A legitimidade da decisão do STF a favor da união homoafetiva frente aos anseios de uma sociedade plural


PorFernanda dos Passos- Postado em 16 novembro 2011

Autores: 
CRUZ, Cleidiana da Conceição
SILVA, Nayara Maria Pereira da

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito do posicionamento favorável ao reconhecimento jurídico da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Para isso, será dada ênfase ao papel fundamental dos movimentos sociais para o reconhecimento dos direitos das minorias, em especial o dos homossexuais, dentro de um Estado Democrático de Direito. Serão utilizados também os referenciais teóricos de Jürgen Habermas, em seu livro “A inclusão do outro”. Procurar-se-á demonstrar que as lutas por reconhecimento e inclusão das minorias encontram respaldo em diversos princípios constitucionais e terminam por exigir do sistema jurídico a criação de direitos que atendam os anseios de uma sociedade cada vez mais pluralista. Este trabalho foi orientado pela Profª Drª Maria Sueli Rodrigues de Sousa.

Palavras-chave: União homoafetiva; Movimentos sociais; Democracia; Reconhecimento; Constituição.

Sumário: 1. Introdução; 2. A importância dos movimentos sociais na luta por reconhecimento; 3. Fundamentação constitucional da decisão; 4. Inclusão social em Habermas; 5. Considerações finais.

1. Introdução

O presente artigo tem por objetivo analisar a relevância que tiveram os movimentos sociais que lutam pelos direitos das minorias para a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu juridicamente a união estável entre homossexuais e o consequente fortalecimento do paradigma do Estado Democrático de Direito, dentro de uma perspectiva constitucional do pluralismo jurídico. Além disso, serão trabalhados alguns pontos teóricos de Jürgen Habermas em seu livro “A inclusão do outro”.   

No dia 5 de maio de 2011, em uma decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal, corte máxima do Judiciário brasileiro, decidiu por unanimidade, considerar como união estável as relações entre pessoas do mesmo sexo. Com isso, a união homoafetiva deixou de ser considerada uma mera sociedade de fato e passou a ser reconhecida como uma entidade familiar. A partir dessa decisão, os casais homossexuais passam a ter os mesmos direitos dos casais heterossexuais em regime de união estável, como pensão e herança em caso de morte de um dos parceiros, divisão de bens e pensão alimentícia em caso de separação, etc.

O julgamento do STF foi feito com base em duas ações: Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4277) e uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 132). Após se verificar que os benefícios previdenciários requeridos aos servidores homossexuais do estado do Rio de Janeiro já haviam sido reconhecidos em lei a ADPF foi transformada em ADI. A Procuradoria-Geral da República ajuizou a ação com dois objetivos: o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e a equiparação de direitos das uniões homoafetivas às uniões entre casais heterossexuais. O argumento principal da ADPF transformada em ADI, proposta pelo estado do Rio de Janeiro, foi o de que o não reconhecimento da união homoafetiva contradiz preceitos fundamentais constitucionais como o princípio da igualdade e da liberdade e o princípio da dignidade da pessoa humana.

2. A importância dos movimentos sociais na luta por reconhecimento

O modelo atual de sociedade resultou das diversas transformações socioeconômicas e políticas e das lutas sociais ocorridas nos últimos séculos, que proporcionaram à humanidade uma série de conquistas, dentre elas destaca-se a ampliação dos direitos fundamentais. O atual paradigma do Estado Democrático de Direito surgiu com a missão de integrar os direitos individuais e coletivos, agregando outros direitos que atendam às novas necessidades de uma sociedade que está em constante evolução, garantindo democracia e liberdade a todos sem distinção.

