JUSTIÇA SOCIAL, MÍNIMO SOCIAL E SALÁRIO MÍNIMO


Porjulianapr- Postado em 26 março 2012

Autores: 
Vicenzo Demetrio Florenzano

JUSTIÇA SOCIAL, MÍNIMO SOCIAL E SALÁRIO MÍNIMO

Vicenzo Demetrio Florenzano

Bacharel em Economia pela Universidade de São Paulo – USP e em Direito

pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Pós-graduado em Economia

pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e Doutor em Direito Econômico

pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.

Especialização “Comparative Financial Market Regulation and Development”

pela George Washington University nos Estados Unidos.

Professor da Pontifícia Universidade Católica em Minas Gerais e da UNINCOR,

nas disciplinas de Direito Econômico, Direito Financeiro e Moderna Teoria Contratual

 

 

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. A teoria da justiça de Rawls 3. Os dois princípios da justiça 4. Livre iniciativa e justiça social 5. A base social da auto-estima 6. Justiça distributiva 7. Mínimo social versus salário mínimo 8. Conclusão 9. Bibliografia

 

1. INTRODUÇÃO

A determinação do valor do salário mínimo por meio de lei é sempre um tema que gera muita polêmica e acirradas disputas políticas, sobretudo no Congresso Nacional. Tendo em vista o aprimoramento do ordenamento jurídico em vigor no Brasil, analiso os conceitos de mínimo social e salário mínimo, estabeleço um contraponto entre ambos e discuto a importância e a conveniência da determinação do valor do salário mínimo por meio de legislação federal, adotando a idéia da justiça de Rawls (1997) como referencial teórico.

Nesse intento, procuro valer-me de uma abordagem de natureza transdisciplinar , que passa por campos de conhecimento interconectados como Direito, Filosofia, Economia, Política e outros. Assim, combinando elementos e informações oriundos dessas áreas distintas do conhecimento, pretende-se elaborar uma análise que não se limita a uma perspectiva apenas política, ou econômica, ou jurídica, mas que tenta integrar esses diferentes aspectos numa abordagem transdisciplinar.

Segundo Bobbio (1997, p.23): “A idéia–força que move Rousseau é que o Estado será tanto mais perfeito quanto mais a vontade do Estado coincida com a vontade geral”. A idéia-força que aqui nos move é que o ordenamento jurídico-econômico será tanto mais perfeito quanto mais a estrutura de incentivos que dele decorre for apta a promover pleno emprego com justiça social.

A nosso ver, essa idéia-força está em plena consonância com o artigo 170 da Constituição Federal de 1988, segundo o qual os fundamentos do ordenamento jurídico-econômico são: justiça social, valorização do trabalho humano e livre iniciativa. Esses valores estão intimamente associados uma vez que a promoção do pleno emprego das forças produtivas é a melhor forma de realização dos valores da livre iniciativa e do trabalho humano.

É nosso objetivo neste artigo demonstrar que uma sociedade bem ordenada do ponto de vista jurídico-econômico-social é aquela em que a estrutura de incentivos colocada para os agentes direciona a economia para o ponto de maxmin, ou seja, o ponto em que são maximizadas as expectativas das classes menos favorecidas. A respeito ver MIAILLE (1989, p.61). Pedimos vênia para transcrever o seguinte pensamento do referido autor acerca da transdisciplinaridade: "Mas não tenho de fazer aqui o processo da universidade eu queria só mostrar um obstáculo epistemológico. Este encontra-se todo inteiro, expresso e mantido pelas estruturas universitárias actuais, na concepção de que é desejável uma análise isolada do direito, acompanhada, é certo, por alguns conhecimentos periféricos dados por outras disciplinas. É esta lógica <<do centro e da periferia>> que me parece viciosa. O erro reside no facto de tal perspectiva estar necessariamente ligada a uma compreensão tecnológica do direito e, portanto, a uma definição empírico-descritiva da ciência jurídica. (p.60) (...) Assim pois, a interdisciplinaridade não pode fornecer resposta à nossa busca de uma ciência do direito que não seja outra coisa que não uma descrição das técnicas jurídicas. É preciso procurar para lá da pluridisciplinaridade; na direcção daquilo que eu chamarei transdisciplinaridade, quer dizer, a ultrapassagem das fronteiras actuais das disciplinas. Esta ultrapassagem não significa que não existam objectos científicos legitimando investigações autónomas, mas estes não têm existência senão num campo científico único que chamaremos, na esteira de alguns, <<o continente história>>. Esta imagem espacial quer simplesmente significar que se trata, após a matemática e a física terem sido definidas no seu objecto e nos seus métodos, de dar vida a um outro <<continente>> científico, que teria por objecto o estudo das sociedades e suas transformações ao longo da história."

