Pobreza: 4.1.- Carta de Pobreza apresentada por parte que tem condições de arcar com as despesas do processo; 4.2.- Majoração da fortuna: Benefício mantido. 5.- Considerações finais.


 

1.- Introdução

Sabe-se que a Justiça Gratuita é um benefício de extrema importância para promover o acesso dos hipossuficientes ao Poder Judiciário.

Entretanto, contrário à sua finalidade, esse benefício vem sendo utilizado por pessoas que contam com recursos financeiros suficientes para arcar com os custos do processo.

Assim, este artigo visa instigar a análise e discussão do desvio da finalidade da Justiça Gratuita como um caracterizador da utilização abusiva do benefício.

2.- A finalidade da Justiça Gratuita 

O movimento de acesso à justiça aponta o aspecto econômico como um dos obstáculos que impedem, em virtude da pobreza, o acesso de muitas pessoas à justiça[1]. Em consonância com isso, Cappelletti também identifica as custas judiciais como uma dessas barreiras[2].

O benefício de litigar sem gastos busca dirimir essa barreira. Carlos Enrique Camps define que esse benefício tem por objetivo:

“la obtención, mediante un proceso de conocimiento abreviado – incidental – y con bilateralidad previa y plena, de una resolución judicial que exime de la obligación de pagar los costos judiciales a quien acredite tanto la carencia de medios suficientes para afrontar esa obligación como la necesidad de defender derechos ante los tribunales”[3].

No direito inglês, há um antecedente legislativo do ano de 1482 que estabelecia que toda pessoa pobre que tivesse que ingressar com uma demanda perante a justiça obteria os documentos necessários e seria acompanhado por procurador ou advogado que atuaria gratuitamente[4]. Constata-se que, desde a antiguidade, o benefício de litigar sem gastos persegue a mesma finalidade: o de promover o acesso das pessoas pobres à justiça.

É importante observar que não se exige a miserabilidade para a parte ter acesso gratuito à justiça. É necessário apenas que haja insuficiência de recursos. No Brasil, essa insuficiência é presumida, entretanto, passível de impugnação[5]. Apesar de a legislação brasileira não exigir a miserabilidade, a ideia originária do instituto não é de gratuidade total, mas a aplicação de um critério prudente e equitativo para evitar a desigualdade no âmbito judicial. Nesse sentido, a Corte Nacional Civil da Argentina também entende que o benefício deve ser concedido somente a quem necessita e na proporção correta, sendo que a concessão total deve ser a exceção[6].

Ao analisar a finalidade do benefício, fica bem claro que esse benefício tem o intuito de proteger o “pobre”. Numa ótica processual, pobre é toda pessoa que não pode satisfazer os gastos judiciais e se habilita para que possa fazer valer seus direitos perante os tribunais. Embora o instituto seja destinado a proteger o “pobre”, inusitadamente, pessoas que possuem recursos econômicos em abundância vêm sendo favorecidas ao litigar sem gastos mediante a simples apresentação da declaração de pobreza.

3.- O desvio de finalidade: um critério que caracteriza a prática abusiva

No âmbito do direito processual, a teoria finalista aponta o desvio de finalidade como o principal critério caracterizador de uma prática abusiva. Assim, para que um ato praticado no exercício de um direito subjetivo seja considerado abusivo[7] é necessário que esse esteja acompanhado do desvio de finalidade[8].

Como já demonstrado, a Justiça Gratuita tem o intuito de promover o acesso dos hipossuficientes à justiça. Entretanto, contrário à essa finalidade, esse benefício vem sendo utilizado por pessoas que possuem recursos suficientes para arcar com os custos do processo. Sendo assim, constata-se que esse uso indevido da declaração de pobreza na obtenção do benefício, por desviar sua finalidade, caracteriza uma prática abusiva na utilização do instituto.

Apesar do benefício de litigar sem gastos ser um direito subjetivo constitucional, Morello adverte que “la invocación de las garantías constitucionales no puede servir para consolidar excesos”[9]. Nesse mesmo sentido, Hélio Márcio Campo também aponta que a inadequada utilização do livre ingresso à justiça é um dos fatores causadores do abuso processual[10].

