Novo regime da Incapacidade Civil a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência


Pormarianajones- Postado em 23 maio 2019

Autores: 
Ricardo Luís Lenz Tatsch

DIREITO & JUSTIÇA A revista da Escola de Direito da PUCRS e-ISSN: 1984-7718 DIREITOS FUNDAMENTAIS | BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 324

Novo regime da Incapacidade Civil a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência

The Disabled People Protection Act and its consequences towards civil capacity

Ricardo Luís Lenz Tatsch 

DOI: 10.15448/1984-7718.2016.2.30410

RESUMO: Este trabalho objetiva realizar uma análise das principais alterações ocorridas no regime da incapacidade civil, após a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que acarretou uma profunda modificação nas hipóteses de incapacidade absoluta e relativa, em especial quanto às pessoas com deficiência. A partir de agora, independentemente do grau de sua limitação, parte de sua autonomia será preservada, em razão do que sua incapacidade será relativa. Além disso, há modificações no instituto da curatela e nas funções do curador, que somente poderá ter ingerência sobre os atos patrimoniais do curatelado, sendo que a sentença de curatela, após realizado adequado exame das circunstâncias do caso, declarará expressamente os poderes do curador e o grau da limitação da autonomia do curatelado. Surge, ainda, no nosso ordenamento a Tomada de Decisão Apoiada, que poderá ser uma alternativa a situações que até agora eram abrangidas pela curatela. Apesar dos avanços, as modificações trazidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência também trouxe prejuízos para as pessoas com deficiência que não podem expressar sua vontade, pois, os atos por elas praticados serão considerados anuláveis, e não mais nulos, do que resulta a necessidade de atuação do legislador no sentido do aperfeiçoamento da legislação.

Palavras-chave: Incapacidade Civil; Estatuto Pessoa com Deficiência; Novo Regime.

ABSTRACT: This study aims to carry out an analysis of the main changes in the legal incapacity rules, following the entry into force of the Estatuto da Pessoa com Deficiência – something like a Disabled People Protection Act – which led to a profound change in the event of absolute and relative inability, especially as people with disabilities. From now on, regardless of the degree of its limitation, part of their autonomy is preserved, because of your disability is relative. In addition, there are changes in the trusteeship of the institute and the curator of the functions that can only be interference on the property of curatelado acts, and the curatorship sentence after conducted proper examination of the circumstances expressly declare the trustee's powers the degree of limitation of the autonomy of curatelado. There is still, in our planning Decision Making Supported, which may be an alternative to situations that until now were covered by the trusteeship. Despite advances, the changes brought by the Status of Persons with Disabilities also brought harm to people with disabilities who cannot express their will, because the acts they practice will be  Mestre em Direito pela PUCRS. Procurador da República. Contato: ricardot@mpf.mp.br . TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 325 considered voidable, and no longer void, resulting in the need for action the legislator in order to improve the legislation.

Keywords: Civil Disability; Status Persons with Disabilities; New Regime.

INTRODUÇÃO

A partir da entrada em vigor da Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), ingressamos em um momento de transição no que diz respeito com regime da incapacidade civil das pessoas naturais. Veja-se que essa transição não diz respeito com a vacatio legis ou com um regramento de transição estabelecido pela nova legislação (por sinal, inexistente), mas, sim, no tocante ao modo como devemos entender o instituto da incapacidade civil, a partir de uma lei que modifica substancialmente os seus pressupostos teóricos e, por consequência, a forma de seu entendimento e de aplicação dos institutos que lhe são correlatos, em especial a curatela e a tomada de decisão assistida, este até então inexistente no direito brasileiro. Acresça-se a isso que a doutrina pátria está, apenas, iniciando uma análise mais aprofundada sobre o tema, existindo muitas dúvidas a respeito da melhor solução para os problemas surgidos com a vigente regulação da incapacidade. Refira-se a importância desse tema, porquanto é necessário que as pessoas naturais sejam capazes para a prática dos atos da vida civil, sendo especialmente importante no campo das relações patrimoniais, mas não só nele, já que as previsões legais de incapacidade “constituem parâmetros de substancial importância para a pacificação e estabilização do tráfico negocial."1 No presente trabalho, pretendemos analisar o atual regime das incapacidades, sem a pretensão de esgotá-lo,2 bem como examinar as questões que entendemos mais importantes, surgidas a partir da entrada em vigor da novel legislação sobre essa matéria. 1 EBERLE, Simone. A capacidade entre o fato e o direito. Porto Alegre: Fabris, 2006, p. 45. 2 Saliente-se que a amplitude desse tema extravasa em muito os limites do estudo a ser realizado em um artigo. É por esse motivo que não trataremos neste trabalho, dentre outras questões, da prescrição dos atos praticados pelas pessoas que agora são relativamente incapazes, mas que antes do advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência eram consideradas como absolutamente incapazes, porquanto tal assunto, por si só, demandaria um estudo exclusivo. TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 326

