A invenção da infância


Pormarina.cordeiro- Postado em 12 março 2012

Autores: 
SEGUNDO, Rinaldo

Sumário: 1.A Infância é um fenômeno histórico. 2. A invenção da infância: a contribuição de Ariès e o caso brasileiro.


1.A Infância é um fenômeno histórico

A infância ou o sentimento de infância é um fenômeno histórico. Foi a partir da ação dos homens que se produziu este sentimento que nos é tão caro atualmente. Somente passa a existir com a criação de um mundo das crianças diverso do mundo dos adultos. Isso significa estabelecer espaços de atuação privilegiada para cada um daqueles grupos, seja limitando o acesso de crianças aos jogos, brincadeiras e espaços tidos como destinados aos adultos, seja censurando/limitando os adultos em sua conduta quando em contato com às crianças.

Todo o pensamento da sociedade contemporânea tem por referência a separação entre o mundo dos adultos e das crianças. A importância do estudo desta temática histórica permitirá a compreensão da construção das diferentes percepções da sociedade sobre crianças e adolescentes além da própria construção do direito da criança.

Por certo, a partir da percepção da infância e da adolescência - com suas peculiaridades e especificidades – se possibilitaria a eclosão, no futuro, de um direito das crianças e dos adolescentes. O que pode parecer evidente nem sempre o foi: a singularidade de um direito reservado à infância e à juventude nem sempre existiu. É preciso um olhar histórico, revelador das relações sócio-econômicas, para que se perceba a construção social da percepção da infância e da adolescência.

Advirta-se: esse sentimento de infância não pressupõe linearidade em sua implementação: esteve, portanto, sujeito às conveniências... Por isso, inicialmente é uma prática apenas das elites.

Para efetuar esse estudo, recorremos à Philippe Ariès que em sua obra clássica, História Social da Família e da Criança, identifica os sinais da emergência do sentimento de infância. A sua premissa básica é a de não existir o sentimento de infância durante o Antigo Regime na Idade Média.

 

Ariès desvenda o processo de construção desse sentimento de infância a partir de análises de elementos iconográficos. Seu objeto de estudo é basicamente a criança e a família na França Medieval. A característica marcante desse período é o fato de que as crianças estão integradas no mundo dos adultos, o que difere substancialmente da situação encontrada no século XVII, onde, ao se reconhecer a necessidade de limitar a participação das crianças no "mundo dos adultos", separa-se o espaço infantil do espaço destinado aos adultos.

Se a contemporaneidade manifesta repugnância de crianças e adolescentes brincarem com jogos de azar, é bem provável que durante o Medievo não se fazia restrições às crianças ocuparem esse espaço. Por um lado, não se reconhecia a peculiaridade da condição de criança e as necessidades que adviriam desse reconhecimento (saúde, educação, cuidados especiais...). Por outro, a organização sócio-política da época não permitia a eclosão do sentimento de infância.

Contudo, as "pistas" de Ariès serão relacionadas ao caso brasileiro, com as peculiaridades que marcaram a história nacional. Ressalte-se o aspecto singular dessa abordagem: ao contrário dos países europeus, não existiu o regime feudal no Brasil, marcado pela fragmentação política e por uma ordem social pautada na idéia de linhagem (estabelecendo extenso vínculo de parentesco) são elementos centrais nas observações de Ariès.

Em função disso, uma história da criança no Brasil apresenta peculiaridades ainda que a tese de Ariès se sustente e perpasse o caso brasileiro, como se verá adiante. Aqui, a escravidão de negros africanos, a relação de dependência entre colônia e metrópole exemplificam a diferente organização social e política comparada à existente nos países europeus, situação que refletiria sobre a criança brasileira. [1]


2. A invenção da infância: a contribuição de Ariès e o caso brasileiro

Os sinais da formação do sentimento de infância são encontrados na língua, nas manifestações artísticas, nos jogos e brincadeiras, no comportamento sexual, nas práticas de saúde e na ênfase à educação e à moral.

Até o século XVIII, não havia termos na língua francesa para diferenciar a infância, a adolescência e a juventude. A palavra "enfant" (criança) representava, ambos, crianças ou rapazes. Isso pode ser explicado: não era o critério biológico [2] que distinguia as pessoas, sendo que "ninguém teria a idéia de limitar a infância pela ‘puberdade’..." [3]. A dependência econômica marcava a idéia de infância: "Só se saía da infância ao se sair da dependência" [4]. Daí a explicação à algumas imagens e relatos do século XVI, segundo os quais, aos 24 anos, a criança é forte e virtuosa.

O reconhecimento do critério de dependência econômica para caracterizar a infância, em detrimento ao critério biológico, gerou a seguinte situação: considerava-se adulto quem não dependesse dos pais, ainda que mais jovem à outra pessoa que, contudo, fosse dependente economicamente. Esta era considerada criança.

