Intróito à soberania absoluta do Estado, a autodeterminação dos povos e a intervenção internacional


Porvinicius.pj- Postado em 18 novembro 2011

Autores: 
SOUZA, Michael Wender de Paula

1. INTRODUÇÃO

O propósito  deste  texto  não  é  aprofundar  os  estudos  sobre  a  evolução  do conceito de soberania, mas, como frisado por Fabrício Muraro Novais[1], a apresentação de um moderno conceito de soberania modulado e relativizado aos interesses dominantes, sejam de ordem púbica ou de ordem privada.

Neste período histórico em que as relações internacionais estabelecidas entre países deram origem à criação de blocos regionais, muito se questiona sobre a soberania dos entes estatais. Realmente, não é de se estranhar a dúvida que surge sobre a manutenção da soberania por um Estado que compõe um bloco regional econômico. Isto porque, constata-se que os Estados têm transferido a regulamentação de certas matérias para a esfera internacional.

Abordou-se nesse artigo os aspectos internos e externos da soberania, analisando a subsistência da mesma no processo de integração verificado no âmbito internacional. Chegou-se a conclusão de que não há como compatibilizar o conceito clássico de soberania, como poder absoluto do Estado, com as exigências de cooperação econômica internacional. No entanto, persiste a soberania, mas essa deve ser entendida como independência e autodeterminação dos povos à luz Constitucional, como autonomia.
II - A relatividade da soberania absoluta do Estado

O Estado é a instituição organizada social, jurídica e politicamente, com fins estabelecidos, sob determinada porção de terra de limítrofes estabelecidos, com povos unidos por laços de elemento comum, a saber, cultura, e soberania pelo qual não se submete a nenhum outro poder que o torne subordinado, dependente.

       O termo absoluto, Ferreira (2004) declara que se trata de algo independente, ilimitado, sem restrição ou ainda nas assertivas de Houaiss (2001) é aquilo que existe independentemente de qualquer condição: a metafísica procura o absoluto.

       Logo, é perceptível que sendo o Estado uma instituição de tamanha grandeza, não pode ser inicialmente limitado a fim de que se exerça suas funções de fato, uma vez que o próprio conceito de Estado não é indissociável ao de soberania. Um Estado semi-soberano ou asoberano não é Estado pela falta do elemento essencial.

        Para REALE (2003, p.74), a soberania é uma espécie de fenômeno genérico do poder.  Uma forma histórica do poder que apresenta configurações especialíssimas que se não encontram senão em esboços nos corpos políticos antigos e medievos.

       Em viés mais sintético, BEVILÁQUA apud PAUPÉRIO (sd. 1997)  traz por soberania nacional a autoridade superior, que sintetiza, politicamente, e segundo os preceitos de direito, a energia coativa do agregado nacional

       Destarte as considerações de PINTO (1975) onde soberania é a capacidade de impor a vontade própria, em última instância, para a realização do direito justo

       E na busca pela realização do justo que a soberania absoluta se pondera e se relativisa, o que é mais importante: ser soberano ou ser justo, uma vez que é preferível tratar o poder de manto do Estado, por poder de Independência pelas razões que lhe são inerentes e questionáveis, em casos especiais[2].

        É independente e soberano o Estado que organizado e atendendo os requisitos supra, mantém relação horizontal com os demais Estados na esfera internacional, ao qual participa por meios do comercio exterior, organismos de planejamento e regulamentação tais qual a Organização das Nações Unidas e demais. Contudo, sendo integrante dessas instituições internacionais, deve a ter-se a princípios genéricos. Comandos normativos cogentes e plurais, ao passo que, havendo violação desses princípios valores, a comunidade internacional estaria, pela instituição competente, tal qual a ONU, a intervir na ilimitação primária do Estado.

       Isto posto, observa-se que a “realização do justo”, postula que o Estado não pode criar arbitrariamente o direito; ele cria a lei, o direito escrito, que é apenas uma categoria do direito no seu sentido amplo.  Como acentua MIRANDA (1967), “o Estado é apenas um meio perfectível, não exclusivo, de revelação das normas jurídicas”.  A lei que dele emana há de corporificar o direito justo como condição de legitimidade.

