A necessidade de prévio requerimento administrativo nas ações previdenciárias e o interesse de agir


Porrayanesantos- Postado em 21 junho 2013

Autores: 
NETO, Oldack Alves da Silva

Introdução

 

                        O presente trabalho se propõe a realizar uma breve análise acerca das condições da ação, em especial a respeito do interesse de agir e o seu preenchimento através do prévio requerimento administrativo nas ações em que se pleiteia a concessão de benefícios previdenciários.

 

                        Far-se-á, ainda que em linhas gerais, análise do posicionamento dos Tribunais Superiores a respeito do tema, tendo em vista a existência de decisões mais recentes que parecem indicar uma possível mudança no entendimento atualmente dominante.

 

O interesse de agir consubstanciado no prévio requerimento administrativo

 

                        Influenciado pela doutrina de Enrico TullioLiebman, o Código de Processo Civil brasileiro adotou a teoria eclética sobre o direito de ação, segundo a qual o direito de ação, que existe de forma autônoma e independente, não se confunde com o direito material. De acordo com tal concepção, o autor tem o direito a um julgamento de mérito – irrelevante se favorável ou desfavorável –, que só ocorre caso preenchidos alguns requisitos[1].

 

                        Esses requisitos necessários ao julgamento de mérito são justamente as chamadas condições da ação, consubstanciadas na possibilidade jurídica do pedido, legitimidade das partes e interesse processual, previstas de maneira explícita no artigo 267, VI, do CPC[2]:

 

Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito: (Redação dada pela Lei nº 11.232, de 2005):

 

Vl - quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual; [original sem destaque]

 

                        Conforme proposto inicialmente, centremos nossa análise nointeresse processual, também chamado de interesse de agir.

 

                        Fredie Didier[3] leciona que “o exame do interesse de agir (interesse processual) passa pela verificação de duas circunstâncias: a) utilidade e b) necessidade do pronunciamento judicial. Há quem acrescente, ainda, a ‘adequação do remédio judicial ou procedimento’ como elemento necessário à configuração do interesse de agir, posição com a qual não concordamos”.

 

                        A utilidade da prestação jurisdicional estará presente toda vez que o demandante puder obter, por meio do processo, o resultado favorável pretendido, ou seja, a melhora em sua situação fática, a justificar o tempo, energia e dinheiro que serão gastos pelo Poder Judiciário na resolução da demanda[4].

 

                        Candido Rangel Dinamarco[5] leciona que “sem antever no provimento judicial pretendido a capacidade de oferecer essa espécie de vantagem a quem o postula, nega-se a ordem jurídica a emiti-lo e, mais que isso, nega-se a desenvolver aquelas atividades ordinariamente predispostas à sua emissão (processo, procedimento, atividade jurisdicional)”.

 

                        A necessidade da prestação jurisdicional, por sua vez, fundamenta-se na premissa de que a jurisdição tem de ser encarada como última forma de solução do conflito[6], ou seja, haverá necessidade sempre que o autor não puder obter o bem da vida pretendido sem a devida intervenção do Judiciário.

 

                        Feitas essas breves considerações doutrinárias, evidencia-se que, nas ações judiciais em que se postula a concessão de benefícios previdenciários sem o prévio requerimento administrativo, está presente o interesse de agir sob o aspecto da utilidade, pois é inequívoco que o demandante poderá obter, por meio do processo, um resultado favorável.

 

                        Contudo, em casos tais, não se verifica o preenchimento do interesse de agir sob o aspecto da necessidade, pois a jurisdição não se apresenta como a última forma de solução do conflito.

 

                        Assim, a falta de postulação administrativa de benefício previdenciário resulta em ausência de interesse processual dos que litigam diretamente no Poder Judiciário, pois a pretensão, nestes casos, carece de qualquer elemento configurador de resistência pela autarquia previdenciária. Não há conflito. Não há lide. Não há, por conseguinte, interesse de agir nessas situações[7].

 

                        Em que pese esse regramento legal e o posicionamento doutrinário acima mencionado, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, nos últimos anos, firmaram posicionamento no sentido de que a ausência de prévia postulação administrativa não acarretava a falta de interesse de agir. Tal entendimento sustenta-se, basicamente, no princípio da inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5ª, XXXV).

 

                        No entanto, recentemente, certos julgados em sentido contrário, exigindo o prévio requerimento administrativo para configuração do interesse processual nas demandas previdenciárias, parecem indicar uma futura mudança de posicionamento.

 

                        Vejamo-nos.

 

                        Mesmo não tendo se manifestado quanto ao mérito, o Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida em dezembro de 2010, nos autos do RE 631.240-RG/MG[8], reconheceu a existência de repercussão geral da controvérsia em análise. Vejamos a ementa do referido julgamento: 

 

Ementa: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PREVIDÊNCIÁRIO. PRÉVIA POSTULAÇÃO ADMINISTRATIVA COMO CONDIÇÃO DE POSTULAÇÃO JUDICIAL RELATIVA A BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. EXISTÊNCIA. Está caracterizada a repercussão geral da controvérsia acerca da existência de prévia postulação perante a administração para defesa de direito ligado à concessão ou revisão de benefício previdenciário como condição para busca de tutela jurisdicional de idêntico direito.