A ausência de termos que correspondessem a um critério biológico de divisão das idades entre crianças, adolescentes, jovens e adultos reflete a ausência de preocupação com o que hoje queremos expressar por infância. Sabe-se que a língua representa um código lingüístico. A formação desse código, ou seja, das palavras, ocorre por meio de identificação entre algo que é representado e a palavra, que o representa. ausência de termos que caracterizem a infância indica a não percepção da singularidade dessa fase da vida.

Como o processo de construção da língua não é estático, o vocabulário referente à infância e à adolescência ampliou-se progressivamente, principalmente, entre as famílias nobres. É assim que, no século XVIII, surgem novas expressões para designar a infância (bambins, pitchouns, fanfans em francês), sendo que os adultos passam a se interessar em registrar as expressões e o vocabulário utilizados pelas amas quando falavam com as crianças. "Tentou-se registrar até mesmo as onomatopéias da criança que ainda não sabe falar", registrando M. de Orignon sobre a sua netinha: "ela fala de um modo engraçado: titota, tetita y totota". [5]

Em trabalho sobre a criança no século XVIII no Brasil, citando Gilberto Freyre, Priore lembra o papel das amas negras na construção de uma linguagem que refletia o novo modo do olhar adulto sobre as crianças. Palavras comododói, cacá, pipi, bumbum, tentem, formadas a partir da duplicação das sílabas tônicas são exemplos do mimo e encanto dos adultos para com as crianças refletidas na língua. [6]

Mauad lembra que os termos ‘criança’, ‘adolescente’ e ‘menino’ já aparecem em dicionários da década de 1830 no Brasil: "Ao contrário de que muitos pensam, o termo adolescente já existia, no entanto, seu uso não era comum no século XIX. A adolescência demarcava-se pelo período entre 14 e 25 anos, tendo como sinônimos mais utilizados mocidade e juventude. Os atributos do adolescente eram o crescimento e a conquista da maturidade"[7] O fato de inexistir referência a esses termos nos dicionários anteriormente revela a incapacidade de diferenciar a infância da vida adulta.

Grosso modo, o estudo do idioma revela dois momentos distintos: o primeiro, quando os termos lingüísticos para designar a criança e o adolescente não são diferenciados. E o segundo, quando novos termos surgem especificando e delimitando a infância e juventude.

Nas artes, também é possível identificar o fenômeno da descoberta da infância. O século XIII ignorava a criança enquanto manifestação artística, ao não representá-la nas telas ou retratos da época. Analisando uma tela sobre a qual desenvolve "a cena do Evangelho em que Jesus pede que se deixe vir a ele as criancinhas", observa Ariès que as crianças são representadas por homens em escola menor, em tamanho reduzido. As crianças apresentavam as características físicas (porte físico, musculatura, traços do rosto) de homens pequenos. [8]

Todavia, progressivamente, as crianças são incluídas nas manifestações artísticas. No século XVI, para se ter uma idéia da mudança, seria freqüente a representação das crianças junto à sua família, o que até então não ocorria. Era assim que "a criança com seus companheiros de jogos, muitas vezes adultos; a criança na multidão, mas ‘ressaltada’ no colo de sua mãe ou segura pela mãe, ou brincando, ou ainda urinando; a criança no meio do povo assistindo aos milagres ou aos martírios, ouvindo médicos...; ou a criança na escola..." seria representada. [9]

A análise da evolução das pinturas dos séculos XIII ao XVI mostra como a sociedade, a partir do século XVI, passou a olhar a criança de modo diferente: de fato, a presença da criança na família seria sublinhada, sobretudo, por ser considerada engraçadinha, por fazer gracejos. Essa característica da criança vista como um ser engraçadinho, capaz de merecer todo tipo de paparicação expressa um primeiro estalo na percepção da importância da criança na família. É característica do primeiro sentimento de infância.

Há uma transição entre uma época em que a criança não ocupava a atenção das pessoas e, por isso, não era representada artisticamente; e outra, onde a criança seria reconhecida e valorizada pelo seu potencial lúdico, pela sua graça e pelo seu encantamento, revelando uma nova relação entre família e criança que seria refletida nas artes. O sentimento de infância pode ser entendido em dois momentos distintos: primeiro, a partir da idéia de paparicação em que a criança é vista como um ser lúdico, capaz de gracejos, engraçadinha; e, um segundo, como se verá, em que a formação moral da criança deve ser garantida por meio da educação, da saúde e do bem estar físico. Nesta, a infância passa a ser considerada uma etapa peculiar da vida, exigindo a efetivação de cuidados específicos capazes de suportar as necessidades específicas dessa fase da vida.