1 O REGIME DA INCAPACIDADE CIVIL NO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Antes de adentrarmos na análise do regime da incapacidade sob a égide do Código Civil de 2002, e para que possamos visualizar de forma mais clara as mudanças de paradigmas a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência, é necessário afirmarmos a importância desse instituto no direito. Veja-se que o direito é um fenômeno humano e social3 , que surgiu a partir do momento em que o ser humano passa a viver em sociedade e onde as relações entre as pessoas ou entre elas e as ficções jurídicas (v. g., pessoas jurídicas ou o próprio Estado, ambos criados pela mente humana) necessitam ser reguladas. Assim, de forma muito resumida, podemos dizer que o direito possui como função essencial a disciplina das relações jurídicas. E quanto às relações jurídicas, Manuel A. Domingues de Andrade define-as como sendo “toda a situação da vida real (social) juridicamente relevante (produtiva de consequências jurídicas), isto é, disciplinada pelo direito”.4 Já Pontes de Miranda, de forma sucinta e precisa, diz que “relação jurídica é a relação inter-humana, a que a regra jurídica, incidindo sobre os fatos, torna jurídica.”5 A partir desses conceitos, podemos depreender que a relação jurídica ocorre entre pessoas, naturais ou jurídicas, sujeitos de direitos, que necessitam ser capazes6 de compreender, decidir e expressar a sua vontade. De outro lado, é preciso, sob pena de invalidade do ato jurídico (lato sensu), que as pessoas naturais envolvidas nas relações jurídicas possuam capacidade para tanto. E essa capacidade nada mais é do que a aptidão para adquirir direitos e assumir deveres.7 Ainda, ela se divide em capacidade de direito, que “é a aptidão para a titularidade de direitos e deveres”, existentes em todas as pessoas humanas, e 3 ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 13ª ed. Coimbra: Almedina, 2011, p. 23. 4 ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Coimbra editora, 1997, v. 1, p. 02. 5 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 117, v. 1. 6 Ressalte-se que estamos a tratar, unicamente, das pessoas naturais, entre o seu nascimento com vida e o momento de sua morte, estando fora do objeto do nosso trabalho a questão envolvendo a capacidade de fato dos nascituros e das pessoas jurídicas. 7 Flávio Tartuce entende ser melhor tecnicamente o termo deveres a obrigações, “pois existem deveres que não são obrigacionais, no sentido patrimonial, caso dos deveres do casamento” (TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, v. 1, p. 118). TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 327 capacidade de fato, que é “a possibilidade de praticar atos com efeitos jurídicos, adquirindo, modificando ou extinguindo relações jurídicas”.8 Feitas essas considerações básicas, e agora ingressando na teoria das incapacidades, temos que o direito positivo disciplina, objetivamente, as hipóteses de incapacidade, os quais são exceção, do que decorre a limitação ao exercício dos atos da vida civil. Ressalte-se que há diferença entre incapacidade e vulnerabilidade, o qual é “um estado inerente de risco que enfraquece um dos contratantes, desequilibrando uma relação jurídica”,9 sendo que a simples existência de tal elemento desequilibrador (como, v. g., o analfabetismo de pessoa que firma um contrato de compra e venda) não é causa para a invalidade do negócio jurídico.10 Já a incapacidade é mais grave, pois se constitui na ausência da possibilidade de compreensão para a prática do negócio jurídico ou a impossibilidade de manifestar sua vontade. 11 Por sua vez, vemos que o incapaz merece um tratamento diferenciado, visto que sua compreensão dos fatos não é a mesma das pessoas capazes, sendo ele equivocado ou, até mesmo, inexistente em determinados casos, motivo pelo qual a proteção jurídica dos incapazes se concretiza por meio da concessão de direitos diferenciados, e não pela retirada plena da capacidade.12 Para Célia Barbosa Abreu, uma ratio contemporânea do regime jurídico das incapacidades perpassa necessariamente por uma proteção jurídica mais abrangente do cidadão incapaz, pelo enfrentamento das ideias de exclusão e inclusão por uma tutela que não se reduza a resguardar interesses de ordem patrimonial. Assim, o incapaz poderá 8 AMARAL, Francisco. . Direito civil: introdução. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 229. 9 EHRARDT JÚNIOR, Marcos. Direito civil: LICC e parte geral. Salvador: JusPodivm, 2009, v. 1, p. 137. 10 Negócio jurídico é o termo utilizado pelo Código Civil de 2002. Ele se diferencia da expressão ato jurídico, de inspiração francesa existente no Código Civil de 1916, pela intencionalidade do sujeito, ou seja, a vontade de produzir o efeito previsto na norma (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: parte geral. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 290). 11 Como veremos adiante, em razão dos novos paradigmas surgidos a partir da entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a incapacidade não decorre mais da enfermidade que acomete o indivíduo (hipótese existente sob a égide do Código Civil de 2002), mas da impossibilidade de expressar sua vontade, o que, realmente, pode decorrer de alguma doença. 12 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 14ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 322. TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 328 desenvolver suas potencialidades, superando obstáculos que no passado pareciam intransponíveis e hoje muitas vezes são meramente transitórios.13 É de se ressaltar que, ao estabelecer causas de incapacidade, a lei está limitando o exercício pleno de atos jurídicos, sendo que tal restrição deve ser tida como excepcional. 14 E em razão dessa excepcionalidade, a interpretação das causas incapacitantes deve ser realizada de forma restritiva.15 A regra, portanto, é a capacidade, sendo a incapacidade uma exceção. Prosseguindo, a redação original do Código Civil de 2002, nos arts. 3º e 4º, limitou a aptidão genérica para a prática dos atos da vida civil, estabelecendo uma verdadeira graduação ao exercício da capacidade de fato, qual seja, pessoas absolutamente incapazes e pessoas relativamente incapazes. O absolutamente incapaz não possui nenhuma capacidade de agir, sendo, por isso, representado por terceiro. Já o relativamente incapaz pode praticar atos da vida civil, desde que assistido por um terceiro. Eram absolutamente incapazes os menores de dezesseis anos (art. 3º, I), os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos (art. 3º, II) e os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Os relativamente incapazes eram os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos (art. 4º, I), os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido (art. 4º, II), os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo (art. 4º, III) e os pródigos (art. 4º, IV). É de se observar que, em face de disposição expressa (art. 4º, parágrafo único) a capacidade dos indígenas não é regulada pelo Código Civil, mas por lei especial. Posteriormente à entrada em vigor do Código Civil de 2002, o Brasil veio a aderir à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, conhecida como Convenção de Nova Iorque (ratificada pelo Congresso Nacional por 13 ABREU, Célia Barbosa. Curatela e interdição civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 223-224. 14 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB, p. 323. 15 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro:teoria geral do direito civil, 33ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 1, p. 171. TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 329 meio do Decreto Legislativo nº 186/08 e inserida no nosso ordenamento jurídico pelo Decreto nº 6.949/09), que se caracteriza por seu cunho humanista e inclusivo. Veja-se que a Convenção de Nova Iorque foi incorporada ao direito brasileiro com a estatura equivalente às Emendas Constitucionais, por força do art. 5º, § 3º, da CRFB/88,16 em razão do que se sobrepôs às normas infraconstitucionais.17 Decorrente desse quadro é a chegada Lei nº 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que, dentre diversas disposições, modificou o regime das incapacidades no direito brasileiro, adequando-o às normas da Constituição da República e da Convenção de Nova Iorque.