 

(RE 631240 RG, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, julgado em 09/12/2010, DJe-072 DIVULG 14-04-2011 PUBLIC 15-04-2011 EMENT VOL-02504-01 PP-00206) [original sem destaque]

 

                        De seu turno, o Superior Tribunal de Justiça, mais especificamente a sua Segunda Turma[9], tem adotado o posicionamento segundo o qual o prévio requerimento administrativo, em regra, se apresenta necessário para configurar o interesse de agir em demandas que visam a obtenção de benefícios previdenciários. Abaixo, colaciona-se a ementa de dois julgados em que foi consagrado tal entendimento:

 

PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO CONCESSÓRIA DE BENEFÍCIO. PROCESSO CIVIL. CONDIÇÕES DA AÇÃO. INTERESSE DE AGIR (ARTS. 3º E 267, VI, DO CPC). PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. NECESSIDADE, EM REGRA.

 

1. Trata-se, na origem, de ação, cujo objetivo é a concessão de benefício previdenciário, na qualo segurado postulou sua pretensão diretamente no Poder Judiciário, sem requerer administrativamente o objeto da ação.

 

2. A presente controvérsia soluciona-se na via infraconstitucional, pois não se trata de análise do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF). Precedentes do STF.

 

3. O interesse de agir ou processual configura-se com a existência do binômio necessidade-utilidade da pretensão submetida ao Juiz. A necessidade da prestação jurisdicional exige a demonstração de resistência por parte do devedor da obrigação, já que o Poder Judiciário é via destinada à resolução de conflitos.

 

4. Em regra, não se materializa a resistência do INSS à pretensão de concessão de benefício previdenciário não requerido previamente na esfera administrativa.

 

5. O interesse processual do segurado e a utilidade da prestação jurisdicional concretizam-se nas hipóteses de a) recusa de recebimento do requerimento ou b) negativa de concessão do benefício previdenciário, seja pelo concreto indeferimento do pedido, seja pela notória resistência da autarquia à tese jurídica esposada.

 

6. A aplicação dos critérios acima deve observar a prescindibilidade do exaurimento da via administrativa para ingresso com ação previdenciária, conforme Súmulas 89/STJ e 213/ex-TFR.

 

7. Recurso Especial não provido.

 

(REsp 1310042/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/05/2012, DJe28/05/2012) [original sem destaque]

 

PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO CONCESSÓRIA DE BENEFÍCIO. PROCESSUAL CIVIL. CONDIÇÕES DA AÇÃO. INTERESSE DE AGIR (ARTS. 3º E 267, VI, DO CPC). PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. NECESSIDADE, EM REGRA.

 

1. Hipótese em que, na origem, o segurado postulou ação com o escopo de obter benefício previdenciário sem ter requerido administrativamente o objeto de sua pretensão.

 

2. A presente controvérsia soluciona-se na via infraconstitucional, pois não se trata de análise do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF). Precedentes do STF.

 

3. O interesse de agir ou processual configura-se com a existência do binômio necessidade-utilidade da pretensão submetida ao Juiz. A necessidade da prestação jurisdicional exige demonstração de resistência por parte do devedor da obrigação, mormente em casos de direitos potestativos, já que o Poder Judiciário é via destinada à resolução de conflitos.

 

4. Em regra, não se materializa a resistência do INSS à pretensão de concessão de benefício previdenciário não requerido previamente na esfera administrativa.

 

5. O interesse processual do segurado e a utilidade da prestação jurisdicional concretizam-se nas hipóteses de a) recusa de recebimento do requerimento ou b) negativa de concessão do benefício previdenciário, seja pelo concreto indeferimento do pedido, seja pela notória resistência da autarquia à tese jurídica esposada.

 

6. A aplicação dos critérios acima deve observar a prescindibilidade do exaurimento da via administrativa para ingresso com ação previdenciária, conforme as Súmulas 89/STJ e 213/ex-TFR.

 

7. Agravo Regimental provido.

 

(AgRg no AREsp 152.247/PE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, Rel. p/ Acórdão Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/05/2012, DJe08/02/2013)

 

                        Percebe-se, portanto, que a Segunda Turma do STJ firmou entendimento de que o interesse processual do segurado e a utilidade da prestação jurisdicional concretizam-se nas hipóteses de recusa de recebimento do requerimento e negativa de concessão do benefício previdenciário (seja pelo concreto indeferimento do pedido, seja pela notória resistência da autarquia à tese jurídica esposada).

