A necessidade de judicialização do direito à saúde: histórico e posicionamento doutrinário e jurisprudencial pós constituição federal de 1988.


Portiagomodena- Postado em 19 junho 2019

Autores: 
Anaximandro Cairo Silva de Matos

Resumo: O direito à saúde navega na Constituição Federal como um dos mais importantes direitos e garantias da pessoa humana. Tal importância decorre do próprio direito à vida, pois sem saúde, não se pode garantir a existência humana. Atrelados um ao outro, a Carta Magna de 1988 buscou a garantia do acesso igualitário e total aos serviços de saúde prestacionados pelo Estado. No entanto, por diversos fatores, tais prestações encontram nuances de dificuldade, seja pela má prestação do serviço ou até mesmo pela inexistência desta prestação, o que acarreta em grande parte dos casos, em demandas judiciais que buscam a satisfação do importante direito à saúde. A história nos mostra uma evolução doutrinária e jurisprudencial que se iniciou com a negativa total do direito, passou pela garantia total e finalmente chegou à posição que está vigente contemporaneamente, que é a análise de mérito dos casos em concreto e que leva em consideração a dosimetria entre o mínimo existencial alegado pelos administrados e a reserva do possível, tese dos administradores.

Palavras-chave: Direito à saúde; judicialização; histórico; doutrina; jurisprudência.

Sumário: Introdução. 1. O direito à saúde nas constituições brasileiras. 1.1. Saúde nas constituições até 1988. 1.2. Direito a saúde na Carta Magna de 1988. 1.3. Posicionamento dos Tribunais Superiores. 1.4. Hipóteses de diminuição da judicialização do direito a saúde. Conclusão. Referências.

 


INTRODUÇÃO

Com o advento da Constituição Federal de 1988, apreciamos diversas novidades no campo dos direitos fundamentais. Como prisma da Carta Magna, temos em seu art. 1ª, III, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana.

Para que tal fundamento seja garantido, é necessário ofertar aos administrados da República o mínimo existencial. Dentre as necessidades básicas apresentadas por determinado povo, está o livre e amplo acesso à Saúde.

No entanto, devido a diversos fatores, como a falta de legislação especializada por parte do legislativo e a má gestão de recursos públicos por parte do executivo, é necessária a intervenção do Poder Judiciário para que seja garantida a execução do texto magno.

Neste artigo buscaremos contextualizar de forma breve o direito a saúde antes de sua elevação a condição de direito social fundamental revisando sua previsão em constituições anteriores e analisando sua atual previsão constitucional.

Diariamente, como veremos a seguir, o judiciário é acionado por diversas vezes para que garanta o acesso à saúde. São casos específicos e individualizados que sempre têm no judiciário a “última ratio” para que sejam saciadas as necessidades do enfermo, seja para aquisição de medicamentos, seja para concessão de tratamento médico. Logo, faz-se mister a abordagem técnica e jurídica de tais casos, pois a sociedade e suas nuances devem ser alvos de peças jurídicas que adicionem valor a casos concretos, servindo como embasamento para consultas de advogados, promotores e magistrados, para que as decisões proferidas por estes sejam as mais justas possíveis.

Neste trabalho acadêmico, nos valemos de pesquisas bibliográficas para enriquecer e manter uma base sólida de doutrinas e jurisprudências, sempre buscando demonstrar os pensamentos de grandes doutrinadores e as decisões e posicionamentos dos tribunais superiores do país.

Inicialmente, abordaremos um breve histórico do direito a saúde nas constituições do país, considerando a previsão ou não do direito e sua natureza, incluindo a atual conjuntura jurídica trazida pela Bíblia Política de 1988.

Ademais, passaremos a análise dos principais posicionamentos dos tribunais superiores, sempre buscando demonstrar as abordagens mais aceitas no mundo jurídico.

Sem pretender esgotar a amplitude e abrangência que o tema dispõe, vamos demonstrar também as hipóteses em que se possa diminuir a procura do judiciário para garantia do direito analisado, buscando distribuir as competências inerentes a cada esfera e poder da Federação.