O termo maxmin significa o maximum minimorum. Trata-se de uma regra segundo a qual, dentre várias alternativas possíveis, devemos optar por aquela que seja menos prejudicial para os que estão pior posicionados. Para exemplificar, podemos imaginar o caso de uma competição em que há um prêmio de R$100,00 (cem) reais a ser dividido entre três competidores. Supondo que todos os três participantes devem receber alguma coisa e que o primeiro deve receber mais do que o segundo, que, por sua vez, deve receber mais do que o terceiro colocado, há várias maneiras de repartir o prêmio. Para simplificar, vamos admitir apenas trës alternativas que denominaremos A1, A2, A3. Na alternativa A1, o primeiro colocado recebe R$ 60,00, o segundo R$ 30,00 e o terceiro R$ 10,00. Na alternativa A2, o primeiro recebe R$ 70,00, o segundo R$ 20,00 e o terceiro R$ 10,00. Na alternativa A3, o primeiro recebe R$ 50,00, o segundo R$ 30,00 e o terceiro R$ 20,00. A regra maxmin determina que se opte pela alternativa A3, porque é a mais favorável (ou menos penosa) para o terceiro colocado que é o que está pior posicionado.

 

2. A TEORIA DA JUSTIÇA DE RAWLS

A nosso ver, a concepção de justiça como equidade de Rawls (1997) é a interpretação filosófica mais feliz da idéia de justiça social.

Segundo o próprio autor, a teoria da justiça como equidade é uma vertente das teorias contratualistas. De fato, desde o início, Rawls (1997, p.12) deixa claro que seu objetivo é apresentar uma concepção de justiça que generaliza e leva a um plano superior de abstração a conhecida teoria do contrato social como se encontra, por exemplo, em Locke, Rousseau e Kant.

Nesse sentido, segundo esclarece Rawls (1997, p.12), “não devemos pensar no contrato original como um contrato que introduz uma sociedade particular ou que

estabelece uma forma particular de governo. Pelo contrário, a idéia norteadora é que os princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do consenso original. São esses princípios que pessoas livres e racionais, preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitariam numa posição inicial de igualdade como definidores dos termos fundamentais de sua associação.”

Esses princípios, de acordo com o Autor, devem regular todos os acordos subseqüentes, especificar os tipos de cooperação social que se podem assumir e as formas de governo que se podem estabelecer. A essa maneira de considerar os princípios da justiça Rawls denomina justiça como equidade.

Percebe-se que a idéia intuitiva da justiça como equidade de Rawls é considerar que os princípios primordiais da justiça constituem, eles próprios, o objeto de um acordo original em uma situação inicial adequadamente definida. Esses princípios são aqueles que pessoas racionais interessadas em promover seus interesses aceitariam nessa posição de igualdade, para determinar os termos básicos de sua associação

Ao longo da obra, o autor argumenta que os dois princípios da justiça por ele concebidos são a solução para o problema da escolha que se coloca na posição original. Dadas as circunstâncias das partes, e o seu conhecimento, crenças e interesses, um acordo baseado nesses princípios é a melhor maneira para cada pessoa de assegurar seus objetivos, em vista das alternativas disponíveis. Assim, Rawls defende a adoção do princípio da igual liberdade e do princípio da diferença como uma base eqüitativa de regulação da estrutura básica da sociedade.

A premissa da qual se parte é que há um conflito de interesses em relação ao modo como os benefícios e as vantagens decorrentes da colaboração mútua devem ser distribuídos. As pessoas não são indiferentes a essa distribuição já que, para perseguir seus fins, cada um prefere uma participação maior a uma menor. Sendo assim, para selar um acordo sobre as partes distributivas adequadas, é preciso escolher entre as várias formas de ordenação social que determinam essa divisão de vantagens. Para proceder a essa escolha de forma justa, exige-se um conjunto de princípios. Esses princípios são os princípios da justiça social, que fornecem um modo de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição apropriada dos benefícios e encargos da cooperação social.

Entre indivíduos com objetivos e propósitos díspares uma concepção partilhada de justiça estabelece os vínculos da convivência cívica e o desejo geral de justiça limita a persecução de outros fins. Pode-se imaginar uma concepção da justiça como constituindo a carta fundamental de uma associação humana bem-ordenada.

O objeto primário da justiça é, segundo Rawls (1997, p. 5-8), a estrutura básica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social. Por instituições mais importantes, entende-se a constituição política e os principais acordos econômicos e sociais, de que constituem exemplos a proteção legal da liberdade de pensamento e de consciência, os mercados competitivos, a propriedade particular no âmbito dos meios de produção e a família monogâmica, entre outros. Tomadas em conjunto como um único esquema, as instituições sociais mais importantes definem os direitos e deveres dos homens e influenciam seus projetos de vida, o que eles podem esperar vir a ser e o bem-estar econômico que podem almejar.