Os movimentos sociais desempenharam e continuam desempenhando um papel importante nessa luta por novos direitos. É cada vez mais comum a emergência de normas baseadas não apenas em fontes tradicionais, estatais, mas que entendem o fenômeno jurídico mediante a informalidade de ações concretas e atores coletivos. O uso exclusivo das fontes estatais já não satisfaz mais as necessidades oriundas de um novo contexto social, cultural e, consequentemente, pluralista. Assim surgem os movimentos sociais como novos sujeitos coletivos, com o objetivo de dar voz àqueles que de outra forma jamais seriam percebidos enquanto indivíduos portadores de direitos. A luta das minorias, dos grupos étnicos pelo reconhecimento de sua identidade diferenciada, de comunidades pela preservação de suas práticas culturais locais e etc. torna-se mais fácil dentro do âmbito de tais movimentos, que desfrutam de uma ampla capacidade de organização e reivindicação. De acordo com Wolkmer:

“A mobilização dos segmentos sociais oprimidos e excluídos dos direitos implica tanto a luta para tornar efetivos os direitos proclamados e concebidos formalmente (não são garantidos e nem aplicados) quanto a exigência para impor novos direitos que ainda não foram contemplados por órgãos oficiais estatais e pela legislação positiva institucional”.[1]

Na verdade, o que os movimentos sociais objetivam é o reconhecimento de uma ordem jurídica plural, compatível com a sociedade atual, de viés também pluralista. O direito não pode se manter alheio ao anseio de tantos grupos desprivilegiados, invisibilizados. Era dessa forma que os homossexuais se sentiam antes do STF proferir decisão favorável ao reconhecimento jurídico da união homoafetiva como uma entidade familiar.

É importante ressaltar que esse reconhecimento somente surgiu devido às lutas, reivindicações e ao papel imprescindível dos movimentos sociais que há anos almejavam a paridade de direitos entre homossexuais e heterossexuais. A decisão do STF, então, apesar de advir do Poder Judiciário, é muito mais um reflexo de um longo contexto de lutas do que das 11 horas de julgamento proferidas pelos ministros do Supremo. Assim faz-se necessário entender como surgiram as organizações de defesa dos grupos GLBT.

O movimento de Defesa dos Direitos dos Homossexuais teve inicio na Europa, no fim do século passado tendo como principais bandeiras de luta: a descriminalização da homossexualidade e o reconhecimento dos direitos civis dos homossexuais. Após a Segunda Guerra Mundial esse movimento se expandiu para outros lugares.[2]

O marco inicial do movimento homossexual mundial ocorreu em 28 de Junho de l969, quando no Bar Stonewall, em New York, reduto gay, alvo frequente de ações policiais, homossexuais se rebelaram contra a perseguição policial, travando uma batalha que durou vários dias. A partir de então, o dia 28 de Junho passou a ser considerado o “Dia Internacional do Orgulho Gay e Lésbico”. No Brasil o movimento teve inicio em 1978 com a fundação do jornal Lampião, que era o principal instrumento de comunicação da comunidade homossexual. Em março de 1979, em São Paulo, foi criado o “Somos”, primeiro grupo de homossexuais organizados. Posteriormente surgiram diversos grupos pelo Brasil, inconformados com o tratamento discriminatório dispensado aos homossexuais.[3]

Nestes vários anos de luta, o Movimento Homossexual Brasileiro obteve importantes vitórias para o reconhecimento dos direitos humanos desse grupo. Em l985, o Conselho Federal de Medicina foi orientado a excluir a homossexualidade do rol de doenças, que anteriormente era tida como “desvio e transtorno sexual”. Em 1989 foi incluída no Código de Ética dos Jornalistas a proibição de discriminação por orientação sexual. Em l990, nas leis orgânicas de 73 municípios e nas constituições dos Estados de Sergipe, Mato Grosso e Distrito Federal, foi incluída a expressa proibição de práticas discriminatórias devido à orientação sexual.[4]

 Dessa forma, percebe-se que os direitos já alcançados pelos homossexuais são fruto de diversas manifestações e reivindicações e não apenas do simples reconhecimento jurídico e que todo esse histórico influenciou a decisão do STF, que já não poderia se manter indiferente a essa realidade, que encontra amplo amparo em princípios constitucionais.