       Clarividente, não restam duvidas que o Estado, pode e dever ser soberano para garantir os direitos e aspirações de seus cidadãos. Uma vez omisso em relação ao povo, da qual emana todo poder e que pelo pacto social o legitima agir por si, o representando, pode esse Estado sofrer limitações políticas, econômicas ou demais que se julgar necessário há claras exemplos como no Iraque, Afeganistão e demais países do continente Africano.

      O Estado é soberano no plano nacional, irrestrito e incondicionado. De fato absoluto. Contudo tem leis restringíveis a sua soberania absoluta no plano internacional, haja vista as ponderações de coexistência entre os demais Estados em suas relações de interdependência.

III – A natureza jurídica da autodeterminação dos povos

         Todos os povos preservam o livre arbítrio nas decisões pertinentes aos direcionamentos do Estado a que participam e a este princípio-valor decorre a existência inerente a cada Estado, ao qual, através de seus manifestos, possibilitam a criação cultural e tradições próprias, de ter e ser soberano e de constituir suas próprias leis, sendo relevante a correta interpretação do artigo 4º, inciso III da Constituição da Republica Federativa do Brasil, 1988 tal qual nos assevera Husek (1988) ao analisar o principio de autodeterminação dos povos em conjunto com a própria condição de soberania, cuja base assenta-se no entendimento que é possível contrariar a existência de uma ordem internacional superior, continuando os Estados a figurar como sujeitos principais e primários do sistema internacional. 

         Cada qual a seu modo, pensam, aplicam, discutem e formulam soluções de acordo com as necessidades e realidade de cada povo, ao qual compete garantir a valorização das liberdades e de Justiça

        A primeira guerra mundial no século XX, com o imperialismo na África e na Ásia, mostrou-se verdadeiros mares de sangue. Terra de ninguém de direito e de poucos de fato, o que estimulou os ideais de cada povo conduzir seus próprio destino, sem que haja intervenção de outro Estado visando justificá-lo de maneira divina, material ou humana.

      O ONU, na chamada Carta das Nações Unidas, nos artigos 1º, §2º e 55º, igualmente, a declaração de 1960 chegou a discorrer sobre o tema, que foi afirmado no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, artigo 1°, caput.[3] logo, determina livremente seu estatuto político e assegura livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.

        A Carta Magna da República Federativa do Brasil, nos incisos III, IV e I, do artigo 4º, respectivamente declara regência do Estado brasileiro sobre os princípios da autodeterminação dos povos, da não intervenção e da independência nacional, ressalvando também o inciso V do mesmo artigo na busca pela igualdade entre os Estados.

         E nesse viés de igualdade jurídica, em foco, o primado da paz ascende às relevâncias da chamada autodeterminação dos povos ao passo que positivada, a partir do fenômeno da normatização dos direitos consolidou o processo real de ação dos Estados, bem com os limites de cada qual. Logo, faz necessárias as considerações de que buscando o justo[4] equilíbrio das forças dos Estados, estar-se-á diante de uma menor possibilidade de arbítrios e da própria razão da dignidade da pessoa humana[5].

       Em tempos de capital e economia liberais travestidas, até mesmo as liberdades, como realização volitiva própria de um determinado Estado, vê-se meramente formal, sendo válida expiação de KANT (1986, p. 77), ao dispor que no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade.

         Considera-se também para fins legais, os dispostos da Declaração sobre a concessão da independência aos países e povos coloniais[6] adotada pela ONU através da Resolução n.º 1514 (XV) da Assembléia Geral de 14 de dezembro de 1960.

         Reforça-se, uma vez mais o significado da palavra povos discutida nessas breves considerações como elemento do Estado através do vínculo jurídico permanente, logo a terminologia condiciona a aspiração a uma existência política independente, condição necessária para relações dos Estados entre si, relações de liberdade de ação, de igualdade entre nações, de coordenação, jamais de subordinação, confirmado pelo próprio sistema de tutela da ONU (Capítulo XII da Carta), cujo principal objetivo é acelerar a independência dos povos não-autodeterminaveis, ou seja, de Estados submissos a outros Estados.