Como explica Rawls (1997, p.13), a posição original de igualdade, que corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato social, não é concebida como uma situação histórica real, muito menos como uma condição primitiva da cultura, mas sim como uma situação puramente hipotética em que se supõe que ninguém conhece seu lugar na sociedade, a posição de sua classe ou o status social e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força, e coisas semelhantes. Na justiça como equidade, a posição original de igualdade é, pois, caracterizada de modo a conduzir a uma certa concepção da justiça.

Na posição original, os princípios da justiça são escolhidos sob um "véu de ignorância". Isso garante que ninguém será favorecido ou desfavorecido na escolha dos princípios pelo resultado do acaso natural ou pela contingência de circunstâncias sociais. Ninguém pode designar princípios para favorecer a sua condição particular. Os princípios da justiça são assim o resultado de um consenso ou ajuste eqüitativo. Sendo assim, a posição original pode ser considerada o status quo inicial apropriado para que os consensos fundamentais nela alcançados sejam eqüitativos. Nesse sentido, a expressão "justiça como eqüidade" é apropriada a medida que transmite a idéia de que os princípios da justiça são acordados numa situação inicial que é eqüitativa. Mas, como adverte o autor , “[a] frase não significa que os conceitos de justiça e equidade sejam a mesma coisa, assim como a frase ‘poesia como metáfora’ não significa que os conceitos de poesia e metáfora sejam a mesma coisa”.

Se tivéssemos de conceber uma metáfora para ilustrar a idéia básica da justiça como equidade, poderíamos pensar no problema da divisão de um bolo de aniversário. Tendo em vista esse problema da repartição do bolo, que procedimento deveríamos adotar para obter a divisão mais justa possível. De acordo com a teoria da justiça como equidade, a melhor solução seria entregar a faca a uma pessoa, estabelecendo que essa pessoa vai ser a última a se servir. Por analogia, no caso da organização da estrutura básica da sociedade, aqueles que fossem incumbidos de decidir acerca dos princípios e das regras de ordenação da sociedade, portanto, aqueles que vão decidir acerca da distribuição das vantagens e dos benefícios da cooperação social devem proceder tendo em mente que serão os últimos a se servir, ou seja, pensando que lhes tocará ocupar as posições menos favorecidas da estrutura social.

RAWLS (1997, p.14) Segundo RAWLS (1997, p.165): “... os dois princípios da justiça são aqueles que uma pessoa escolheria para a concepção de uma sociedade em que o seu lugar lhe fosse atribuído por seu inimigo.”

3. OS DOIS PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA

Rawls (1997) sustenta que as pessoas, numa situação inicial como a descrita, agindo com deliberação racional, adotariam os dois princípios da justiça como meio de ordenar a sociedade de forma justa. O primeiro princípio exige a igualdade na atribuição de deveres e direitos básicos. O segundo, afirma que desigualdades econômicas e sociais, por exemplo, desigualdades de riqueza e autoridade, são justas apenas se resultam em benefícios compensatórios para os membros menos favorecidos da sociedade.

Como esclarece o autor , o conceito de racionalidade deve ser interpretado tanto quanto possível no sentido estrito, que é padrão em teoria política, de adotar os meios mais eficientes para determinados fins. Assim, de forma genérica, considera-se que uma pessoa racional tem um conjunto de preferências entre as opções que estão a seu dispor. Ela classifica essas opções de acordo com a sua efetividade em promover seus propósitos e decide pelo plano que satisfará uma quantidade maior de seus desejos, e que tem as maiores probabilidades de ser implementado com sucesso.

Os princípios da justiça são enunciados por Rawls (1997, p.333) nos seguintes termos:

Primeiro Princípio Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos.

Segundo Princípio As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo:

(a) tragam maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo as restrições do princípio da poupança justa, e

(b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades.

O primeiro princípio se relaciona aos aspectos do sistema social que definem e asseguram liberdades básicas iguais. É o padrão primário para a convenção constituinte. Seus requisitos principais são os de que as liberdades individuais fundamentais e a liberdade de consciência e a de pensamento sejam protegidas e de que o processo político como um todo seja um procedimento justo. Assim, a constituição estabelece um status comum seguro de cidadania igual e implementa a justiça política.

O segundo princípio se relaciona aos aspectos que especificam e estabelecem as desigualdades econômicas e sociais. Atua no estágio da legislatura, determinando que as políticas sociais e econômicas visem maximizar as expectativas a longo prazo dos menos favorecidos, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades e obedecendo a manutenção das liberdades iguais.

No tocante as liberdades básicas iguais, as mais importantes, segundo Rawls (1997, p.65), são "a liberdade política (direito de votar e ocupar um cargo público) e a liberdade de expressão e reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; as liberdades da pessoa, que incluem a proteção contra a opressão psicológica e a agressão física (integridade da pessoa; o direito à propriedade privada e a proteção contra a prisão e a detenção arbitrárias, de acordo com o conceito de estado de direito)."