4.- A utilização abusiva da Declaração de Pobreza

Consoante ao uso abusivo da declaração de pobreza, Paulo Maximilian W. M. Schonblum destaca que na prática forense existem inúmeros casos em que moradores de apartamentos de luxo estão amparados pela gratuidade da justiça. Essas pessoas discutem junto ao Poder Judiciário a:

”[...] nulidades de cláusulas em contrato de financiamento para aquisição de carros importados, ou revisão de valores em contratos de cartão de crédito várias vezes utilizados para compra de passagens aéreas, hospedagens, pagamento de restaurantes finos e boates ‘da moda’[11].

Com o intuito de demonstrar essa verdade, selecionamos algumas decisões jurisprudenciais que demonstram a constante e evidente tentativa da utilização abusiva da carta de pobreza.

4.1.- Carta de Pobreza apresentada por parte que tem condições de arcar com as despesas do processo

No Brasil, no estado do Acre, um Deputado Federal, mediante a juntada da carta de pobreza, requereu a justiça gratuita em uma ação proposta. Apesar da legislação brasileira estabelecer que presume-se como pobre aquele que declarar seu estado de pobreza, o Juiz negou o benefício pleiteado sob os seguintes fundamentos:

“Nessa condição de agente político, o demandante percebeu uma das maiores remunerações pagas pelo Poder Público, isso sem considerar as verbas destinadas ao parlamentar para viabilizar o desempenho das suas funções (passagens aéreas, apartamento funcional etc.). A par disso, a consciência impede-me de aceitar a simples declaração aduzida pelo pleiteante para isentá-lo do pagamento da taxa judiciária, que tem natureza tributária, sendo, assim, de interesse público. Vejo que a presunção, no caso vertente, inverte-se, ou seja, é de que o demandante tem recursos para suportar os encargos do processo”[12].

Vale ainda salientar que além das ajudas de custos, um Deputado Federal do Brasil percebe, a título de subsídio mensal, o importe de R$ 26.723,13 (vinte e seis mil, setecentos e vinte e três reais e treze centavos)[13].

No estado de São Paulo, a Companhia de Engenharia de Tráfego de Santos propôs uma ação contra uma médica, visando o pagamento das multas de trânsito. A Requerida, proprietária de 04 (quatro) veículos, pleiteou o benefício da justiça gratuita e, mesmo sem apresentar nos autos elementos suficientes para justificar a sua necessidade, teve o benefício concedido. A demandante impugnou o deferimento da justiça gratuita, que em seguida foi revogado. Ainda assim, insatisfeita, a Requerente interpôs recurso e o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve o indeferimento do benefício de litigar sem gastos[14].

No estado de Minas Gerais, atuando em causa própria, um advogado pleiteou o benefício da gratuidade da justiça. Todavia, ficou demonstrado nos autos que o Requerente é advogado de inúmeras ações que tramitam na Comarca. Essa circunstância propiciou reconhecer, na impugnação ao pedido de assistência judiciária apresentada pela parte contrária, que o referido advogado não se encontra em situação de miserabilidade, a ponto de não poder pagar as despesas processuais. Face ao julgamento de procedência da impugnação e à condenação do impugnado ao pagamento das custas do incidente, este apresentou recursos, ao qual foi negado provimento.

Concernente a esse indeferimento ao pedido do advogado, o julgador afirmou que:

“a declaração de pobreza firmada pelo recorrente na Primeira Instância, conquanto possua presunção relativa de veracidade, deve ser ponderada caso a caso, especialmente quando o beneficiário tem condição profissional que faz supor sua capacidade em arcar com os encargos da sucumbência, caso seja vencido na causa”[15].

Outro caso que vem a somar com a demonstração do constante uso abusivo do instituto é a decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que concedeu parcialmente o benefício da justiça gratuita[16] - 50% da gratuidade da justiça - a um magistrado do Poder Judiciário do Estado de Minas Gerais que tem a remuneração bruta mínima de R$20.677,83 (vinte mil seiscentos e setenta e sete reais e oitenta e três centavos)[17].

O Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso[18], ao julgar o Agravo de Instrumento nº 97915/2010, negou o pedido de justiça gratuita a um cidadão brasileiro que realizou um negócio em valor superior a R$780.000,00 (setecentos e oitenta mil reais).