Não se pintava as crianças porque não se julgava relevante pintá-las. Isso não tem nada a ver com ausência de amor dos pais pelos filhos. Sentimento de infância não se confunde com um amor maior ou menor dos pais em relação aos seus filhos. É imperativa a diferenciação entre o sentimento da infância e o amor dos pais devotado aos filhos. Enquanto o primeiro representa a tomada de consciência "da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem"[10] surgido dentro de um contexto histórico bastante específico, o segundo, provavelmente, sempre teria existido. Teria o pater familias romano amor por seus filhos mesmo podendo dispor de suas vidas? Não se pode cometer o equívoco de julgar a inexistência de amor na relação entre pais e filhos antes da Idade Média, a menos que se identifique amor com a moral geradora do sentimento de infância. O surgimento do sentimento de infância rompe com a ausência de consciência de uma sociedade que permitia e considerava natural que crianças vivessem e atuassem definitivamente no mesmo espaço dos adultos, logo após o fim da dependência de suas mães e amas.

Tudo leva a crer que - para o pensamento da época - não se acreditava que a criança já contivesse a personalidade humana, sobretudo, devido ao alto índice de mortalidade que estimulava a idéia de que era preciso ter vários filhos para se salvar alguns. A idéia de "perda eventual" era presente à época e pode ser observada em Montaigne: "perdi dois ou três filhos pequenos, não sem tristeza, mas sem desespero" ou Moliére: "a pequena não conta"[11]

Em síntese, como muitas crianças morriam devido às precárias condições de vida, pensava-se que um desígnio divino determinava a sobrevivência de apenas algumas crianças. Àquelas que morressem, seriam abrigadas no Reino do Céu, pois, eram puras, qualidade que nenhum ser humano possuía.

Exemplo relatado por Pestana Ramos mostra como a personalidade da criança não era reconhecida. Durante o naufrágio da nau São Tomé em que ia a D. Joana de Mendonça e sua filha, ante a impossibilidade de salvar a filha (que fora esquecida na caravela e a mãe já se encontrava no bote), pôs os olhos para o céu e "fez a única coisa que podia fazer, oferecendo ‘a Deus a tenra filha em sacrifício’, como outro Isaac, pedindo a Deus misericórdia para si, porque sua filha era inocente, e sabia que a tinha bem segura"[12] Esse não era um caso isolado. Nos naufrágios, as crianças não tinham prioridade de embarque [13].

Esse também é o entendimento de Priore: "o certo é que, na mentalidade coletiva, a infância era, então, um tempo sem maior personalidade, um momento de transição e por que não dizer, uma esperança"[14]

Em suma, a não percepção da criança enquanto pessoa humana dotada de personalidade refletiu nas representações artísticas. Esse fenômeno só viria se alterar a partir do século XVI, quando a criança começa a ser pintada. Algo começava a impulsionar as pessoas a retratarem as crianças para que pudessem se lembrar delas, seja se crescessem, seja se morressem (recorde-se que os índices de mortalidade eram altos). [15] Paulatinamente, a criança vai ocupando um espaço central nos retratos e na pintura, agora organizados em torno da criança.

Nos trajes, utilizados pelas crianças na Idade Média, também não se distingue a roupa dos adultos, das vestes usadas pelas crianças dentro de um mesmo segmento social. O fator importante a se considerar era a condição social do indivíduo: servo, nobre ou religioso.

Após o período dos primeiros cuidados, a criança era vestida como homens e mulheres de sua condição social. Não havia a particularização de trajes, como ocorre em nossos dias, para o período designado pela infância, sendo a criança vestida como um homem em tamanho reduzido. O traje de adultos e crianças se confundem. Inexistia razão ou sentido para a particularização do traje destinado às crianças, até por que, como já se disse, o conceito de criança se baseava em um critério de dependência econômica e não em um critério biológico, baseado na idade. O tamanho era a única diferença entre os trajes de adultos e crianças.

Esse quadro viria a ser alterado na França do século XVIII, ao menos no que se refere às crianças filhas dos nobres, pois, a partir desse momento, preocupou-se em encontrar um traje adequado à sua condição, situação que manifestaria a distinção de adultos e crianças. [16]

Analisando uma tela de Philippe de Champaigne que representa os sete filhos da família Herbert, Ariès mostra como as crianças mais novas representadas no quadro não se vestem mais como adultos: "os dois gêmeos (que aparecem na tela), que estão afetuosamente de mãos dadas e ombros colados, (...)não estão mais vestidos como adultos. Usam um vestido comprido, diferente daqueles das mulheres, pois é aberto na frente e fechado ora com botões, ora com agulhetas: mais parece uma sotaina eclesiástica"[17]

Na sociedade medieval, o traje identifica a condição social do indivíduo. Ao ser vestida com um traje característico, tinha sido reservada à criança elevada consideração se comparada à época anterior. Consideração que a caracterizava como um ser particular, especial, carente de proteção e cuidados.