Outro ponto importante anotado pelo autor é que os princípios devem obedecer a uma ordenação serial, em que o primeiro princípio antecede o segundo. Essa ordenação significa que as violações das liberdades básicas iguais protegidas pelo primeiro princípio não podem ser justificadas nem compensadas por maiores vantagens econômicas e sociais. Essas liberdades têm o âmbito central de aplicação dentro do qual elas só podem ser limitadas ou comprometidas quando entram em conflito com outras liberdades básicas.

De se observar, contudo, que nenhuma dessas liberdades é absoluta uma vez que podem ser limitadas quando se chocam umas com as outras; entretanto, elas são ajustadas de modo a formar um único sistema, que deve ser o mesmo para todos.

Esclarece, ainda, Rawls (1997, p.66) que os dois princípios são partes de uma concepção mais geral de justiça segundo a qual todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da auto-estima – devem ser distribuídos igualitariamente a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos.

Como se depreende da obra citada, essa concepção geral de justiça não impõe restrições quanto aos tipos de desigualdades permissíveis; apenas exige que a posição de todos seja melhorada. Assim, considerando a distribuição de renda entre as classes sociais, a desigualdade é justificável somente se a sua diminuição tornar a classe trabalhadora ainda mais desfavorecida. Isso porque as maiores expectativas permitidas aos empresários os encorajam a fazer coisas que elevam as perspectivas da classe trabalhadora. Suas perspectivas melhores funcionam como incentivos para que o processo econômico seja mais eficiente, a inovação se instaure num ritmo mais acelerado, e assim por diante.

Na teoria da justiça como equidade, por suposto, cada pessoa ocupa duas posições relevantes: a da cidadania igual e a posição definida pelo seu lugar na distribuição de renda e riqueza. A estrutura básica da sociedade favorece alguns lugares de partida em detrimento de outros na divisão dos benefícios da cooperação social. São essas desigualdades que os dois princípios da justiça devem regular.

Pelo princípio da diferença devemos maximizar as perspectivas dos menos favorecidos, que, como esclarece o autor , são os menos beneficiados de acordo com cada um dos três tipos principais de contingências: 1) - pessoas cuja origem familiar e de classe é menos favorecida que a de outros; 2) - pessoas cujos dotes naturais (na medida em que estão desenvolvidos) lhes permitem um bem-estar menor; 3) - pessoas cuja sorte ao longo da vida acaba por revelar-se menos feliz. RAWLS (1997, p.15)

4. LIVRE INICIATIVA E JUSTIÇA SOCIAL

Não há dúvida que justiça e liberdade estão intimamente associadas. Dificilmente, o valor justiça social poderá ser realizado se as liberdades individuais básicas não estiverem minimamente asseguradas. De acordo com a teoria da justiça como equidade de Rawls, que abraçamos integralmente, o respeito às liberdades individuais básicas é condição necessária para a justiça social, pois “a justiça é infringida sempre que a liberdade igual é negada sem uma razão suficiente" . Uma sociedade para ser justa deve respeitar as liberdades individuais básicas, embora isso, por si só, não seja suficiente para assegurar que essa sociedade será justa. A garantia das liberdades individuais básicas é, portanto, uma condição necessária mas não suficiente para a instituição de uma sociedade justa.

O problema da liberdade, de acordo com Rawls (1997, p.237), é o da escolha de um princípio pelo qual as reivindicações que os homens fazem reciprocamente devem ser reguladas. E os princípios que, segundo ele, autorizam que reivindicações sejam dirigidas a instituições são os que seriam escolhidos na posição original.

Como é sabido, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, já no artigo primeiro, acolhe a livre iniciativa como valor a ser realizado para que o ordenamento seja justo, a questão crucial que se coloca é a de investigar as condições em que a liberdade

de iniciativa pode ser limitada, tendo em vista que, no Estado Democrático de Direito, nenhum direito ou valor pode ser absoluto.

Embora Rawls não considere a livre iniciativa como incluída entre as liberdades individuais básicas , a exposição desenvolvida por ele em relação à liberdade de consciência e de expressão é de grande valia na abordagem deste ponto. Assim, por analogia, temos que restrições à liberdade de iniciativa dentro dos limites, por mais imprecisos que sejam, do interesse do Estado na ordem pública são limitações que derivam do princípio do interesse comum, que decorre, logicamente, da compreensão que a manutenção da ordem pública é uma condição necessária para que todos possam realizar seus objetivos.

A propósito, esclarece Rawls (1997, p.231) que, "ao limitar a liberdade por referência ao interesse geral na ordem e segurança públicas, o governo age apoiado num princípio que seria escolhido na posição original. Pois, nessa posição, cada um reconhece que o rompimento dessas condições constitui um perigo para a liberdade de todos." Esse é o fundamento para que se proíba, por exemplo, a produção de armas químicas e/ou nucleares de destruição em massa, a fabricação de produtos nocivos à saúde, o desenvolvimento de atividades que causam danos ao meio-ambiente, a produção e a comercialização de tóxicos, etc.