4.2.- Majoração da fortuna: Benefício mantido.

No âmbito da justiça laboral brasileira, um trabalhador que percebia mensalmente o importe de R$25.000,00 (vinte e cinco mil reais) e ainda ganhou com a ação o importe de R$95.458,23 (noventa e cinco mil, quatrocentos e cinquenta e oito reais e vinte e três centavos) pleiteou o benefício da justiça gratuita e mesmo constando dos autos tanto a informação da renda mensal percebida e também os valores do êxito obtido com o processo, foram mantidas a concessão do benefício[19].

Esse entendimento, que contribui para o uso abusivo da declaração de pobreza, está fortalecido e pacificado pelo TST, através da OJ nº 304 da SDI-1, que dispõe que:

“Atendidos os requisitos da Lei nº 5.584/70 (art. 14, § 2º), para a concessão da assistência judiciária, basta a simples afirmação do declarante ou de seu advogado, na petição inicial, para se considerar configurada a sua situação econômica (art. 4º, § 1º, da Lei nº 7.510/86, que deu nova redação à Lei nº 1.060/50)”.

Até mesmo nesses casos onde está claro e evidente que a parte pode suportar com as despesas do processo, a concessão do benefício tem sido mantida.

Divergente a esse entendimento, o Tribunal Regional do Trabalho da 14a Região apreciou o Recurso Ordinário no0000936-49.2010.5.14.0005 e negou provimento, afirmando que para o “reclamante usufruir dos benefícios da justiça gratuita, basta consignar uma simples declaração de pobreza nos autos”. Entretanto, essa deve estar investida do “status” de hipossuficiente para arcar com as despesas do processo, ressaltando que este instituto jamais poderá ser banalizado[20]. Nesse caso, o magistrado ainda destacou que o artigo 4º da Lei n° 1.060/1950, que estabelece que a parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, não deve ser aplicada de forma absoluta e irrestrita. Ressaltou ainda que, como forma de impedir o abuso do direito, deve ser aplicada interpretação sistemática e teleológica.

5.- Considerações finais

Face à análise da finalidade da Justiça Gratuita, as citadas decisões demonstram que o instituto da Justiça Gratuita vem sendo utilizado por pessoas que carecem do “status” da hipossuficiência. Assim, é importante destacar que a tarefa de impedir o uso abusivo desse benefício é uma missão dada aos magistrados e também à parte contrária, que deve apresentar sua impugnação do pedido da justiça gratuita. Além disso, os magistrados devem verificar outros elementos constantes do processo para decidir acerca da concessão ou não do benefício de litigar sem gastos. Nesse entendimento, o desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima, sustentou que as regras para concessão da assistência judiciária não podem ser aplicadas mecanicamente, sendo necessário verificar, caso a caso, a condição patrimonial da parte que requer o benefício[21].

Notas:

[1] GIANNAKOS, Angelo Maraninchi. Assistência judiciaria no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 19.

[2] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988.

[3] CAMPS, Carlos Enrique. El beneficio de litigar sin gastos. 1a ed. - Buenos Aires: LExisNexis Argentina, 2006, p. 53-54.

[4] CAMPS, Carlos Enrique. El beneficio de litigar sin gastos. 1a ed. - Buenos Aires: LExisNexis Argentina, 2006, p. 52.

[5] O artigo 4o, § 1 da Lei 1.060/50 prevê: “Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais.”

[6] Decisão da C. Nac. Civil, sala E, 12/4/1995, ‘Marelli, Héctor v. Municipalidad de Buenos Aires`, LL 1996-D-899, J. Agrup., caso 11096) citada por CAMPS, Carlos Enrique. El beneficio de litigar sin gastosˆ. 1a ed. - Buenos Aires: LExisNexis Argentina, 2006, p. 451.

[7] Abuso significa “mau uso, uso errado, excessivo ou injusto; ... excesso”. De acordo com o Dicionário eletrônico Aurélio. Disponível em <http://www.dicionariodoaurelio.com/Abuso.html>. Acesso em 04/04/2012.

[8] ABDO, Helena Najjar. O abuso do processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 40,41 e 76.