2 O NOVO REGIME DA CAPACIDADE CIVIL A PARTIR DAS ALTERAÇÕES REALIZADAS PELO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA (LEI Nº 13.146/15)

O movimento para modificar os parâmetros utilizados no regime da incapacidade civil não é recente e nem exclusivo de nosso país. A França, pela Lei nº 68-5, de 03 de janeiro de 1968, modificou a legislação envolvendo o direito de incapacidade dos maiores de idade, passando de um tradicional sistema protetor para outro em que há o reconhecimento às pessoas incapazes de uma dignidade jurídica e social igual ao dos demais indivíduos, além de estabelecer que o regime de guarda mais severo e o de curatela são medidas residuais, sendo a capacidade das pessoas a regra. Já a Lei nº 308, de 05 de março de 2007, trouxe modificações no tocante à linguagem jurídica utilizada, que foi abrandada com a utilização de termos como “pessoas vulneráveis”, bem como estabeleceu ajuda social para os portadores de doenças mentais ou incapacidade física, possibilitando que eles, considerando suas limitações, possam tomar decisões a respeito de sua saúde, realizar atos de caráter personalíssimo e, com autorização judicial, contratar seguros de vida, formalizar testamento ou exercer o direito de voto.18 16 Art. 5º (...) § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. 17 Após a inserção do § 3º do art. 5º da Constituição pela Emenda Constitucional nº 45/2004, a Convenção de Nova Iorque é a primeira a ingressar no ordenamento jurídico brasileiro com a qualificação de Emenda Constitucional. 18 VIVAS TESÓN, Inmaculada. Más allá de la capacidad de entender y querer: un análisis de la figura TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 330 Na Áustria, a Lei nº 126, de 02 de fevereiro de 1983, de forma pioneira nos países de tradição romano-germânico ocidental, rompeu com o clássico sistema de incapacidade judicial. Nele, caso o vulnerável não possa apenas ser assistido (em particular, no âmbito familiar ou por instituições de proteção de incapazes), o curador passa a ter suas funções estabelecidas de forma precisa pelo Juiz (e da qual não poderá exorbitar), que sempre levará em consideração as limitações e as características da moléstia psiquiátrica que acomete a pessoa que não pode gerir, sem prejuízos, sua vida. Ademais, por manter a autonomia sobre a parcela de sua vida que não sofreu restrição pela decisão judicial, o curatelado poderá até mesmo (desde que tenha condições de compreender e manifestar sua vontade) praticar atos que não resultem em assumir obrigações, podendo, v. g., contrair o matrimônio, formular testamento ou aceitar uma doação (desde que não onerosa), além de possuir o direito de participar das decisões mais importantes que lhe afetem. Tal sistema, por sua flexibilidade, permite a inclusão social do curatelado, o qual conserva sua capacidade de trabalho em área que lhe seja possível (considerando suas limitações) com a menor restrição possível de sua liberdade.19 Inspirado no novo sistema austríaco, a Alemanha, por meio da Lei nº 48, de 12 de setembro de 1990, suprimiu os institutos (incapacitação judicial, curatela etc) até então existentes e relacionados com o regime das incapacidades, instituindo um novo modelo (a assistência), radicalmente diverso do anterior. O objetivo do novo sistema é a melhora da posição jurídica das pessoas vulneráveis que precisam de proteção, mantendo seus direitos pessoais e patrimoniais por meio de “uma ampla autonomia decisional que lhe permita organizar sua própria vida segundo suas ideias e desejos.”20 Afasta-se, então, o viés do sistema anterior, no qual preponderava a vontade do curador sobre a pessoa protegida e uma maior preocupação com a administração dos bens do que com a atenção à pessoa. Neste novo sistema, para a italiana de la administración de apoyo y una propuesta de reforma del sistema tuitivo español. Olivenza (Badajoz): Futuex – Fundación para La promoción y apoio a las personas con discapacidad, 2012, p. 40-42. 19 VIVAS TESÓN, Inmaculada. Más allá de la capacidad de entender y querer: un análisis de la figura italiana de la administración de apoyo y una propuesta de reforma del sistema tuitivo español, p. 42-44. 20 VIVAS TESÓN, Inmaculada. Más allá de la capacidad de entender y querer: un análisis de la figura italiana de la administración de apoyo y una propuesta de reforma del sistema tuitivo español, p. 44. TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 331 proteção judicial das pessoas, há necessidade de que ela possua alguma dificuldade de gerenciamento de seus interesses, que tenha alguma enfermidade psíquica, doença mental ou um impedimento físico ou de espírito. Para tais casos, decisão judicial nomeará um assistente, especificando suas exatas funções, a quem caberá, na medida do possível, seguir as vontades e necessidades do beneficiário, desde que não lhe sejam prejudiciais.21 Já no Brasil, o rol original das incapacidades no Código Civil de 2002 previsto nos arts. 3º e 4º foi substancialmente alterado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. A partir de então, absolutamente incapazes são unicamente os menores de 16 anos (art. 3º, caput), desaparecendo todas as outras hipóteses até então existentes. Os relativamente incapazes também tiveram seu rol bastante modificado. A partir da vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência, são relativamente incapazes os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos (art. 4º, I), os ébrios habituais e os viciados em tóxico (art. 4º, II), aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade (art. 4º, III) e os pródigos (art. 4º, IV). Assim, comparando os regimes anterior e posterior ao advento da Lei nº 13.146/15,22 constatamos uma modificação do enfoque dado às incapacidades, que agora não mais decorrem, unicamente, de um estado físico, psíquico, mental ou sensorial da pessoa, ou seja, motivada por sua deficiência. Veja-se que uma deficiência não induz, necessariamente, à incapacidade, podendo a pessoa com deficiência desfrutar, plenamente, dos seus direitos civis, patrimoniais e existenciais.23 Diferente é a situação do incapaz, que não possui condições de se autogerir, necessitando do auxílio de outra pessoa para tanto. Nesse ponto, é preciso salientar que com o advento da Constituição de 21 VIVAS TESÓN, Inmaculada. Más allá de la capacidad de entender y querer: un análisis de la figura italiana de la administración de apoyo y una propuesta de reforma del sistema tuitivo español, p. 44. 