Mas, a liberdade de iniciativa, como ocorre com a liberdade de consciência e de expressão, só deve ser cerceada quando há suposições razoáveis de que não fazê-lo prejudicará a ordem pública ou o interesse comum. "Essas suposições devem basear-se em evidências e formas de raciocínio aceitáveis para todos. Devem apoiar-se na observação comum e nas maneiras de pensar que são geralmente reconhecidas como corretas

(incluindo-se os métodos da investigação científica racional que não forem controversos)."

No desenvolvimento desse raciocínio, transparece claramente a interação entre justiça e liberdade. De acordo com o autor , a confiança naquilo que pode ser estabelecido e reconhecido por todos funda-se ela mesma nos princípios da justiça. Decorre que, a limitação da liberdade só se justifica quando for necessária para a própria liberdade, para impedir uma incursão contra a liberdade que seria ainda pior. Portanto, numa convenção constituinte, as partes devem optar por uma constituição que garanta uma igual liberdade, limitada unicamente por motivos reconhecidos e aceitos, quando esses motivos indicarem "uma interferência razoavelmente certa nos fundamentos da ordem pública".

A descrição geral de uma liberdade, então, assume a seguinte forma: esta ou aquela pessoa (ou pessoas) está (ou não está) livre desta ou daquela restrição (ou conjunto de restrições) para fazer (ou não fazer) isto ou aquilo. Dada essa especificação das liberdades básicas, pressupõe-se que, na maioria dos casos, perceba-se claramente se um instituto legal de uma lei realmente restringe ou simplesmente regula uma determinada liberdade básica.

RAWLS (1997, p.103) RAWLS (1997, p.237) Embora a teoria da justiça como equidade tenha sido desenvolvida pressupondo uma democracia de propriedade privada, RAWLS (1997, p.302) deixa claro que a teoria vale para o capitalismo (propriedade privada dos meios de produção) tanto quanto para o socialismo (propriedade coletiva dos meios de produção). Coerentemente com essa posição, ele não inclui a livre iniciativa entre as liberdades individuais básicas asseguradas pelo princípio da igual liberdade. RAWLS (1997, p. 223-235) RAWLS (1997, p.231-232) RAWLS (1997, p.232) RAWLS (1997, p.219-220)

5. A BASE SOCIAL DA AUTO-ESTIMA

Outro ponto notável da teoria da justiça como equidade é o do posicionamento da auto-estima como elemento fundamental para a construção de uma base social justa e estável.

Nessa construção, a auto-estima é tão importante que Rawls (1997, p.487) a qualifica como bem primário, sem o qual nenhuma atividade valeria a pena. Sem esse bem primário, diz ele, todo desejo e atividade se tornam vazios e inúteis, e afundamos na apatia e no cinismo. Portanto, as partes na posição original desejariam evitar quase a qualquer custo as condições sociais que solapam a auto-estima.

Segundo Rawls (1997, p.603), uma sociedade bem organizada se define como aquela que é regulada por uma concepção pública da justiça. Os membros dessa sociedade são e se consideram pessoas éticas, livres e iguais. Cada um é e se considera detentor de objetivos e interesses fundamentais em nome dos quais julga legítimo fazer reivindicações mútuas; e cada um é e se considera detentor de um direito ao respeito e a consideração iguais na determinação dos princípios que devem governar a estrutura básica da sociedade. Esses indivíduos também têm um senso de justiça que normalmente regula a sua conduta. A posição original é especificada de modo a incorporar a reciprocidade e a igualdade adequadas entre as pessoas assim concebidas; e como seus objetivos e interesses fundamentais são protegidos pelas liberdades garantidas pelo primeiro princípio, elas atribuem prioridade a esse princípio.

A fim de garantir, a partir da perspectiva da posição original, a realização de seus planos racionais, os membros da sociedade são levados a dar precedência às liberdades básicas. Após analisar os fundamentos dessa precedência, Rawls (1997, p.605) passa a examinar se essa prioridade das liberdades básicas não seria minada por questões relativas à distribuição de riqueza.

O problema é que, mesmo quando as carências essenciais estivessem satisfeitas e os meios materiais necessários obtidos, poderia persistir a preocupação das pessoas com sua posição relativa na distribuição de riqueza. Assim, se supomos que todos querem uma parte proporcionalmente maior, o resultado poderia ser da mesma forma um desejo crescente de abundância material. Como cada um lutaria por um objetivo que não poderia ser atingido coletivamente, é concebível que passasse a preocupar-se cada vez mais com o aumento da produtividade e com a melhoria da eficiência econômica. Esses objetivos poderiam tornar-se tão dominantes a ponto de minar a precedência da liberdade.