1. O DIREITO À SAÚDE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

1.1. SAÚDE NAS CONSTITUIÇÕES ATÉ 1988

Ao estudarmos o histórico dos direitos e garantias nas Constituições Brasileiras, percebemos que nem todos foram agraciados com a importância que tem contemporaneamente. Em especial, o direito a saúde nunca foi tido e apresentado como um direito fundamental inerente a pessoa humana, ou seja, o Estado se abstinha de se posicionar como garantidor de tal direito, valorando os direitos civis e políticos e esquecendo deste – e de todos - direito social por um tempo considerável no país.

A exemplo, temos a Constituição de 1824, que apenas trouxe os “direitos civis e políticos dos cidadãos”, sem qualquer menção a organização de serviços à saúde como dever do Estado.

Ao passo de sua antecessora, a Constituição da República de 1891 também não inovou acerca da ordem econômica e social, sem fazer nenhuma menção ao tema relacionado ao direito à saúde, tal perspectiva justificava-se pela ideologia liberal presente no final do século XIX e bastante influenciadora da Carta de 1891.

No entanto, a partir da Constituição de 1934, rompe-se o Estado liberal e passasse a democracia social. Nesta constituição, temos o marco inicial da previsão constitucional explicita do direito à saúde, sendo instituída no art. 10, inciso II, o texto magno previu a competência concorrente entre a União e os Estados para assistir a população e a saúde pública.

E a previsão constitucional foi além, em seu art. 138, ordenava também que as três esferas do governo deveriam adotar medidas legiferantes e administrativas para coibir a mortalidade infantil, assim como deveria atentar para a higiene pessoal para que fossem combatidas as propagações de doenças venéreas.

Tal constituição possuía um capítulo exclusivo para a Ordem Econômica e Social, no entanto, sua abrangência se dava apenas aos tidos como trabalhadores. Eram estes os abrangidos pelo art. 121, alínea h, que ordenava a legislação trabalhista que previsse a assistência médica e sanitária aos trabalhadores, além de garantir alguns direitos a gestante.

A sua sucessora, Constituição Federal de 1937, ao se pronunciar sobre o tema, inovou quanto a competência legislativa, ou seja, determinou em seu art. 16, inciso XXVII, que cabe a União Federal legislar sobre as “normas fundamentais da defesa e proteção da saúde, especialmente da saúde da criança”. Aos entes federativos, cabiam legislar suplementarmente, preenchendo as lacunas deixadas pela União, devendo atentar para não diminuição ou dispensa de assuntos específicos como “assistência pública, obras de higiene popular, casa de saúde, clínicas, estações de clima e fonte medicinais.” (Art. 18, alínea c, CF/1937).

Quanto aos direitos sociais, esta constituição continuou com o mesmo texto da CF/1934, priorizando os trabalhadores e gestantes.

Já em ares de democracia perpetrados pela Constituição de 1946, a Carta Magna manteve a competência legislativa exclusiva da União em relação à proteção à saúde e fortaleceu a representação dos trabalhadores por meio dos sindicatos. Estes, eram, agora, os responsáveis para a execução de serviços médicos aos seus filiados, e ofertados através de institutos, que por sua vez eram manutenidos por contribuições sindicais, ou seja, apenas os trabalhadores eram os contemplados pela assistência à saúde.

Os outros trabalhadores informais e desempregados não possuíam cobertura médica, já que não eram filiados aos sindicatos dos trabalhadores, e eram atendidos por Unidades Sanitárias dos Estados ou por instituições filantrópicas, sendo submetidos a atendimentos como indigentes. Neste caso, nos valemos dos ensinamentos de Marcos Aurélio Moretto sobre o direito à saúde nas constituições anteriores:

[...] trabalhadores na informalidade que não tinham acesso a esses Institutos por não serem contribuintes. Eles eram atendidos por Unidades Sanitárias dos Estados em serviços de saúde com limitações nos níveis de complexidade. A internação hospitalar, para os não previdenciários, se dava pagando-a ou dispondo de outro tipo de convênio, ou mais comumente, atendido como “indigentes” [...] (MORETTO, 2002. p. 47.)