Os movimentos sociais acabam por exigir do Estado o reconhecimento da pluralidade social e cultural como parte do ordenamento jurídico. É necessário que os intérpretes enxerguem a Constituição como uma unidade plural. A ministra Carmem Lúcia, ao fundamentar o seu voto, faz referência a essa necessidade:   

“E o pluralismo não apenas se põe, expressamente, no art. 1º, inc. IV, da Constituição, como se tem também em seu preâmbulo, a sinalizar a trilha pela qual há de se conduzir o intérprete”.[5]

“As escolhas pessoais livres e legítimas, segundo o sistema jurídico vigente, são plurais na sociedade e, assim, terão de ser entendidas como válidas”.[6]

3.  Fundamentação constitucional da decisão

Praticamente todos os argumentos apresentados na ADI 4277, na ADPF 132 e na votação dos ministros basearam-se em princípios constitucionais. De acordo com o exposto na ADI 4277, a legitimidade do reconhecimento das uniões homoafetivas pode ser extraída dos seguintes princípios constitucionais: princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, inciso III), princípio da igualdade (art. 5°, caput), princípio da vedação de discriminações odiosas (art. 3°, inciso IV) e princípio da proteção à segurança jurídica.

O relator das ações ministro Ayres Brito, afirmou que não se pode interpretar a Constituição de maneira reducionista e foi incisivo ao considerar inconstitucional o artigo 1723 do Código Civil que considera a união estável apenas entre homem e mulher. Tal argumento torna-se extremamente interessante, pois não enxergar a pluralidade é reduzir a Constituição.

O ministro Luiz Fux apontou em sua argumentação a intolerância e o preconceito como principais empecilhos para o reconhecimento dos direitos dos casais homossexuais. Tais práticas é que devem ser consideradas inconstitucionais, uma vez que a união homoafetiva está amparada pelo principio constitucional da igualdade.

A ministra Cármen Lúcia afirmou que todas as práticas preconceituosas devem ser abolidas para que se tenha uma sociedade democrática. Destacou ainda que em um Estado Democrático de Direito não deve haver cidadãos considerados de segunda classe. Segundo ela, os que fazem a opção pela união homoafetiva não devem ser desigualados da maioria. As escolhas pessoais livres e legitimas devem ser respeitadas e entendidas como válidas. “o Direito existe para a vida, não a vida para o Direito”.[7]

4.   Inclusão social em Habermas

“Quanto ao direito vigente também ele precisa ser interpretado de maneira diversa em face de novas necessidades e situações de interesse. Essa disputa acerca da interpretação e imposição de reivindicações historicamente irresolvidas é uma luta por direitos legítimos, nos quais estão implicados agentes coletivos que se defendem contra a desconsideração de sua dignidade”.[8]

As reivindicações pela igualdade de direitos constituem-se em uma luta árdua por reconhecimento e inclusão, sendo que a partir dos movimentos sociais torna-se mais fácil atingir tais objetivos. O próprio Habermas em seu livro “A inclusão do outro” reconhece isso. Para ele, “sem movimentos sociais e sem lutas políticas, vale dizer, tal realização teria pouca chance de acontecer”[9].

Habermas é um autor que demonstra uma grande preocupação com a inclusão de grupos desprivilegiados e minorias étnicas. Ele reconhece que as sociedades são pluralistas e que é imprescindível a igual inclusão de todos os envolvidos e atingidos e o mesmo respeito por todos. Seu objetivo é legitimar tudo isso em um Estado Democrático de Direito. Para ele, nesse caso, deve haver uma coesão interna entre Estado de Direito e Democracia. Na verdade, segundo ele, não há Estado de Direito sem Democracia. Contudo, tais categorias são tratadas como objetos de disciplinas diferentes: a jurisprudência trata do direito e a ciência politica da democracia.[10]

Antes da decisão do STF os casais homossexuais poderiam realmente se perguntar: que Estado de Direito é esse sem Democracia? Agora, é possível começar a se visualizar uma coesão interna entre Estado de Direito e Democracia, ainda que incipiente, pois é inconcebível leis de direito sem procedimentos democráticos. A igualdade deve estar intrínseca a qualquer norma ou decisão jurídica.

Habermas traz à tona a importância de que todos os cidadãos tenham a oportunidade de expressão. Ele entende a necessidade de se garantir a todos (mulheres, negros, homossexuais e etc.) direitos de comunicação e participação política para que estes possam expor na esfera pública seus problemas e necessidades, objetivando a própria legitimidade do processo legislativo.