Se o modo como cada um é valorizado pelos outros realmente dependa de seu lugar relativo na distribuição de renda e riqueza, nesse caso, ter um status superior implica simplesmente ter mais meios materiais do que a maioria da sociedade. Nem todos podem ter o status mais alto, e melhorar a nossa posição significa piorar a de uma outra pessoa. A cooperação social que visa à elevação das condições do respeito próprio é impossível nesse quadro. Os meios do status, por assim dizer, estão fixos, e o ganho de cada homem acarreta a perda de um outro. Nessa situação as pessoas são colocadas umas contra as outras na busca de sua auto-estima.

Isso é uma lástima do ponto de vista social. A melhor solução para esse problema, segundo Rawls (1997, p.607), "é apoiar, na medida do possível, o bem primário da auto-estima através da atribuição das liberdades básicas, que podem realmente tornar-se iguais, definindo o mesmo status para todos." Com isso, a distribuição relativa de bens materiais ficaria relegada a um segundo plano.

A idéia de Rawls é que, em uma sociedade bem-ordenada, a auto-estima é garantida pela afirmação pública do status de cidadania igual para todos, permitindo-se que a distribuição de bens materiais tome seu próprio curso, pressupondo-se que instituições básicas justas, reguladas em conformidade com os princípios da justiça, assegurem a maximização das perspectivas das classes menos favorecidas, diminuindo os limites das desigualdades. Essa sustentação mais adequada à auto-estima das pessoas aumenta a eficácia da cooperação social.

6. JUSTIÇA DISTRIBUTIVA

O principal problema da justiça distributiva, segundo Rawls (1997, p.303), é a escolha de um sistema social que seja estruturado de modo que a distribuição dos benefícios da cooperação social seja justa. Para se atingir esse objetivo, é necessário situar o processo econômico e social dentro de um contexto de instituições políticas e jurídicas adequadas.

Tendo em vista um moderno estado democrático de direito, Rawls (1997, p.303) faz uma descrição dessas instituições. Em primeiro lugar, a estrutura básica da sociedade deve ser regulada por uma constituição que assegure as liberdades de cidadania igual. O processo político deve ser conduzido como um procedimento justo para a escolha do tipo de governo e para a elaboração de uma legislação que atenda aos princípios da justiça. Também deve estar assegurada uma igualdade de oportunidades que seja equitativa em oposição a uma igualdade meramente formal. Isso significa que, além de manter as formas habituais de despesas sociais básicas, o governo deve assegurar oportunidades iguais de educação e cultura para pessoas semelhantemente dotadas e motivadas, seja subsidiando escolas particulares seja estabelecendo um sistema de ensino público. Há também que se reforçar e assegurar a igualdade de oportunidades nas atividades econômicas e na livre escolha de trabalho. Isso se consegue por meio da fiscalização de empresas e associações privadas e pela prevenção do estabelecimento de medidas monopolizantes e de barreiras que dificultem o acesso às posições mais procuradas.

Além dessas instituições, Rawls (1997, p.303) ressalta a necessidade de se instituir um mínimo social. Segundo ele, o governo deve assegurar um mínimo social, seja através de um salário-família e de subvenções especiais em casos de doença e desemprego, seja mais sistematicamente por meio de dispositivos tais como um suplemento gradual de renda (o chamado imposto de renda negativo).

No estabelecimento dessas instituições básicas da sociedade, Rawls (1997, p.304) divide o governo em quatro grandes setores. Cada setor se constitui de vários órgãos, ou atividades a eles relacionadas, encarregados da preservação de certas condições econômicas e sociais. O primeiro setor, denominado setor de alocação, serve para manter a competitividade do sistema de preços dentro dos limites do factível, e para impedir a formação de um poder sobre o mercado que não seja razoável. Esse setor também se encarrega de identificar e corrigir os desvios em relação à eficiência, causados pelo malogro dos preços em medir com precisão os custos e benefícios sociais. Para isso, impostos e subsídios podem ser utilizados, ou o alcance e a definição do direito de propriedade pode ser revisto. O segundo setor, denominado setor de estabilização, se ocupa de promover o pleno emprego, no sentido de que aqueles que querem trabalho possam encontrá-lo, e a livre escolha de ocupação e o desenvolvimento das finanças sejam assegurados por uma forte demanda efetiva. Esses dois primeiros setores, em conjunto, têm a incumbência de manter a eficiência da economia de mercado em termos gerais. O terceiro setor, denominado setor de transferência, tem por responsabilidade garantir o mínimo social. O mecanismo de preços do livre mercado não leva em conta as necessidades básicas dos indivíduos. Portanto, cabe a esse setor fazer isso, atribuindo a essas necessidades um peso apropriado em relação às outras demandas. Os mercados competitivos adequadamente regulados promovem uma utilização eficiente dos recursos escassos da sociedade, mas ignoram os problemas da pobreza e da exigência de um padrão mínimo de vida adequado. Compete, pois, ao setor de transferência complementar o que é assegurado pelo mercado, garantindo um certo nível de bem-estar, que pressupõe o atendimento de necessidades básicas dos menos favorecidos. Por fim, coloca-se o setor de distribuição cuja função é preservar uma justiça aproximativa das partes a serem distribuídas por meio da taxação e dos ajustes no direito de propriedade que se fazem necessários.