Já a Constituição de 1967, reconheceu em seu art. 8, inciso XIV, a competência da União para “estabelecer planos nacionais de educação e saúde” e manteve a competência sobre normas gerais de defesa e proteção à saúde sob a égide da União. Manteve ainda os direitos dos trabalhadores inovando na utilização do Princípio da Precedência da fonte de custeio, conforme art. 158: “nenhuma prestação de serviço de assistência ou de benefício compreendido na previdência social será criada, majorada ou estendida, sem a correspondente fonte de custeio.”

Com a implementação de um Estado Democrático de Direito, inaugurado pela promulgação da Constituição Cidadã de 1988 e em que ocorreu a consagração do princípio da Dignidade da Pessoa Humana é que houve o reconhecimento da importância que possui a saúde, direito de todos e dever do Estado em realizar sua promoção através de ações e serviços básicos de saúde, buscando a diminuição dos riscos a população.

1.2. DIREITO A SAÚDE NA CARTA MAGNA DE 1988

A Constituição Federal de 1988, ao contrário de sua precursoras, inovou ao prever um capítulo exclusivo aos direitos sociais dentro do Título II, que vai do artigo 6ª ao 11. Sobre essa evolução, Álvaro Vinícius Paranhos Severo e Faustino da Rosa Júnior (SEVERO, 2007. p. 69) afirmam que:

 

O título II da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) é uma das principais partes da Constituição, pois consagra a tábua de direitos e deveres fundamentais que a comunidade política brasileira reconhece, dentre outros direitos humanos, e assume o compromisso de, conjuntamente com cada um de seus integrantes, possibilitar ao máximo a vivência efetiva e equitativa, bem como a garantia do exercício harmônico de cada um destes direitos e deveres.

 

O artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 contempla um arcabouço de direitos prestacionais por parte do Estado, porém, só encontramos referência direta ao direito à saúde no artigo 196, que prevê a determinação que a saúde é dever do Estado e direito de todos. Para o ilustre doutrinador José Afonso da Silva, os direitos sociais “são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais”. (SILVA, 2007.p. 286.).

A atual conjuntura constitucional é obra de uma importante discursão sobre saúde e suas definições. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), saúde não seria apenas a ausência de enfermidades, mas também, um bem estar físico, mental e social. Tal mudança de paradigmas, observadas na evolução do direito à saúde nas constituições brasileiras, se deu após a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986) e do 1º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (1986) que elaboram diretrizes a respeito do direito à saúde, possibilitando que fossem inseridas no texto constitucional de 1988.

É importante citarmos os ensinamentos de Ingo Sarlet, onde relata que a CRFB/1988 não somente incutiu a saúde como um bem jurídico tão importante que mereceu tutela constitucional, mas foi além “consagrando expressamente a saúde como direito fundamental e outorgando-lhe uma proteção jurídica diferenciada no âmbito jurídico-constitucional”. (SARLET, 2007, p. 2.)

Ressaltasse que o direito a saúde possui dois primas centrais: o negativo e o positivo. O primeiro visa salvaguardar a saúde individual e coletiva contra as ingerências do Estado ou de particulares.

No segundo caso, ou seja, no aspecto positivo do direito social, cabe ao Estado a prestação do dever de proteção à saúde pessoal e pública, assim como a organização de suas ações com fins garantis.

Contemporaneamente, temos o ilustre doutrinador Pedro Lenza, que comenta acerca dessas duas vertentes que decorrem deste importante direito social, vejamos:

Como se sabe, a doutrina aponta dupla vertente dos direitos sociais, especialmente no tocante a saúde, que ganha destaque, enquanto direito social no texto de 1988: a) natureza negativa: o Estado ou particular devem abster-se de praticar atos que prejudiquem terceiros; b) natureza positiva: fomenta-se um Estado prestacionista para implementar o direito social. ( LENZA, 2014. p. 1183).

 

O art. 10 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991 prevê que a Seguridade Social – onde a saúde é um de suas ramificações – será financiada por toda a sociedade nos termos do art. 195 da Constituição da República e da mesma lei, se valendo de recursos federais, estaduais, distritais e municipais, além de contribuição social.