Seria interessante o resgate da esfera pública habermasiana para o atual contexto do Estado Democrático de Direito, uma vez que ela se mostra como um lugar predisposto à vivência da condição dialogal, onde temas como o respeito aos homossexuais e as diferenças em geral poderiam ser adequadamente debatidas. Assim, a decisão sobre a união estável entre pessoas do mesmo sexo poderia perpassar o âmbito do STF e fazer parte também de discussões e deliberações da sociedade em geral.

O direito necessita interagir com a esfera pública. Esta é “aberta e democrática, indeterminada e informe, e por isso está sempre acolhendo a divergência, a diversidade e a pluralidade. O novo sempre pode irromper”[11]

Aqueles que defendem que a união homoafetiva não deve ser reconhecida juridicamente argumentam que ela é inconstitucional. Como a Constituição representa a soberania popular, a decisão do STF iria contra este principio. Já os defensores dessa modalidade de união estável acreditam que ela resgata o respeito aos direitos humanos. Como resolver, então, tal conflito? Para Habermas deve sempre haver uma mediação entre soberania popular e direitos humanos, pois somente assim seriam resguardadas as autonomias pública e privada de cada individuo.

5.  Considerações finais

Este artigo procurou demonstrar que os movimentos sociais, perante uma sociedade pluralista, configuram-se como uma nova fonte de produção de direitos levando em conta principalmente os anseios e as reivindicações dos grupos desprivilegiados e das minorias étnicas. A articulação desses movimentos resultou na aquisição de novos direitos, principalmente para os grupos defensores dos direitos dos homossexuais.

A decisão do STF que equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo à união estável entre homem e mulher deve ser entendida como reflexo dos diversos movimentos que há anos reivindicam igualdade de direitos e não como um caso isolado.

A contribuição de Habermas ao presente debate deve-se ao fato da sua constante preocupação com a inclusão social de grupos minoritários, proposta semelhante à adotada pela corrente do Pluralismo Jurídico. Contudo, a forma de legitimação segue caminhos distintos. Para Habermas todo direito legitimo deve emanar do Estado de forma procedimental, enquanto que para o Pluralismo Jurídico, por meio dos movimentos sociais, torna-se necessário a emergência de novas fontes de produção jurídica.

A decisão do STF, portanto, foi de extrema importância para luta dos homossexuais dentro do Estado Democrático de Direito brasileiro. Ela é apenas um passo inicial que abre caminho para a criação de uma lei especifica por parte do legislativo que regulamente a união homoafetiva. Contudo, há muito o que ainda ser feito, uma vez que práticas preconceituosas persistem mesmo após o reconhecimento jurídico.

 

Referências bibliográficas:
 ALMEIDA, Guilherme Assis de; BITTAR, Eduardo C. B. Curso de filosofia do direito. 8. Ed. São Paulo: Atlas, 2010.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2008. 
______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4277&processo=4277>. Acesso em: 12 junho 2011.
______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277. Voto do Ministro Ayres Brito. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277.pdf.> Acesso em: 15 junho 2011.
______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277. Voto do Ministro Luiz Fux. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277LF.pdf>. Acesso em: 15 junho 2011.
______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277. Voto da Ministra Cármem Lúcia. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277CL.pdf>. Acesso em: 16 junho 2011.
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos e teoria politica. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
MENDES, Léo. História do movimento LGBT brasileiro. Disponível em: http://lgbtt.blogspot.com/2010/04/historia-do-movimento-lgbt-brasileiro.... acessado em: 30/05/2011.
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico. 3. Ed. São Paulo: Alfa - Omega, 2001.
 
Notas:
[1] WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico, p164.
[2] MENDES, Léo. História do movimento LGBT brasileiro. Disponível em: http://lgbtt.blogspot.com/2010/04/historia-do-movimento-lgbt-brasileiro.html
[3] MENDES, Léo. História do movimento LGBT brasileiro. Disponível em: http://lgbtt.blogspot.com/2010/04/historia-do-movimento-lgbt-brasileiro.html
[4] Idem
[5] Voto da Ministra Cármen Lúcia, p.10. http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277CL.pdf
[6] Idem, p.10.
[7] Idem, p.03.
[8] HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos e teoria politica, p. 230
[9] Idem, p.235.
[10] Idem, p285.
[11] ALMEIDA, Guilherme Assis de; BITTAR, Eduardo C. B. Curso de filosofia do direito, p.511.