E sobre os jogos e brincadeiras? "Por meio dos jogos a criança, em todos os tempos, estabelece vínculos sociais, ajustando-se ao grupo e aceitando a participação de outras crianças com os mesmos direitos"[18] Jogos e brincadeiras são importantes manifestações de sociabilidade. É através deles que uma determinada sociedade ou grupo de pessoas se integra, exprime as suas tradições e revela o caráter lúdico presente no ser humano. A sociabilidade dos jogos e brincadeiras possibilita um estreitamento dos laços afetivos da sociedade, gerando integração e unidade do grupo. De certo modo, compreender os jogos e as brincadeiras de determinada comunidade pode revelar a sua organização social, as suas preocupações e os seus valores.

No século XVII, os jogos e brincadeiras eram comuns às crianças e aos adultos, envolvendo toda a sociedade. [19] Isso revela a existência de uma outra moral na Idade Média, diferente da observada em nossa época, sob a qual impera uma rígida distinção entre jogos e brincadeiras destinadas aos adultos e crianças.

No diário de Luís XIII, escrito por Heroard, médico particular do futuro rei da França, verifica-se a presença dessa moral medieval. Luís XIII diverte-se com brinquedos de criança, mas também, brinca e se mistura com os adultos. Conta-nos Ariès que "esse menino de quatro a cinco anos praticava o arco, jogava cartas, xadrez (aos seis anos) e participava de jogos de adultos, como o jogo de raquetes e inúmeros jogos de salão"[20] Também assistia a lutas entre os bretões, ao espetáculo de cães lutando com ursos e participava das festas tradicionais de Natal e dos Reis. Aos sete anos, joga dados com fidalgos do rei, aprende a matar, a caçar, a atirar e a praticar jogos de azar. Ao mesmo tempo, continua a brincar de bonecas. A utilização da expressão "ao mesmo tempo" na última frase expressa a surpresa diante do comportamento do futuro rei que guia as suas atitudes dentro de uma moral que não separa diversões de adultos e de crianças, tampouco estabelece limites rígidos a uns e outros.

Todavia, já no início do século XVIII, a partir de análises iconográficas, verifica-se a alteração dessa situação.[21] Estimula-se a utilização e reserva-se às crianças determinados brinquedos, tais como, o cavalo de pau, o cata-vento, o pássaro preso por um cordão. Isso é significativo, pois, até então, os brinquedos eram comuns aos adultos e às crianças. A marionete de fantoches, por exemplo, divertia a ambos. Após um certo tempo, porém, o teatro de marionetes ficou reservado apenas às crianças. [22]

As origens dessa mudança de mentalidade teria ocorrido nos séculos XVII e XVIII quando os moralistas começaram a difundir a idéia de que os jogos - sem nenhum exceção - eram imorais e a sua prática deveria ser evitada. Essa nova postura anuncia uma característica presente no sentimento da infância, uma certa preocupação"antes desconhecida, de preservar sua moralidade[da criança] e também de educá-la, proibindo-lhe os jogos então classificados como maus, e recomendando-lhe os jogos então reconhecidos como bons"[23] Essa nova percepção da criança – detentora de uma pureza a ser resguardada - caracteriza o segundo sentimento de infância. A oposição dos moralistas era incisiva e ia contra o pensamento, até então dominante, segundo o qual os jogos - inclusive os de azar - eram inofensivos às crianças, não havendo razão para proibi-los. "Na sociedade do "Ancién Régime", o jogo sob todas as suas formas - o esporte, o jogo de salão, o jogo de azar - ocupava um lugar importantíssimo, (...) a essa paixão que agitava todas as idades e todas as condições, a Igreja opôs uma reprovação absoluta"[24]

A partir do século XVII, a conseqüência foi a distinção entre os jogos de adultos e de crianças, abandonando-se aquelas brincadeiras e jogos que dividiam o espaço da criança ao do adulto. Uma conseqüência direta disso em nossos dias é a repugnância provocada todas vezes em que o espaço infantil é invadido por brincadeiras reservadas aos adultos, tais como, jogos de azar, filmes violentos e eróticos etc...

A educação dos moralistas [25], realizada por intermédio dos colégios, desenvolve e consolida o sentimento de infância. No século XIV, parece não ter existido a preocupação em separar os estudantes nas classes conforme as suas idades. "Seus contemporâneos [séculos XVII] não prestavam atenção nisso e achavam natural que um adulto desejoso de aprender se misturasse a um auditório infantil, pois o que importava era a matéria ensinada, qualquer que fosse a idade dos alunos". [26]

Atualmente, essa idéia é inconcebível, sendo a aprendizagem escolar de crianças associada à existência de uma classe de alunos de idade similar. A ação dos colégios, a partir do século XVII, pretendeu evitar que a criança se inserisse no mundo dos adultos.

O colégio, difundido a partir do século XIII, é importante para a consolidação do sentimento de infância. Evitava-se, assim, com que a criança entrasse de imediato no mundo dos adultos, refletindo a sensibilização à fragilidade da infância e à necessidade da criança se desenvolver moral e intelectualmente (século XVII), na medida em que o ambiente escolar propiciaria o desenvolvimento de uma infância mais longa ao adotar medidas pedagógicas inovadoras tal como, a divisão das classes de alunos pelas suas idades.