          Destarte, são inadmissíveis posições adversas que vislumbram no contexto de soberania e Estado, o principio da autodeterminação dos povos condicionado a interpretado a etnias ou grupos isolados, mesmo a que por perspectivas dos direitos humanos. Tais povos preservam independente de Estado ou nação, ainda que sejam como um clã, nas antiguidades o caráter político organizacional meramente interno a seu grupo com a capacidade de se organizar, de regular-se, de fazer suas normas e do gênero. Contudo, como a projeção dessas normas, é limitada e reconhecida pelo Estado que abriga essa minoria, afirmando-se o controle de tutela do Estado Maior sobre determinado grupo, a exemplo, índios, ciganos e aborígines estes por sua vez preservam autonomia.

          Posições a cerca dos povos sem território ou governo são reconhecidas a luz do Direito Internacional, na questão das minorias quanto ao alcance do principio da autodeterminação dos povos, assim Ferreira e Quadros (1997) sobre a possibilidade de este princípio consagrar a subjetividade do indivíduo, complementam que, o direito à autodeterminação dos povos é reconhecido diretamenteaos povos dos territórios ‘não autônomos’ ou territórios ‘sem governo próprio’, na terminologia do art. 73º da Carta da ONU. Configura pois, um caso em que o indivíduo (neste caso na acepção de povo) é sujeito de Direto Internacional Comum. Contudo, estes povos como sem governo próprio e não autônomos são entes soberanos

 IV - A soberania e a autodeterminação como fator impeditivo de intervenção da comunidade internacional frente a Barbáries

        A luz da experimentação dos efeitos históricos, advindos de amargos conflitos armados entre Estados, cuja população foi amplamente castigada, em certos casos, dizimadas, é um campo espinhoso a miscelânea soberania estatal e autodeterminação dos povos, uma vez que o regime de governo é a espinha dorsal do sistema.

      Considerando um exemplo hipotético, vê-se em determinado local, um regime de governo esquerdista extremo, que pautados nesses princípios haja à sombra de barbáries. Considere ainda que tal regime seja democrático, eleito pelo povo, com legitimidade de ação, de jurisdição. Considere ainda que as ações barbáries desse Estado sejam sempre referendadas pelo povo e que o texto constitucional desse Estado não faz expressa restrição a certas posições do governo. Como argüir impedimento internacional no campo alheio? Que princípios seriam invocados para justificar posicionamentos invasivos, além da mera e suposta insatisfação internacional? Como ferir o principio da dignidade da pessoa humana, se por elementos culturais e consenso majoritário, há permissividade de conduta?

         Certamente, pensar-se-á, na Alemanha Nazista de Adolf Hitler e no regime Fascista de Benito Mussolini que contavam com apoio das massas e cometeram atrocidades, genocídios e a intolerância genérica. Mas, há de observa-se que tanto na Alemanha nazista quanto na Itália fascista, a atuação dos regimes do Estado não se restringia as limítrofes de seu território, deferindo-se assim do exemplo hipotético acima.

        Destarte, a complexidade em se estabelecer o que seriam barbáries e por quais instrumentos, dar-se-ia intervenção internacional. Logo as relevantes considerações de LIMA (2005) ao destrinchar a etimologia da palavra barbárie ao eurocentrismo, que se se considerava exemplo de organização social civilizada.

         Notadamente, a evolução do pensamento humano, trouxe a hermenêutica hodierna de barbárie como afronta aos valores, ético-morais, inerentes ao homem, a sociedade a ao próprio direito, ao ponto extremo de DUROZOI (1993) considerar que bárbaro autêntico é aquele que apenas denuncia a barbárie do vizinho e não se dá conta de reconhecer sua própria barbárie, verificadas aqui as ações estadunidenses de intervencionismo direto tal qual foi com  Haiti em 1994, Afeganistão em 2001 e Iraque em 2007 ou indireto tal qual na guerra fria, financiando armamento para Vietnamitas, por exemplo.

       Logo a expressão barbárie se associou a tortura, a usurpação e nesse descompasso, nasce o idealismo politicamente puritano da “guerra contra o terror”.