Nessa construção , o sistema de tributação, que é parte integrante do quarto setor, desempenha um papel crucial, tendo duas tarefas fundamentais a realizar: 1 - arrecadar a receita necessária para o Estado cumprir seu papel; 2 - redistribuir a renda e a riqueza de forma justa. Para realizar essas tarefas, o sistema tributário requer impostos sobre heranças e doações, sendo que o propósito desses tributos não é aumentar a arrecadação, mas sim corrigir, de forma gradual e contínua, a distribuição de riqueza e impedir concentrações de poder que prejudiquem o valor eqüitativo da liberdade política e da igualdade eqüitativa de oportunidades. No tocante à arrecadação, o governo deve retirar da sociedade apenas o que for necessário para que possa fornecer os bens públicos e fazer os pagamentos de transferências exigidos para que os princípios da justiça sejam satisfeitos. Portanto, as duas tarefas do setor de distribuição (sistema tributário) decorrem dos princípios da justiça. O imposto sobre a herança e sobre a renda a taxas progressivas (quando necessário), e a definição legal dos direitos de propriedade devem assegurar as instituições de liberdade igual em uma democracia da propriedade privada, assim como o valor eqüitativo dos direitos estabelecidos por elas. Os impostos proporcionais sobre as despesas (ou sobre a renda) devem fornecer receita para manter os bens públicos, o setor de transferências e o estabelecimento da igualdade eqüitativa de oportunidades na educação, e em outros campos, de modo a implementar o segundo princípio. (RAWLS 1997, p.307)

7. MÍNIMO SOCIAL VERSUS SALÁRIO MÍNIMO

Tendo em vista o aprimoramento do ordenamento jurídico em vigor no Brasil no tocante à questão da justiça distributiva, é oportuno, a esta altura, estabelecer um contraponto entre as concepções de mínimo social e salário mínimo.

Como vimos acima, o mínimo social é composto pelo salário pago pela iniciativa privada mais a transferência (salário-família, bolsa-escola, cupom de alimentação, etc.) paga pelo setor público (Estado). O que queremos ressaltar é que a instituição de um mínimo social seria muito mais valiosa, útil, efetiva para as classes menos favorecidas, notadamente a classe trabalhadora, do que é a instituição de um salário mínimo, como previsto no art.7º , IV, da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, estamos plenamente convencidos de que a Assembléia Constituinte teria feito muito mais bem à classe trabalhadora brasileira se, ao invés do salário mínimo, tivesse assegurado um mínimo social (salário + transferência). O salário mínimo, fixado em lei, como prevê o inciso IV, do art. 7º, da CF/88 nunca foi e nunca será capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador, muito menos de sua família. Isso porque o mercado não vai pagar ao trabalhador mais do que ele adiciona à produção. Melhor dizendo, no Brasil, temos uma enorme massa de trabalhadores sem qualificação que adiciona muito pouco valor ao produto final. Sendo assim, esses trabalhadores não vão conseguir no mercado uma remuneração capaz de atender suas necessidades básicas (moradia, alimentação, saúde, educação, etc.). E não adianta tentar aumentar a remuneração desses trabalhadores através de lei. Isso só iria gerar mais desemprego. A solução para esse problema é a transferência de renda. O Estado tem de cumprir sua função de redistribuir renda. E o meio mais eficiente para realizar essa função é o sistema tributário. É preciso recolher (via tributo) de quem tem e transferir para quem não tem. Se não for assim, jamais resolveremos o problema da pobreza e da distribuição perversa de renda que nos assola desde o período colonial.

Também neste ponto, portanto, comungamos plenamente com o pensamento de Rawls (1997, p.305-306), segundo o qual “...a justiça das parcelas a serem distribuídas depende das instituições básicas e de como elas alocam a renda total, isto é, os salários e outros rendimentos acrescidos de transferências. É com razão que se objeta fortemente contra a determinação da renda total pela competição, já que esse procedimento ignora as exigência da pobreza e de um padrão de vida adequado. Do ponto de vista do estágio legislativo, é racional que asseguremos para nós e nossos descendentes uma proteção contra essas contingências do mercado. De fato, pode-se presumir que o princípio da diferença exige isso. Mas, uma vez fixado um mínimo pelas transferências, pode ser perfeitamente justo que o resto da renda total seja estabelecido pelo sistema de preços, supondo-se que ele seja moderadamente eficiente e livre de restrições monopolizantes, e que os efeitos do fatores externos que excedem os limites do razoável tenham sido eliminados. Além disso, esse modo de lidar com as reivindicações da pobreza parece mais eficiente do que a tentativa de regular a renda por padrões de salário-mínimo e métodos afins. É melhor atribuir a cada setor apenas as tarefas que são compatíveis entre si. Como o mercado não é adequado para responder às reivindicações da pobreza, estas últimas deveriam ser atendidas por um organismo separado. A questão de saber se os princípios da justiça são ou não satisfeitos gira, portanto, em torno da questão de saber se a renda total dos menos favorecidos (salários mais transferências) possibilita a maximização de suas expectativas a longo prazo (obedecendo às restrições da liberdade igual e da igualdade eqüitativa de oportunidades)."