22 Em decorrência da vacatio legis de 180 dias estabelecido no art. 127, a Lei nº 13.146/15 somente entrou em vigor, ou seja, passou a produzir eficácia a partir do dia 03/01/16. 23 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB, p. 327. TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 332 1988, a dignidade da pessoa humana encontra-se inserida entre os princípios fundamentais, sendo um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil (art. 1º, III). A partir daí, vemos que “é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não o meio da atividade estatal.”24 Em uma visão kantiana aplicada à dignidade da pessoa humana, tanto as ações praticadas por uma pessoa quanto às praticadas por outros indivíduos e dirigidas àquela devem sempre considerar o homem como fim, e não só como um meio. 25 Saliente-se que Ingo W. Sarlet, após discorrer longamente a respeito da dignidade da pessoa na perspectiva jurídico-constitucional,26 seguindo a linha filosófica de Kant, conceitua a dignidade da pessoa humana como sendo: (...) a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida a cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. 27 Por esse motivo, o Código Civil de 2002, em sua redação original, quando enquadrava a pessoa com deficiência como absolutamente incapaz, retirando a sua autonomia para todos os atos da vida (e independentemente da possibilidade de poder exercer alguns deles, mesmo que de caráter não patrimonial), tornava-o um objeto, em contrariedade ao previsto no art. 1º, III, da CRFB/88. Assim, como veremos adiante, sob a égide das alterações realizadas pela Lei nº 13.146/15, as pessoas com deficiência passaram, em razão dessa condição, de absolutamente incapazes para relativamente incapazes, estando, por isso, libertas do 24 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 257. 25 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 67-68. 26 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p 48-71. 27 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 70-71. TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 333 regime da curatela total de seus direitos. A respeito disso, é de se ressaltar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência prevê que a deficiência, seja ela de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, não afeta a plena capacidade civil da pessoa (art. 6º, caput), inclusive para se casar e constituir união estável (inciso I), exercer direitos sexuais e reprodutivos (inciso II), exercer o direito sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar (inciso III), conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória (inciso IV), exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária (inciso V) e exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas (inciso VI). E com a impossibilidade de se retirar a capacidade de fato das pessoas com deficiência, relativamente a respeito de determinados temas, nitidamente de natureza existencial, mantém-se parcela de autonomia desse indivíduo, pois fora do poder de decisão de eventual curador nomeado para atendê-lo, em razão do que não se pode mais falar em incapacidade absoluta para as pessoas com deficiência, independentemente de sua natureza. Feitas essas observações, temos que, doravante, são absolutamente incapazes, unicamente, os menores de 16 anos, tendo aqui o legislador adotado um critério objetivo e igualitário, o etário, pois entende que antes dessa idade há ausência de maturidade suficiente para a manifestação da vontade. Diante disso, os atos praticados pelos menores de dezesseis anos (absolutamente incapazes) são nulos de pleno direito, deles não decorrendo qualquer efeito jurídico, conforme estabelece o art. 166, I, do Código Civil de 2002. É possível, entretanto, que alguns atos praticados por absolutamente incapazes produzam efeitos, notadamente quando se tratar de atos de natureza existencial e o incapaz possuir condições de entendimento suficiente para tanto, como no caso do menor que é consultado a respeito de sua adoção, sendo tal concordância expressa uma exigência legal para os maiores de doze anos (art. 45, § 2º, da Lei nº 8.069/1990).28 Por sua vez, quanto aos relativamente incapazes, o sistema jurídico não ignora sua vontade, sendo necessário, entretanto, que ele seja acompanhado 28 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB, p. 332. TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 334 (assistido) por terceiro em seus atos. Deste modo, a manifestação do relativamente incapaz é levada em consideração, sendo condição de validade de seus atos a intervenção do assistente. No tocante às hipóteses de incapacidade relativa previstas no Código Civil, temos os menores entre dezesseis e dezoito anos, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos (do que estão excluídos os que fazem uso eventual dessas substâncias) e o pródigo. Quanto ao último, apenas devemos mencionar que é pessoa que de forma desordenada dilapida seu patrimônio, colocando sua própria subsistência em risco, sendo que a proteção, no caso, é do seu patrimônio, em razão do que o pródigo não poderá, sem a assistência do curador, praticar atos de natureza patrimonial, podendo, entretanto, praticar atos civis de cunho existencial. Saliente-se, ainda, que nenhuma dessas hipóteses foram objeto de modificação por parte do Estatuto da Pessoa com Deficiência, motivo pelo qual apenas fizemos referência, sem maiores aprofundamentos, pois extrapola o objeto deste estudo. Por sua vez, merece um maior aprofundamento a hipótese prevista art. 4º, III, do Código Civil, com a redação dada pela Lei nº 13.146/15, que considera relativamente incapazes “aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade”. Há aqui um elemento de comunicação entre