E é essa mesma percepção da divisão por idades que teria feito surgir, conforme Ariès, a percepção da adolescência. "As classes de idade em nossa sociedade se organizam em torno de instituições. Assim, a adolescência, mal percebida durante o ‘Ancien Régime’, se distinguiu no século XIX e já no fim do século XVIII através da conscrição, e mais tarde, do serviço militar"[27]

Todavia, nem todas as crianças francesas do século XVII foram ao colégio. Ao contrário, a antiga estrutura em que a criança, após os sete anos, realizava atividades no mundo dos adultos persistia, seja ao se possibilitar que as crianças fossem aprendizes de mestres, seja ao se possibilitar que ingressassem nos exércitos. [28] Além disso, o processo educacional nos colégios não incluía as crianças do sexo feminino. Isso significou que às mulheres - pelo menos até o século XVII - após a infância, estava reservado o mundo dos adultos, sem prolongamentos. Ariès relata-nos casos, perfeitamente normais para a época, em que meninas de 12 a 13 anos já estão casadas e agem com extrema consciência de seu papel. Comportam-se como adultas diante das responsabilidades que lhes são conferidas: cumprem os afazeres do lar, interpretando o seu papel social.

A diferença da moral medieval para a contemporânea é observada também na questão sexual. Na sociedade do medievo, não havia objeção à liberdade e intromissão das crianças em assuntos sexuais. Não havia a percepção da prejudicialidade sobre as crianças de tais assuntos ou práticas.

Conta-nos Ariès que Luís XIII tem um ano quando, "muito alegre, anota Heroard (o médico de Luís XIII), ele manda que todos lhe beijem o pênis". [29] Essa atitude não é interpretada com repreensão, ao contrário, as pessoas se divertiam com situações desse tipo. Em nossa época, uma situação como essa causaria, no mínimo, mal estar. Na época, não chocava, pois, outra era a moral vigente tornando natural aqueles comportamentos.

Para se ter uma idéia da aprovação social, esse trecho do diário de Heroard é exemplar: "A Marquesa (de Verneuil) muitas vezes punha a mão embaixo de sua túnica; ele pedia para ser colocado na cama de sua ama, onde ela brincava com ele e punha a mão embaixo de sua túnica"[30]

Outro exemplo: "Ele e Madame (sua irmã) foram despidos e colocados juntos com o Rei, onde se beijaram, gorjearam e deram muito prazer ao Rei. O rei perguntou-lhe: - Meu filho, onde está a trouxinha da Infanta? - Ele mostrou o pênis dizendo: - Não tem osso dentro, papai. - Depois, como seu pênis se enrijecesse m pouco, acrescentou: - Agora tem, de vez em quando tem"[31]

Uma atitude similar à essa só viria a ser censurada no século XVIII, quando uma nova moral surge impulsionada pela renovação religiosa. A percepção da sexualidade da criança apresenta variações conforme o meio e as diferentes épocas. Se as descrições de Heroard parecer-nos-iam abuso, o emprego de ações e linguagens associadas a práticas sexuais não o eram à época, por acreditar-se que a criança impúbere era estranha à sexualidade.

O moralistas pretenderam mudar o comportamento social que expõe as crianças aos assuntos referentes à sexualidade. Para isso, elegem os jovens como atores privilegiados de suas práticas pedagógicas e o sentimento de culpa como instrumento decisivo para incultar-lhes a nova moral. Dois elementos seriam fundamentais para o sucesso do trabalho: a escolha dos colégios (educação) como espaço de atuação e a repressão aos jovens mediante ensaios moralistas e castigos corporais. [32]

A ação eficiente dos moralistas estabeleceria novos paradigmas à percepção da criança pela sociedade, ao produzir a noção de pureza e inocência infantil associadas, por sua vez, à idéia de fragilidade. Na sociedade do século XVIII, novos padrões de conduta seriam estabelecidos, tais como, saúde, educação e formação moral visando desenvolver um ambiente especificamente infantil, diverso daquele encontrado entre os adultos.

O surgimento de sentimento de infância associa-se ao fortalecimento da família. Por certo, a partir do século XIII, a família conjugal (pai, mãe, filhos, avós), formada por poucos integrantes, se fortalece. Isso se deve, principalmente, ao surgimento de novas formas de economia monetária, ao ressurgimento das trocas comerciais, ao fortalecimento do poder real bem como à efetividade da segurança pública. Esse conjunto de fatores possibilitou o desenvolvimento de uma família composta de menos integrantes que podia voltar os seus olhos para as crianças. Desse modo, ao surgimento de uma família reduzida gera-se um sentimento de proteção, cuidado e atenção à criança. Por quê? A partir da família conjugal, os seus membros estariam voltados para si e não mais para um agrupamento maior: a linhagem.