[9] MORELLO, Augusto M. El processo justo. Buenos Aires: Platense S.R.L. - ABELEDO-PERROR, 1994, p. 110.

[10] CAMPO, Hélio Márcio. Assistência Jurídica Gratuita: assistência judiciária e gratuidade judiciária. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 86. Texto original “O livre ingresso à Justiça e o princípio do contraditório e da ampla defesa não correspondem à espada de Aquiles, para ferir e curar, e muito menos à túnica de Nessus, que tudo acoberta. Tais princípios constitucionais têm de ser recebidos com reservas e temperamentos, vez que o processo não é um jogo de azar, facultando- se o litigar por simples espírito de emulação ou para se obter lucro”.

[11] SCHONBLUM, Paulo Maximilian W. M. A gratuidade de justiça que transforma o Poder Judiciário em “Porta da Esperança”. Focus. Chalfin, Goldberg & Vainboim. nº 6. Novembro/2007. Disponível em:<http://www.cgvadvogados.com.br/html/downloads/focus_06.pdf>. Acesso em: 20/02/2012.

[12] TJAC. Diário da Justiça. Ação Anulatória. Autos n­­­­­º 001.03.000858-2.Disponível em:<http://diario.tjac.jus.br/display.php?Diario=427&Secao=22>. Acesso em: 22/02/2012.

[13] BRASIL. Decreto Legislativo nº 805, 20 de dezembro de 2010. Disponível em:<http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decleg/2010/decretolegislativo-805-20-dezembro-2010-609780-publicacaooriginal-131088-pl.html>. Acesso em: 10/04/2012.

[14] TJSP. Câmara de Direito Público. Apelação nº 788 231 5/1-01 – SANTOS. Apelante: Maria Rosaria Morais Agia. Apelada: Companhia de Engenharia de Tráfego de Santos. Disponível em:<http://www.jusbrasil.com.br/filedown/dev1/files/JUS2/TJSP/IT/_994080761565_SP_1279149087581.pdf>. Acesso em: 15/03/2012.

[15] TJMG. Apelação nº 3790852-50.2007.8.13.0145. Apelante: Marcos Ventura de Barros. Apelado: Xerox Com. e Ind. Ltda. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/inteiro_teor.jsp?tipoTribunal=1&comrCodigo=145&ano=7&txt_processo=379085&complemento=1>.  Acesso em: 16/03/2012

[16] TJMG. Apelação nº 0146610-60.2002.8.13.0702. Apelante:Roberto Ribeiro de Paiva Júnior. Apelado: Estado de Minas Gerais. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/inteiro_teor.jsp?tipoTribunal=1&comrCodigo=702&ano=2&txt_processo=14661&complemento=2>. Acesso em: 21/02/2012.

[17] Valor baseado no Edital no 01/2011 do Concurso Público, de Provas e Títulos, para ingresso na carreira da Magistratura do Estado de Minas Gerais.Disponível em <http://www.ejef.tjmg.jus.br/home/files/concursos/juiz_2011/edital_2011_Juiz_de_Direito.pdf>. Acesso em: 22/02/2012.

[18] Agravo de Instrumento nº 97915/2010 TJMT / RELATOR desembargadores Carlos Alberto Alves da Rocha,

[19] TST RR - 97900-14.2006.5.02.0059.  Disponível em: <http://ext02.tst.jus.br/pls/ap01/ap_red100.resumo?num_int=656223&ano_int=2009&qtd_acesso=7987201>, Acesso em 22/02/2012.

[20] Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região - Recurso Ordinário n 0000936-49.2010.5.14.0005. Disponível em: <http://www.trt14.jus.br/acordao/2011/Fevereiro_11/Data14_02_11/0000936-49.2010.5.14.0005_RO.pdf>. Acesso em: 22/02/2012.

[21] LIMA, Rogério Medeiros Garcia de. Requisitos para a concessão de Gratuidade de emolumentos e outros encargos. Disponível em: <http://www.recivil.com.br/preciviladm/modulos/artigos/documentos/Artigo%20do%20desembargador%20Sergio%20Medeiros.pdf>. Acesso em: 14/02/2012

 

Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.40139&seo=1