as pessoas com deficiência e a teoria das incapacidades, visto que uma pessoa com deficiência pode estar impossibilitada de exteriorizar a sua vontade, pouco importando se ela for temporária ou permanente. Ainda, é de se referir que não importa qual a espécie de deficiência, se física, mental, intelectual ou sensorial, bem como que a causa incapacitante, nesta hipótese, não resida na patologia ou no estado psíquico, mas na impossibilidade de exteriorizar a vontade de forma consciente, clara e autônoma. O reconhecimento desta incapacidade jurídica exige um procedimento judicial de curatela. Além disso, os atos praticados pelos relativamente incapazes são passíveis de anulação (art. 171, I, do Código Civil), produzindo efeitos até que lhes sobrevenha decisão judicial (arts. 171 e 172 do Código Civil). TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 335 3 A CURATELA A PARTIR DA VIGÊNCIA DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Inicialmente, cumpre reafirmarmos que a capacidade jurídica é a regra, e a incapacidade a exceção, em razão do que a prova da incapacidade deve ser robusta. Na incapacidade fundada em critério subjetivo, é exigível o reconhecimento judicial da causa determinante da incapacidade em uma ação específica, sendo que há autores, como Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, que a denominam de ação de curatela,29 enquanto há os que continuam a chamá-la de ação de interdição.30 Neste ponto, é importante ressaltarmos que parte da divergência que ora existe a respeito da nomenclatura a ser utilizada (e, também, com as alterações realizadas no Código Civil de 2002 na parte relativa à curatela) decorre de uma sucessão de leis no tempo, com vacatio legis diferentes. Veja-se que foi editada a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (atual Código de Processo Civil), cuja entrada em vigor deu-se em 18 de março de 2016. Posteriormente, foi editada a Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que passou a vigorar em 03 de janeiro de 2016. Ou seja, a lei mais antiga passa a vigorar em momento posterior à lei mais nova, sendo a causa disso a diferença de tempo entre as aprovações e suas vacatio legis. Quanto a isso, temos que ver que uma lei publicada é existente, válida, podendo, porém, não ser eficaz, bastando para tanto que ainda não tenha transcorrido sua vacatio legis. Isso é o que se deu com o Código de Processo Civil e com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que antes de entrarem em vigor não produziram nenhum efeito jurídico, nem mesmo o derrogatório ou o modificativo de outras leis. Assim, não há como sustentar que as alterações feitas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência na parte do Código Civil relativa à curatela subsistem mesmo quando o Código de Processo Civil revogou totalmente as mesmas disposições. É o que ocorreu com os artigos 1.768, 1.769, 1.771 e 1.772 do Código Civil, que tiveram sua redação alterada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência e 29 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB, p. 349. 30 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 6, p. 698. TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 336 foram expressamente revogados pelo Código de Processo Civil de 2015 (art. 1.072. II). Veja-se que, no caso, as alterações realizadas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência vigoraram, apenas, de 03 de janeiro até 17 de março de 2016, sendo que após tais artigos foram revogados pelo atual Código de Processo Civil, que igualmente veio a regular o processo de interdição (arts. 747 e seguintes). Evidenciase, aí, um descompasso e uma falta de percepção do legislador, que no curso do trâmite dessas leis não percebeu uma interferência mútua entre elas, relativamente às modificações realizadas no Código Civil. Porém, em nossa opinião, apesar de subsistir no Código de Processo Civil o termo interdição, ele possui, inegavelmente, um cunho estigmatizante, o que vai em direção oposta à Convenção de Nova Iorque e ao Estatuto das Pessoas com Deficiência, em face do que entendemos ser preferível denominar tal ação como de curatela, terminologia inclusive mais adequada à demanda que objetiva o reconhecimento da incapacidade relativa de pessoa que, por causa transitória ou permanente, não possa exprimir sua vontade. Atente-se, outrossim, que denominar essa demanda como ação de curatela é apenas o resultado de uma interpretação sistemática dos preceitos existentes nos três diplomas referidos no início deste parágrafo com os contidos na Constituição. 31 Assim, o Juiz, considerando as próprias necessidades existenciais do curatelado (e não focado, unicamente, em seus interesses patrimoniais) pode reconhecer sua incapacidade relativa, privando-lhe da capacidade plena e nomeando-lhe curador. Ainda, o Juiz, ao reconhecer a incapacidade relativa de uma pessoa, deverá conferir-lhe uma curatela proporcional às suas necessidades e vocacionada à sua dignidade. Falando a respeito dos institutos de proteção, em lição perfeitamente aplicável à situação como a que ora se analisa, Pietro Perlingieri assevera que: 31 Para Gustavo Tepedino “o objeto de interpretação são as disposições infraconstitucionais integradas visceralmente às normas constitucionais, sendo certo que cada decisão abrange a totalidade do ordenamento, complexo e unitário.” (TEPEDINO, Gustavo. O papel atual da doutrina do direito civil entre o sujeito e a pessoa. ______; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coords.). O direito civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotá. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 17-35, especificamente p. 27. TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 337 O estado pessoal patológico ainda que permanente da pessoa, que não seja absoluto ou total, mas graduado e parcial, não se pode traduzir em uma série estereotipada de limitações, proibições e exclusões que, no caso concreto, isto é, levando em consideração o grau e a qualidade do déficit psíquico, não se justificam e acabam por representar camisas-de-força totalmente desproporcionada e, principalmente, contrastantes com a realização do pleno desenvolvimento da pessoa. (...) É preciso, ao contrário, privilegiar sempre que for possível, as escolhas de vida que o deficiente psíquico é capaz, concretamente, de exprimir, ou em relação às quais manifesta notável propensão. A disciplina da interdição não pode ser traduzida em uma incapacidade legal absoluta, em uma “morte civil”. Quando concretas, possíveis, mesmo se residuais, faculdades intelectivas e afetivas podem ser realizadas de maneira a contribuir para o desenvolvimento da personalidade, é necessário que sejam garantidos a titularidade e o exercício de todas aquelas expressões de vida que, encontrando fundamento no status personae e no status civitatis, sejam compatíveis com a efetiva situação psicofísica do sujeito. Contra essa argumentação não se pode alegar – sob pena de ilegitimidade do remédio protetivo ou do seu uso – a rigidez das proibições nas quais se substancia a disciplina do instituto da interdição, tendente à exclusiva proteção do sujeito: a excessiva proteção traduzir-se-ia em uma terrível tirania.32 Saliente-se que a extensão da curatela deve ser proporcional à necessidade de proteção do curatelado. Desta forma, se a pessoa, em razão de sua deficiência, não pode exprimir sua vontade, a decisão judicial deve conceder uma curatela mais ampla, conferindo ao curador funções patrimoniais plenas, bem como as necessárias para a manutenção da própria existência do curatelado. No tocante aos atos existenciais, eles estão excluídos de qualquer restrição, mesmo nas situações em que o curatelado não possa expressar sua vontade por nenhuma forma, pois há previsão expressa no Estatuto da Pessoa com Deficiência (art. 85, caput) no sentido de que “a curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial”. Ademais, a sentença de curatela deverá considerar aspectos pessoais daquele que está sofrendo a intervenção, inclusive levando em conta, quando possível, suas vontades e preferências, sendo que para o auxílio do Juiz haverá a 32 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 164-165. TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 338 necessidade da realização de um estudo biopsicossocial, ou seja, deverá ser feita uma avaliação clínica, psicológica e por assistente social, esta última visando averiguar as condições familiares e sociais em que está inserida a pessoa em análise, a fim de que se tenha uma visão mais completa possível do avaliado. Em decorrência das peculiaridades de cada pessoa, a sentença de curatela estabelecerá o que Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald chamam de projeto terapêutico individualizado, mas que preferimos denominar de projeto de ação da curatela (por melhor sintetizar a sua finalidade, qual seja, estabelecer o campo de atuação do curador e, por consequência, as restrições aos direitos patrimoniais do curatelado), do qual podem resultar três formas, relativamente à sua extensão: a) o curador será um representante do relativamente incapaz para todos os atos jurídicos, para os casos em que ele não possui qualquer condição de praticálos; b) o curador será um representante para certos e específicos atos e assistente para outros, num regime misto, para os casos em que o curatelado possui condições de praticar alguns atos, devidamente assistido, não possuindo condições de praticar outros, como, por exemplo, os de natureza patrimonial; c) o curador será sempre um assistente, para o caso em que o curatelado possui condições de praticar todo e qualquer ato, desde que devidamente acompanhado.33 É de se salientar, novamente, que sempre estarão fora do âmbito da atuação do curador os atos existências do curatelado, em especial os que dizem respeito com o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto (art. 85, § 1º, da Lei nº 13.146/2015). Afastam-se (ou pelo menos se tenta afastar), então, a possibilidade de decisões padronizadas, que não levam em consideração a individualidade e as peculiaridades do curatelado. E por isso, a sentença de curatela terá de conter uma forte carga argumentativa, a fim de justificar o projeto de ação da curatela, além de regulamentar de forma minudente e precisa a extensão da intervenção sobre a autonomia privada da pessoa. 33 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB, p. 348. TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 339 4 A TOMADA DE DECISÃO APOIADA (TDA) O Estatuto da Pessoa com Deficiência, no tocante à teoria das incapacidades, vislumbrou a existência de pessoas que possuem algum tipo de deficiência, inclusive de caráter psíquico ou mental, mas que podem exprimir sua vontade, afastando tais casos da incidência da incapacidade relativa. De acordo com a nova sistemática implantada a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência, essa pessoa é reputada plenamente capaz, podendo praticar os atos da vida civil, independentemente de representação ou de assistência. Para a pessoa com deficiência que possua limitações para o exercício de suas atividades gerenciais, mas que preserva, mesmo de forma precária, a aptidão de expressar sua vontade e de se fazer compreender, o caminho pode não ser o da incapacidade relativa, com a consequente curatela. Para tanto, com o acréscimo do art. 1.783-A ao Código Civil, feito pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, surge a figura da Tomada de Decisão Apoiada, dedicado à assistência da pessoa com deficiência que preserva a plenitude de sua capacidade civil, o que assegura sua dignidade e igualdade substancial. 