É fundamental salientar a validade da observação efetuada acima concernente às crianças do sexo feminino e aos filhos dos não nobres que não freqüentaram o colégio, o que lhes impossibilitou o prolongamento da infância. O sentimento de infância, construído historicamente, apresenta diferentes significados conforme os seus destinatários. Há aqueles que desfrutaram desse sentimento que, até então, não existia. Há outros, contudo, que não puderam exercer esse sentimento.

O reconhecimento do sentimento de infância é o algo novo que surge para redefinir as relações familiares de determinados grupos. O fenômeno da descoberta da infância ocorreu antes com as famílias dos nobres franceses que podiam oferecer saúde, educação, melhores cuidados aos seus filhos. Podiam se adequar melhor às exigências da nova moral, possibilitando, por exemplo, que os seus filhos fossem aos colégios onde se embeberiam dos ensinamentos moralistas.

O grupo que não exerceu o sentimento de infância encontrou limites nas possibilidades econômico-culturais de suas famílias. Aí, imagine-se as dificuldades que teria uma família francesa não nobre de se adequar às exigências desse sentimento, sobretudo no envio de seus filhos aos colégios. A conseqüência direta disso é que, para uns, seria reconhecido o direito de ter esse sentimento; para outros, as condições econômicas e culturais faziam com que os seus filhos, desde cedo, ocupassem o mundo reservado aos adultos, seja através do trabalho, seja através do exército, seja através do casamento.

Dois exemplos já mencionados ao longo do trabalho refletem, particularmente, a situação de negação do sentimento de infância: as mulheres nobres e os filhos dos trabalhadores na França que, impossibilitados de ter acesso aos colégios, exerciam papéis, desde muito jovens, destinados aos adultos; as crianças e jovens brasileiros recrutados para servirem e lutarem na Guerra do Paraguai. Gerou-se a seguinte situação: "De um lado,.. a população escolarizada, e de outro, aqueles que, segundo hábitos insensoriais, entravam diretamente na vida adulta, assim que seus passos e suas línguas ficavam suficientemente firmes"[33]

Outro exemplo de negação da infância foi vivenciado em terras brasileiras: a escravidão e os seus efeitos sobre as crianças escravas e as crianças filhas dos escravos. Sabe-se que o tratamento dado às crianças de elite brasileiras não era o mesmo conferido às crianças escravas. Para se ter uma idéia, as crianças escravas eram"pouquíssimo mencionadas em assuntos de vida diária nos documentos oficiais que tratam da região das minas e que se encontram conservadas em arquivos" e em relação à alimentação, a análise de documentos da época mostra haver maior preocupação com os cavalos que com os escravos. [34] Era vedado à criança escrava ou filha de escravos o acesso à escola ou à saúde [35].

Além disso, numa sociedade escravista, onde a relação de dominação predominava, a divisão das famílias dos escravos era constante. Somando-se ao fato de que inúmeras famílias eram separadas e vendidas é de se perguntar como eram construídas as relações de parentesco entre os escravos.

A despeito de todas as situações adversas, a família tinha um papel importante para a vida das crianças escravas ou filhas de escravos. Todavia, a estrutura da sociedade escravagista não lhes possibilitava o exercício do sentimento de infância. A entrada precoce da criança africana no mundo do trabalho contribuía para isso, já que a partir dos sete anos, as crianças escravas deveriam entrar no mundo dos adultos. A pedagogia colonial apregoava que entre os 04 e os 11 anos, a criança ia sendo moldada para o trabalho paulatinamente por atividades cotidianas.

A criança seria "valorizada" pelo senhor na medida em que crescia e se tornava hábil para produzir valor econômico. A criança mulata saía de um convívio que havia tido até os 07 anos na casa do senhor para o mundo do trabalho. Não que o convívio na Casa Grande se desse de forma igualitária, ao contrário, naquele espaço, não tinha acesso à educação sendo consideradas coisinhas engraçadas. Como acentua Góes e Florentino:"De todo modo, mui bruscamente o pequeno escravo haveria de compreender que não se tratava mais de um faz-de-conta, que freqüentemente era isso mesmo o que os homens livres exigiam dele"[36]

A negação a determinados setores da sociedade de expressarem o seu sentimento de infância - e isso não se confunde com o amor dos pais aos filhos - não significa negar a origem e a existência desse sentimento, mas sim, reconhecer que apenas determinados grupos tinha legitimidade para desfrutar do sentimento de infância. Esclareça-se, ainda, que à negação do sentimento de infância a determinados grupos dentro de uma ordem vigente não significou ausência de resistência desses grupos para que pudessem exercer aquele sentimento. Nesse prisma, na Guerra do Paraguai, por exemplo, "enquanto as primeiras [as famílias dos aprendizes] procuram proteger os próprios filhos, revelando a adoção de valores mais modernos relativos à infância, os últimos [os burocratas militares] encaminham, sem aparente peso da consciência, os vários meninos para batalhões navais." [37] O que as famílias querem exercer é o sentimento de infância, representado nesse caso pela não utilização de seus filhos como combatentes na Guerra. O mesmo pode-se dizer em relação às famílias dos escravos com, por exemplo, a formação de quilombos.