A leitura rápida do art. 196 da CF/1988 nos mostra que a saúde é um direito de todos e dever prestacional positivo do Estado, delimitando claramente que cabe a este a responsabilização em garantir tal direito social a todos. Para fortalecer a leitura deste artigo, trazemos os comentários de Germano Schwartz, que afirma: 

 

[...] No referido artigo, encontramos também que o dever do Estado em relação à saúde deve ser garantido mediante políticas sociais e econômicas. Aqui estamos diante de um Estado Interventor, e, também, diante da primazia da ação estatal positiva na defesa do direito à saúde-  e jamais da inércia-  e conectando-se, essencialmente, à ideia de um direito social da saúde [...] (SCHWARTZ, 2001. p. 97.)

 

Outra previsão constitucional importante quanto ao tema deste artigo é o art. 198, que serve para ditar a organização das ações e serviços públicos de saúde, descriminando que estes entes garantidores integram uma rede regionalizada e devidamente hierarquizada, constituindo um único sistema, tendo como diretrizes a descentralização, a integralidade e a participação popular. Portanto, tal dispositivo constitucional é instrumento basilar para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Lei Federal n° 8.080/90.

O que podemos observar é que o Constituinte originário se preocupou em definir para o Estado o papel de promover programas, ações e serviços públicos de saúde, sempre assegurando a todos indivíduos indistintamente o acesso universal e igualitário ao direito a saúde.

 

1.3. POSICIONAMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Naturalmente as ações intentadas judicialmente gozam de grande complexidade, pois neste tipo de demanda existe uma infinidade de pretensões, pois envolve uma lastra gama de doenças e suas respectivas soluções, que podem ser a prestação de medicamentos, próteses, vagas em unidades de terapia intensiva etc.

Somado a isso, ainda é precária a situação regulamentadora acerca da completa implementação da assistência à saúde esculpida no art. 198, inciso II, da Carta da República de 1988.

Todos esses fatores culminaram na alteração da Lei 8.080/1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes pela edição da Lei 12.401/2011, com escopo de disciplinar o princípio da integralidade de assistência à saúde.

Com base na referida legislação e no princípio máximo constitucional da inafastabilidade da jurisdição, restou ao Poder Judiciário criar parâmetros para a solução dos casos concretos demandados juridicamente. O resultado de todo esse processo foi o nascimento de uma jurisprudência uniforme criada pelos tribunais superiores estatais para um regramento jurídico de âmbito nacional, de tal modo que a dispensabilidade do estudo e compreensão de tal jurisprudência orquestrada pelo STF e STJ é motivo de grande erro, pois privaria o indivíduo da captação dos parâmetros usados nas cortes máximas sobre o tema.

Portanto, é importante a análise da posição jurisprudencial desses dois tribunais, assim como a evolução de tais posições prolongadas no tempo. Então, observamos pelo menos três fases diferentes na criação da posição sustentada pelos ministros atualmente.

Na primeira e mais antiga fase, iniciada no inicio dos anos 90, observava-se a superioridade Estatal, blindando a Fazenda Pública Nacional em detrimento da negativa do direito fundamental da dignidade da pessoa humana.

Em um julgado do STJ o relator do caso foi o ministro Demócrito Reinaldo, que teve como argumento para manter a negativa já perpetrada pelo Executivo e Judiciário Estadual a afirmativa de que as normas garantistas do direito à saúde presentes na CRFB/1988 são de natureza programática, necessitando de regulamentação legislativa para oferecer eficácia.

Com base nesses argumentos, decidiu o relator, que não haveria de se falar em direito líquido e certo a ser tutelado por Mandado de Segurança. Vejamos:

 

In casu, consoante se observa da inicial e demais peças do processo, a impetrante invoca, a favor de sua pretensão, regras constitucionais (art. 6°, 195, 196, 204 e 227) que, na lição dos constitucionalistas, constituem “normas programáticas”, ou, em outras palavras, “normas de eficácia limitada”. Essas normas, embora tenham imediata aplicação, “não têm força para desenvolver-se integralmente” – ou não têm eficácia plena, posto que dependem, para ter incidência sobre os interesses tutelados, de normatividade ulterior – ou de legislação complementar. (STJ, RMS 6564/RS, Primeira Turma, Rel. Min. DEMÓCRITO REINALDO, j. 23/05/1996, DJ 17/06/1996.)