34 Devemos salientar que a inspiração desse instituto teve origem na Itália, que por meio da Lei nº 6/2004 instituiu o amministratore di sostegno (administrador de apoio), bem como que sua inserção em nosso país deu-se pelo art. 12.3 do Decreto nº 6.949/09, que promulgou a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o qual dispõe que “os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal”. Resumidamente, temos que a Tomada de Decisão Apoiada configura-se como sendo um processo judicial que visa ao auxílio de pessoas plenamente capazes, mas que se encontram em estado de vulnerabilidade em decorrência de uma deficiência, constituindo-se em um instituto intermediário entre o mandato e a curatela. Na Tomada de Decisão Apoiada o beneficiário, no gozo de seus direitos civis, procura ser auxiliado na prática de seus atos pelos apoiadores, em número de dois. 34 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB, p. 338-339. TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 340 Ainda, é de se ver que a curatela e tutela parecem atender mais à sociedade ou à família, enquanto que a Tomada de Decisão Apoiada “objetiva resguardar a liberdade e dignidade da pessoa com deficiência, sem retirar ou restringir indiscriminadamente seus desejos e anseios vitais.”35 Já os limites do apoio serão fixados em termo firmado pela pessoa com deficiência e os apoiadores, inclusive com prazo de vigência, bem como declarados na sentença. Além disso, a decisão tomada pela pessoa apoiada “terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado” (art. 1783-A, § 4º, do CC). Provavelmente, devido à sua recente entrada em vigor, muitos estudiosos do direito civil36 ainda não se atentaram para sua existência ou realizam estudos mais aprofundados a respeito da Tomada de Decisão Apoiada. No que diz respeito com jurisprudência, após pesquisa37 realizada junto aos Tribunais de Justiça da Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo, e até mesmo porque o instituto em questão somente entrou em vigor no dia 03/01/2016, foram achados apenas dois acórdãos (com referências indiretas) no Tribunal de Justiça de São Paulo,38 um no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul39 e uns poucos pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, sem que se adentrasse, de forma mais aprofundada, nos detalhes do novel instituto.40 Entretanto, é preocupante que os julgados encontrados, em que se levanta a possibilidade de que seria melhor para o requerido da ação a Tomada de Decisão Apoiada, não levaram em consideração de 35 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB, p. 340. 36 Notadamente os autores de cursos de direito civil, até a data da finalização deste trabalho. 37 As pesquisas foram realizadas no dia 03/10/2016. 38 Apelações nº 0006290-33.2013.8.26.0242 e 0056408-81.2012.8.26.05545, 6ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Eduardo Sá Pinto Sandeville, julg. em 02/06/2016. 39 Apelação Cível nº 70070966890, 7ª Câmara Cível, Rel. Desª. Liselena Schifino Robles Ribeiro, julg. em 28/09/2016. 40 Ressalte-se que em razão do segredo de justiça não foi possível acessarmos a integralidade dos acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Entretanto, assim como os julgados dos Tribunais de Justiça de São Paulo e do Rio Grande do Sul, a partir do conteúdo das ementas, vemos que a discussão envolvia qual o instituto mais adequado ao caso concreto, ou seja, se a curatela ou a Tomada de Decisão Apoiada. Apenas a título de exemplo dos julgados proferidos no Tribunal de Justiça do Rio de janeiro, referimos a Apelação nº 0010052-30.2009.8.19.0036, 2ª Câmara Cível, Rel. Alexandre Antonio Franco Freitas Camara. TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 341 que esse novo instituto necessita da concordância de uma pessoa com deficiência (requisito essencial), que será a beneficiária da TDA, não se extraindo dos termos do art. 1783-A do Código Civil, do próprio Estatuto da Pessoa com Deficiência ou da Convenção de Nova Iorque (sobre os direitos das pessoas com deficiência)41 qualquer possibilidade dele ser imposto a uma pessoa, como nos caos de curatela. 5 O STATUS ATUAL DAS PESSOAS INTERDITADAS ANTES DA VIGÊNCIA DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA O Estatuto da Pessoa com Deficiência, por trazer normas que dizem respeito ao estado de uma pessoa humana, possui natureza de direito material, alcançando situações jurídicas consolidadas anteriormente, motivo pelo qual toda e qualquer pessoa que foi anteriormente interditada/curatelada, de acordo com o regime normativo anterior, reputada incapaz por motivo psicológico, passaria a ser considerada plenamente capaz, sendo nesse sentido a posição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.42 Porém, discordamos parcialmente de tal posicionamento, pois para o reconhecimento da incapacidade deve haver, além da previsão em lei do elemento incapacitante, uma decisão judicial estabelecendo a restrição para a prática dos atos da vida civil, com o que podemos dizer que estamos diante de um ato complexo. 43 Diante disso, igualmente haverá necessidade de uma nova decisão judicial, possivelmente após a realização de novos estudos técnicos (biopsicossocial) do caso, declarando o restabelecimento total da capacidade do então curatelado ou, subsistindo a impossibilidade de expressar de forma livre e consciente sua vontade (inclusive em razão de moléstia que impossibilite o sujeito de compreender a situação que lhe é posta), especificando de forma detalhada os limites da curatela, que deverá ficar restrita às relações jurídicas patrimoniais e negociais. De qualquer 41 Cumpre lembrarmos que a atividade interpretativa é limitada pelo conteúdo do(s) texto(s) de onde se extrai(em) a(s) norma(s). 42 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB, p. 343. 43 “Ato complexo é o que se forma pela conjugação de vontades de mais de um órgão administrativo.” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 16ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 148). Saliente-se que utilizamos essa classificação do direito administrativo unicamente para melhor esclarecermos a situação em que se encontram as pessoas curateladas desde antes da vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência, com o que não estamos afirmando que se trata, realmente, de um ato administrativo complexo. TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 342 forma, não temos como negar que os curatelados sob o regime anterior já podem exercer atos de natureza existencial, acaso, como já dito anteriormente, possuam discernimento para tanto, em especial os expressamente estabelecidos no art. 6º do Estatuto da Pessoa com Deficiência.