Rawls (1997, p.165) reconhece que a decisão sobre o limite das transferências de renda pertence ao juízo político sobre o qual a teoria da justiça não tem nada a dizer. Não obstante, deixa claro que, no seu modo de ver, a regra de maxmin proporciona a solução ideal em termos de justiça distributiva para qualquer sociedade.

8. CONCLUSÃO

Como dissemos no início, o nosso objetivo neste artigo é trazer uma contribuição para o aprimoramento do ordenamento jurídico pátrio.

Do ponto de vista do ideal de justiça social, uma sociedade bem-ordenada, de acordo com a teoria da justiça de Rawls, é aquela que promove a distribuição dos bens materiais que assegura a maximização das perspectivas das classes menos favorecidas, diminuindo os limites das desigualdades.

Como bem observa Rawls (1997, p.109): “A distribuição natural não é justa nem injusta; nem é injusto que pessoas nasçam em alguma posição particular na sociedade. Esses são simplesmente fatos naturais. O que é justo ou injusto é o modo como as instituições lidam com esses fatos.”

No que diz respeito à regulação do sistema social, o critério básico para se julgar qualquer norma jurídica é a eficiência de seus resultados. Segundo Rawls (1997, p. 250), no tocante às liberdades individuais básicas, descobre-se a melhor ordenação pela observação de suas conseqüências sobre o sistema completo de liberdade. Por analogia, no tocante à economia, descobre-se a melhor regulação pela observação de suas conseqüências sobre o sistema econômico.

Nessa linha defendemos que a instituição de um mínimo social, composto pelo salário pago pela iniciativa privada mais a transferência efetivada pelo Estado, seria mais benéfica para as classes menos favorecidas do que a instituição de um salário mínimo, fixado em lei, como previsto no art. 7o , IV, da Constituição Federal de 1988.

Sabemos, contudo, que, em teoria, discute-se se é mais justo adotar um critério meritório (a cada um de acordo com seus méritos) ou um critério mais igualitário (a cada um de acordo com suas necessidades). Na prática, o Estado tira renda dos grupos que têm menos poder político e passa para os grupos que têm mais poder político. O alinhamento do poder determina como o Estado redistribui renda entre ricos e pobres, como bem percebeu Cooter (2000, p.264).

A essa reflexão, acrescentamos a de Rawls (1997, p.247) quando diz que: "Historicamente, um dos principais defeitos do governo constitucional tem sido a sua incapacidade de assegurar o valor eqüitativo da liberdade política. As medidas corretivas necessárias não têm sido tomadas; na verdade, parece que nunca foram consideradas seriamente. Disparidades na distribuição da propriedade e riqueza que em muito excedem o que é compatível com a liberdade política têm sido geralmente toleradas pelo sistema legal. Recursos públicos não têm sido empregados a fim de manter as instituições exigidas para garantir o valor eqüitativo da liberdade política. (...) O poder político rapidamente se acumula e se torna desigual; e, servindo-se do aparelho coercitivo do Estado e de suas leis, aqueles que conseguem a predominância podem muitas vezes garantir para si mesmos uma posição privilegiada. Assim, as desigualdades do sistema socioeconômico podem solapar qualquer igualdade política que possa ter existido em condições historicamente favoráveis. O sufrágio universal é um contrapeso insuficiente; pois, quando os partidos e as eleições são financiados não por fundos públicos mas por contribuições privadas, o fórum político fica tão condicionado pelos desejos dos interesses dominantes que as medidas básicas necessárias para estabelecer uma regra constitucional justa raramente são apresentadas de modo adequado.”

A argumentação supra expendida não tem a pretensão de demonstrar o acerto das posições defendidas. Se, todavia, “... o esquema como um todo parece, ao refletirmos, esclarecer e ordenar os nossos pensamentos, e se tende a reduzir dissensões e a alinhar convicções divergentes, já fez tudo o que se pode razoavelmente esperar.” (RAWLS: 1997, p.56)

 

9. BIBLIOGRAFIA

BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito – Lisboa: Imprensa Universitária Editorial Estampa, 1989.

COOTER, Robert D. The strategic constitution. Princeton University Press, 2000.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

ROUANET, Luiz Paulo. Ralws e o enigma da Justiça. São Paulo: Unimarco, 2002.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os pensadores).