Para reforçar seu posicionamento, completou o ministro:

 

A satisfação do direito pleiteado, inclusive com base no preceito da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), demandaria previsão expressa de dotações orçamentárias – e com fim específico – ao menos, como acentuou a autoridade coatora, ao nível dos programas aprovados e desenvolvidos pelos serviços de saúde pública, os quais, por seu turno, em sua execução, sujeitam-se ao rigoroso sistema de controle orçamentário. (Ibid.)

 

Assim, o que se abstrai do caso é que mesmo sendo um direito intimamente ligado à vida, o ilustre ministro levantou duas teses para justificar a ausência do Estado no caso em concreto. Inicialmente alegou a natureza programática das normas garantidoras de direitos sociais e posteriormente suscitou a reserva do possível, onde os recursos públicos não deveriam ser ponderados em casos reais do direito à saúde – e consequentemente, à vida.

Na segunda etapa ocorrida no início deste século, porém, houve a inversão dos institutos, onde a pronúncia de diversos julgados era para que se valorasse o princípio da dignidade da pessoa humana, tendo como base o mínimo existencial, deixando em segundo plano o processo fazendário. No entanto, o que se pôde abstrair é que os ministros se ocuparam apenas em julgar o conflito entre o mínimo existencial – tese dos requerentes – e a reserva do possível – tese dos requeridos, sem se ater especificadamente ao pedido do caso em concreto.

Tal posição do guardião das normas federais começou a mudar em meados do ano 2000, quando analisou o Recurso em Mandado de Segurança nº 11.183/PR já intentado pela posição manifestada pelo STF em que confirmou a denegação do Recurso Extraordinário n. 195.192, baseando-se apenas na importante observação feita pelo ministro Marco Aurélio no julgamento deste último, da qual nos valemos:

 

No caso, restou constatada enfermidade rara e que alcança cerca de vinte crianças em todo o Estado do Rio Grande do Sul com sérios riscos para a saúde e desenvolvimento das mesmas. O Estado deve assumir as funções que lhe são próprias, sendo certo, ainda, que problemas orçamentários não podem obstaculizar o implemento do que previsto constitucionalmente. (STF, RE 195192/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 22/02/2000; DJ 31/03/2000, p. 60.)

O entendimento que se abstrai do voto do ilustre ministro é que problemas financeiros e orçamentários, além dos burocráticos e legais não poder criar barreiras na implementação do direito fundamental a saúde previsto constitucionalmente.

Isto posto, podemos chegar a algumas conclusões acerca desta segunda fase: a vida foi tratada como o bem mais precioso do ser humano, que se inexistindo, também inexiste os demais valores e direitos sociais; o eventual desrespeito das burocráticas formalidades deve se sobrepor quando o objeto é a urgência em salvaguardar um estado de saúde, uma vida; se torna ilógico discutir as formalidade programáticas da legislação constitucional quando a própria relevância desta norma é gritante e urgente. Nestes termos, a segurança foi concedida com fim de compelir a autoridade coautora a prestacionar o necessário a recorrente.

Quando, pouco tempo depois, os tribunais começaram a julgar o mérito das ações propriamente dito, nasceu um terceiro e último posicionamento, pois teve a negativa de algumas demandas relacionadas ao direito à saúde. Esta terceira fase vem sendo refinada desde então, com a realização de importantes eventos que ajudaram a moldar a posição sustentada hoje: a) a realização, em 2009, de uma audiência pública pelo STF; b) o julgamento do Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada n. 175, em 17 de março de 2010; e c) a edição da Lei n. 12.401/2011, já explicitada anteriormente neste artigo.

            Essa nova etapa no processo de lapidação dos julgados referentes ao direito à saúde foi iniciada na primeira década dos anos 2000. Neste caso, os tribunais superiores iniciaram um processo de superação de que a saúde era sinônimo de ter “direito a tudo”. A análise agora se voltava para o mérito dos casos em concreto, levando em consideração a parte técnica por trás do conflito, inaugurou-se então uma serie de julgados que denegou a usuários do SUS a prestação de determinados serviços com inferência, principalmente, no desacordo com o padrão de políticas públicas anteriormente delineadas.

Nessa nova fase, destaca-se uma audiência pública realizada pelo STF em 2009, que finalmente estabeleceu parâmetros nítidos para a prática racional da judicialização do direito à saúde. Citaremos alguns exemplos dessa terceira e ultima fase: o Mandado de Segurança n. 8895/DF, do STJ, a Suspensão de Segurança n. 3073 e o Agravo Regimental na Tutela Antecipada n. 175, os dois últimos do STF.