CONCLUSÃO

Com o Estatuto da Pessoa com Deficiência ocorreram avanços na teoria das incapacidades e no sistema jurídico brasileiro, por dedicar atenção à dignidade da pessoa com deficiência, a partir da substituição de um conceito estritamente médico por um conceito biopsicossocial de deficiência. Porém, é necessário reconhecermos que o legislador quebrou uma lógica de proteção existente para os até então absolutamente incapazes, bem como para os que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade, com o que haverá a necessidade de uma readaptação dos operadores do direito para tratar dessas questões, em especial do Poder Judiciário, que deverá, além de se reestruturar para que possa produzir um adequado estudo biopsicossocial, proferir sentença com forte carga argumentativa. Ademais, essa sentença deverá detalhar com precisão o campo de atuação do curador, além de estabelecer, de forma minudente, a extensão da intervenção sobre a autonomia privada da pessoa a ser curatelada. Por sua vez, o ato praticado pelo relativamente incapaz, que não pode exprimir sua vontade (grande parte das vezes decorrente de uma deficiência psíquica), será reputado anulável, e não mais nulo. Com isso, o ato produzirá efeitos regulares até que sobrevenha uma decisão judicial, o que poderá ocorrer muito tempo após a sua prática, acarretando consideráveis (e talvez irreparáveis) prejuízos. Ainda, é de se levar em conta que há pessoas que não possuem nenhuma compreensão das coisas ou que não podem exprimir conscientemente sua vontade, as quais poderão ser induzidas à prática de atos que lhe sejam nocivos. Nesses casos, qualquer ato praticado por tais pessoas produzirá efeitos, mesmo que ela não tivesse consciência do que estava realizando. E tais efeitos nocivos serão permanentes, caso a ação anulatória não seja intentada no prazo previsto em lei. Nesse ponto, ao invés TATSCH, R. L. L. | Novo regime da incapacidade civil a partir do... BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 30410. 343 de protegê-los ou possibilitar sua integração social, o novo regime das incapacidades veio prejudicar as pessoas que se encontram na situação em análise, diante do que nos parece haver necessidade de uma atuação do legislador no sentido do aperfeiçoamento da legislação, visando que em tais hipóteses os atos (indevidamente) praticados sejam considerados nulos desde sua origem.

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