 

                        Assim, não se enquadrando a situação concreta numa das hipóteses mencionadas, não se materializa a resistência do INSS à pretensão de concessão do benefício previdenciário não requerido previamente na esfera administrativa e, por consequência, não há se falar em interesse processual.

 

                        Ao lado do aspecto processual até agora discutido, certas particularidades e dados estatísticos, de natureza administrativa, também aconselham a adoção do entendimento que exige a prévia postulação administrativa. No voto proferido no REsp 1.310.042/PR, o Ministro Herman Benjamin aborda tais aspectos:

 

No presente caso é incontroverso que o autor da ação não requereu administrativamente o benefício previdenciário e alega a negativa sistemática do INSS à concessão das prestações requeridas para justificar o ajuizamento direto da ação.

 

Essa assertiva é comum no meio jurídico. Por outro lado, não conformado por este "senso comum", consultei alguns dados sobre esse contexto.

 

Conforme consta no site do INSS (http://www.inss.gov.br em Estatísticas), nos Boletins Estatísticos da Previdência Social de 2011, foram requeridos, no citado ano, 8.046.153 benefícios e indeferidos 3.250.290 pedidos. Isso significa, numa estimativa, um índice de indeferimento de benefícios, naquele ano, de 40,40%.

 

Seguindo o referido índice, significa, em termos gerais, que, de cada 10 requerimentos, 6 são deferidos e 4 são indeferidos.

 

Nesse ponto convém mencionar importante consequência que a adoção da corrente da desnecessidade de prévia postulação administrativa acarreta ao Poder Judiciário. Levando-se em conta a proporção acima constatada, em tese a cada 10 processos apresentados no Poder Judiciário sem submissão anterior ao INSS, 6 poderiam ter sido concedidos administrativamente.

 

A questão que considero relevante nessa análise é que o Poder Judiciário está assumindo, ao afastar a obrigatoriedade de prévio requerimento administrativo, atividades de natureza administrativa, transformando-se, metaforicamente é claro, em agência do INSS.

 

Constatei, ainda, segundo levantamento realizado pela Procuradoria Federal Especializada no INSS (http://www.agu.gov.br/pfeinss, em "Relatório Final de Gestão – setembro de 2008 a janeiro de 2011"), que aquela instituição apura índice percentual da quantidade de concessões de benefícios realizadas pelo Poder Judiciário.

 

Segundo ali consta, em 2010, de todas a concessões de benefícios, 8,51% foram por força de decisão judicial. Ou seja, em linhas gerais, de cada 10 concessões, 9 são feitas pelo INSS e 1 é feita pelo Poder Judiciário.

 

Mantendo-se o entendimento da prescindibilidade do prévio requerimento administrativo para demandar judicialmente, esse percentual tende a aumentar, por óbvio.

 

A repercussão da tese jurisprudencial aqui contraposta atinge também a própria autarquia previdenciária. Observada a proporção de concessões administrativas acima, o INSS passa a ter que pagar benefícios previdenciários, que poderia deferir na via administrativa, acrescidos pelos custos de um processo judicial, como juros de mora e honorários advocatícios.

 

                        Os números expostos são esclarecedores.

 

                        O grande volume de processos envolvendo prestações previdenciárias que assolam o Judiciário, bem como as mazelas existentes na Autarquia Previdenciária (falta de estrutura adequada, escassez de servidores, etc.), podem dar a falsa impressão que grande parte das postulações formuladas administrativamente são injustamente indeferidas.

 

                        No entanto, a situação não se apresenta dessa forma. A grande maioria das concessões de benefícios previdenciários são oriundas da atuação administrativa propriamente dita e não decorrentes de demandas judiciais.

 

                        É certo que existem situações em que as decisões administrativas encontram-se eivadas de vícios das mais variadas ordens. É justamente nesses casos que o Judiciário deve atuar – corrigindo as ilegalidades porventura cometidas pela Administração em detrimento do cidadão –, e não substituir a Administração, fazendo as vezes de agência do INSS, no desempenho de atividades puramente administrativas.

 

                        Neste contexto, em que pese a jurisprudência ser majoritária no sentido da desnecessidade do prévio requerimento administrativo, reputo que os precedentes acima mencionados, oriundos da Segunda Turma do STJ, aliados à futura manifestação do STF a respeito do tema, a depender da orientação, podem configurar o início de uma mudança de entendimento, cujo efeito principal seria retirar do Judiciário inúmeros casos que deveriam ser analisados, num primeiro momento, pela Administração, para, somente após eventual resistência, serem efetivamente“judicializados”.

 

Referências


[1] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Método, 2010, p. 82.
 

[2] BRASIL. Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 17.06.2013.

[3] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 15ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2013, p. 246.

[4] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Obra citada. p. 87.

[5] DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 402.

[6] DIDIER JR., Fredie. Obra citada. p. 249.

[7]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em 17.06.2013. RESP 1.310.042/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin.

[8]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 17.06.2013.

[9]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em 17.06.2013.

 

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