Saliente-se, ao final, que é no século XVII, o momento em que se pode perceber, significativamente, a mudança do papel das crianças na sociedade apesar de desde o século XIII ela estar em desenvolvimento. Cumpre ressaltar que, a qualquer tentativa de sistematização, as manifestações culturais devem ser compreendidas em seu desenvolvimento dentro desse período. A sistematização, desse modo, desempenha o papel de possibilitar a compreensão didática.

A conclusão é de que a infância e a adolescência são fenômenos históricos, produzindo a formação de uma nova concepção sobre crianças e adolescentes que repercutiria no direito. [38]

 

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Notas

01. PRIORE, Mary Del. "Apresentação". In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore organizadora. 2ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2000, pgs. 08-17.

02. O critério biológico é o existente atualmente. Assim, crianças são todas as pessoas até doze anos; adolescentes, todas as pessoas entre doze e dezoito anos; jovens.....

03. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Trad. Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, 2ª edição, pg 42. Inexistia a idéia da adolescência associada à puberdade. Adolescentes - vivendo uma fase intermediária - caracterizados pela alegria de viver, espontaneidade e força física são imagens do século XX ainda que viessem sendo construídas desde o século XVIII. O conscrito do século XVIII seria o precursor dessa imagem: "Os jovens que quiserem partilhar da reputação que este belo corpo adquiriu poderão dirigir-se a M. D’Albuan... Eles [os recrutadores] recompensarão aqueles que lhes trouxeram belos homens" Ariès, p. 46.

04. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 42.

05. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 66.

06. PRIORE, Mary Del. "O cotidiano da criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império". In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore organizadora. 2ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2000, pg. 96.

07. MAUAD, Ana Maria. "A vida das crianças de elite durante o Império". In: História das Crianças no Brasil.Mary Del Priore organizadora. 2ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2000, pg. 140.

08. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 50.

09. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 55.

10. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 156.

11. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 57.

12. PESTANA RAMOS, Fábio. "A história trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI". In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore organizadora. 2ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2000, pg. 41.

13. Observa Pestana que o deslocamento de Portugal para o Brasil era feito por meio de enormes caravelas que serviam de meio de transporte. Essas embarcações exigiam centenas de homens, sendo que, muitas vezes, essa exigência requeria uma tripulação perto de mil homens. As crianças eram empregadas nessas atividades em alto-mar. À essa época, a personalidade da criança não era reconhecida, sobretudo, porque "a expectativa de vida das crianças portuguesas, entre os séculos XIV e XVIII, rondava os 14 anos". Essa baixa expectativa de vida fomentava o pensamento de que "a força de trabalho deveria ser aproveitada ao máximo enquanto durassem suas curtas vidas". Até por isso, eram empregadas nos trabalhos mais difíceis já que, na maioria dos casos, estavam na escala hierárquica baixa entre os tripulantes. A porção de alimentos a que tinham direito era menor que a dos outros marinheiros e não tinham direito ao catre (cama de viagem). PESTANA RAMOS, Fábio. Op. cit., pg. 20.

14. PRIORE, Mary Del. "O cotidiano da criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império". In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore organizadora. 2ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2000, pg. 84.

15. É interessante anotar a observação feita por Julita Scorano quando considera a ausência de referências às crianças nas regiões das minas no Brasil. Segundo a autora, a falta de referências nos documentos enviados à metrópole não significa que a criança não tenha sido desvalorizada mas sim que "sua morte não era encarada como uma tragédia, outras crianças poderiam nascer substituindo as que se foram". SCARANO, Julita. "Criança esquecida das Minas Gerais". In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore organizadora. 2ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2000, pg. 110.

16. Mauad, após mencionar que o referencial de roupas para as crianças da elite no século XIX no Brasil era francês, revela a particularização dessas roupas: "Não existia uma roupa voltada para o adolescente, mas com 12 anos os meninos começavam a larga as calçolas e as meninas encompridavam os vestidos, assumindo gradualmente a maneira de se vestir dos adultos". MAUAD, Ana Maria. "A vida das crianças de elite durante o Império". In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore organizadora. 2ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2000, pg. 144.

17. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 70.

18. ALTMAN, Raquel Zumbano. "Brincando na história". In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore organizadora. 2ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2000, pg. 240.

19. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 94.

20. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 86.