            Em resumo, a atual posição do Supremo Tribunal Federal é um retrato do que este artigo classifica como a terceira fase de uma série de evoluções doutrinárias e jurisprudenciais, em outras palavras, o judiciário brasileiro está mais perto do que nunca do equilíbrio entre a necessidade dos usuários e a organização e racionalização dos serviços públicos voltados à saúde.

1.4. HIPÓTESES DE DIMINUIÇÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE

Possíveis soluções para o problema da judicialização do direito à saúde são notórias, como por exemplo, a resolução individualizada por parte do legislador de lacunas que interferem na prestação do direito fundamental e as aplicações direcionadas e racionais de verbas públicas na saúde por parte do executivo. Também é necessária, além das medidas individuais já citadas, a união entre os Poderes e os Entes da República.

            O legislador deve buscar racionalizar projetos de leis que busquem identificar os casos com grande repercussão jurisprudencial e, com bons olhos, tentar legislar sobre tais casos, estreitando assim a correlação legislador-judiciário, fazendo com que os tribunais possam tomar decisões com base em legislações que busquem satisfazer o direito, ora tolhido, pelo Estado.

            Já o executivo, além de buscar a aplicação mais racionalizada de verbas públicas na saúde, deve propor ao legislativo, soluções técnicas e viáveis para que em conjunto, cheguem a um consenso sobre a destinação de investimentos e seus devidos percentuais.

            Ademais, buscar desburocratizar e aumentar o número de serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde, ofertando assim, serviços que atualmente buscam no judiciário uma forma de execução forçada por parte dos entes estatais.

            Por fim, cabe ao judiciário, como já vem sendo feito presentemente, analisar os casos em concreto, levando em consideração sempre a dosimetria entre a dignidade da pessoa humana, o mínimo existencial e a reserva do possível, buscando sempre ajustar os interesses do administrado com os da administração.

O direito à saúde tem como base a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental instituidor da República Federativa do Brasil, e como tal, deve ter atenção especial por parte do Estado. No entanto, como se observou ao longo deste trabalho, muitas vezes é necessário judicializar as pretensões dos administrados para que estes possam ter acesso à saúde e consequentemente, ao direito à vida. Importante salientar, que como em diversas áreas do direito, o posicionamento da doutrina e da jurisprudência, se amoldou a sociedade, refletindo a tão sonhada prestação assistencial por parte da gestão pública.

Nosso trabalho buscou mostrar que uma evolução aconteceu e está acontecendo, ou seja, demonstrou a história constitucional do direito à saúde. Buscou demonstrar também, a posição de diversos doutrinadores e por último, o posicionamento jurisprudencial das mais importantes cortes do país.

Por fim, sabe-se que o acesso a serviços públicos que garantam a continuidade da vida humana deve ser encarado pelo Estado com a devida importância que a história, os doutrinadores, os julgadores e, principalmente, a nossa Constituição Cidadã de 1988, nos garantem.

 


REFERÊNCIAS:

BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>. Acesso em: 09 set. 2018.

Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm>. Acesso em: 09 set. 2018.

MORETTO, Marcos Aurélio.  A política e a prática de saúde: suas consonâncias e dissonâncias.  Erechim: EDIFAPES, 2002. p. 47.

BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm>. Acesso em: 09 set. 2018.

SILVA, Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007.p. 286.

CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 8., 1986, Brasília, DF.  Anais... Brasília, DF, Ministério da Saúde, 1987.

SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE). Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 11, p. 2, set./out./nov., 2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/codrevista.asp?cod=233>. Acesso em: 09 set. 2018.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado / Pedro Lenza. – 18. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014. P. 1183.

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001. p. 97.

BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm>. Acesso em: 09 set. 2018.

BRASIL. Lei n. 12.401 de 28 de abril de 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12401.htm>. Acesso em: 09 set. 2018.

 

https://jus.com.br/artigos/72293/a-necessidade-de-judicializacao-do-direito-a-saude-historico-e-posicionamento-doutrinario-e-jurisprudencial-pos-constituicao-federal-de-1988