21. O que ocorreu foi uma "especialização das brincadeiras durante a primeira infância, até mais ou menos quatro anos. Após essa idade, os jogos e brincadeiras continuaram a ser comuns entre adultos e crianças. Há telas que retratam bem isso: em uma delas um grupo de mendigos observa duas crianças jogarem dados; em outra, um grupo de soldados joga em uma taverna mal aforrada sob os olhares e postura animada de jovens de 12 anos. Não se fazia restrição a que as crianças participassem desse tipo de jogo, não havia tampouco uma censura moral aceita pela sociedade. Da mesma forma, os adultos também participavam dos jogos e brincadeiras hoje reservadas às crianças". ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 92.

22. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 88.

23. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 104.

24. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 109.

25. Rafael Chambouleyron identifica a existência dessa moral na educação efetuada pelos padres jesuítas no Brasil quinhentista. A idéia era que de através da educação se poderia melhor "imprimir a doutrina cristã nas crianças". Assim, os "colégios modernos constituíam uma instituição complexa, não apenas de ensino, mas de vigilância e enquadramento da juventude". O espaço escolar era entendido como formador e propulsor de uma moral cristã; sob esse aspecto, na Europa, observa-se a preocupação dos colégios formarem a criança de acordo com bons princípios. Rafael C. atribui a escolha dos jesuítas por trabalhar com crianças - particularmente, indígenas - a descoberta no Velho Mundo do sentimento de infância o qual seria resultado da transformação nas relações entre indivíduo e grupo. O objetivo era iniciar as crianças indígenas em uma rígida moral para que as crianças mantivessem os ensinamentos de seus pais, deixando de lado os "abomináveis costumes" como a feitiçaria. CHAMBOULEYRON, Rafael. "Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista". In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore organizadora. 2ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2000, pg. 56 e seguintes.

26. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 166.

27. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 187.

28. Em artigo intitulado "Aprendizes da guerra", Renato Pinto Venâncio analisa o papel das crianças na Guerra do Paraguai. Conforme o autor, as várias ciências criadas ou então aprimoradas no século XIX, tais como, a pedagogia, psicologia e pediatria, ao transformarem a "infância" em um período de vida especialmente frágil, colaboraram para a separação das atividades de adultos e crianças. Contudo, o Estado Imperial Brasileiro criou e recriou padrões arcaicos em que a infância, em sua peculiaridade, não é reconhecida. O recrutamento de crianças se deu inicialmente para o trabalho nas caravelas à ocasião da expansão ultramarina quando era mais econômico o emprego de crianças. No fim do século XVIII, a exigência da idade mínima para recrutamento alterou substancialmente esse quadro. Crianças pobres, órfãs e enjeitadas deixariam de ser recrutadas: "Pela primeira vez foram estabelecidos limites etários mínimos para o ingresso de crianças nas Armadas, assim como pela primeira vez foi substituído o recrutamento aleatório por outro que implicava em um aprendizado prévio". Todavia, à ocasião da Guerra do Paraguai recriou-se os padrões arcaicos já que "O governo imperial não estava preparado para um conflito longo, imaginando que em vez dos cinco anos e quatro meses necessários para derrotar o inimigo, a guerra seria uma empresa de não mais de seis meses". Ante a demora da guerra, "o governo imperial foi progressivamente sancionando leis que procuravam contornar a falta de planejamento das Forças Armadas no período prévio à entrada do conflito", exigindo o recrutamento de crianças e jovens antes vedado. VENANCIO, Renato Pinto. "Aprendizes da Guerra". In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore organizadora. 2ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2000, pg. 195 e seguintes.

29. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 125.

30. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 126.

31. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 126.

32. Priore, analisando o século XVIII no Brasil, salienta que essa nova moral tinha forte conteúdo pedagógico fulcrada em Erasmo e Vivés segundo os quais "desde cedo a criança devia ser valorizada por meio da aquisição dos rudimentos da leitura e da escrita, assim como das bases da doutrina cristã que a permitissem ler a Bíblia. Com fulcro nessa educação pedagógica, cartilhas com ênfase moralista foram desenvolvidas para alfabetizar as crianças. Em uma dessas cartilhas, há a seguinte passagem: "farão os mestres servir a Deus e ao público que é aquilo a que todos devemos aspirar, os que quisermos viver como homens e como católicos". PRIORE, Mary Del. Op. cit., pg. 104.

33. ARIÈS, Philippe. Op. cit., pg. 192.

34. SCARANO, Julita. Op. cit., pgs 119-120.

35. "Poucas crianças chegavam a ser adultas, sobretudo quando dos desembarques de africanos no porto carioca". O índice de mortalidade era altíssimo sendo que 80% das crianças morriam antes de completar 05 anos. FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto de. "Crianças escravas, crianças dos escravos". In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore organizadora. 2ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2000, pg. 180.

36. FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto de. Op. cit.,pg. 187.

37. VENANCIO, Renato Pinto. Op. cit., pg. 193.

38. Ver texto Notas sobre o Direito da Criança publicado neste site.