        Não menos intrigante é fato que os países com maior ou único poder de decisão nos organismos internacionais do comercio, do trabalho, da saúde, da educação, da sustentabilidade e da própria política e paz, são os maiores financiadores do trafico internacional de armas, órgãos, drogas e do gênero.

        Traz-se ainda, como supracitado, a que meios e condições dar-se-iam as intervenções de um Estado A em B ou A, C, D, E, dentre outros em B, porquanto pensamos no Conselho de Segurança da ONU para posições mais severas e concretas a sua efetividade, cujo poder reflete em sanções econômicas, embargos ou até mesmo intervenção armada. Salvo porém, não basta o descontentamento de um Estado sozinho, a priore, esse descontentamento deve ser verificado pelo Conselho como um todo.

       Não é difícil esquecer o papel, uma vez dos estadunidenses que invadiram o Iraque sem aprovação imediata do Conselho de Segurança da ONU, formando uma força de coalizão de interesses nitidamente políticos, desrespeitando o preceituado na Carta ONU onde, pelo artigo 2º, alínea 4, em que todos os membros deverão evitar, em suas relações internacionais, a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação não compatível com os propósitos das Nações Unidas.

V - CONCLUSÃO

     Por fim, a soberania e autodeterminação dos povos devem ser respeitadas independentemente dos gostos ou contra gostos alheios e, ainda que surjam barbáries, antes de quaisquer cogitações a cerca de intervenção internacional, sejam as já expostas, mais que necessárias são as considerações do papel da diplomacia direta entre Estados conflitantes, outrossim, a mediada pela Organização das Nações Unidas em seus Conselhos e campos de atuação.

 


VI - REFERENCIAS

 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. 3. ed. São Paulo: Positivo,  2004

HOUAISS, Antonio. Dicionario de Lingua Portuguesa. Objetiva, 2001

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela, 1986, p. 77.

PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática do Poder: Teoria Democrática da Soberania. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. v. 2.

PINTO, Nelson Luiz Guedes Ferreira. Teoria Geral do Estado. São Paulo, Saraiva, 1975.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Tomo III. Revista dos Tribunais

REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

_____Constituição da República Federativa do Brasil: 1988. Senado Federal, 2006

_____Carta das Nações Unidas. http://www.onu-brasil.org.br/documentos_carta.php  Acesso em 06 de outubro de 2009 às 10h01

_____Declaração Universal dos Direitos Humanos. http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm  Acesso em 06 de outubro de 2009 às 08h51

_____Declaração sobre a concessão da independência aos países e povos coloniais. http://www.pampalivre.info/resolucao_1514.htm Acesso em 06 de outubro de 2009 às 14h58

_____Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966). http://www.rolim.com.br/2002/_pdfs/067.pdf  Acesso em 06 de outubro de 2009 às 10h53

_____ Cresce tráfico de armas entre Estados Unidos e México. http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u105412.shtml - Acesso em 06 de outubro de 2009 às 16h


Notas:

[1] Prof. Dr. Direito Constitucional pela PUC/SP. Assessor especial da Presidência do Supremo Tribunal Federal.

[2] Terrorismo internacional, violações de pactos internacionais, dos Direitos Humanos e dos princípios de dignidade da pessoa humana.

[3] Todos os povos têm direito a autodeterminação.

[4] O ideal de justiça aqui mencionado é inspirado no modelo romano que preconizado nos ditames: dar a cada um, o que é seu; não lesar ninguém e preservar o bem comum da coletividade.  Observa-se ainda o posicionamento do Prof. José de Oliveira Ascensão para quem  o Direito é uma ordem da sociedade. Uma ordem e não a ordem, repare-se, porque na sociedade outras ordens se encontram. [...]é também a arte ou virtude de chegar à solução justa no caso concreto.

[5] Nesse sentido, Ives Gandra Martins Filho, Ministro do TST, professor de Filosofia do Direito do IDP, defende que adignidade é essencialmente um atributo da pessoa humana: pelo simples fato de "ser" humana, a pessoa merece todo o respeito, independentemente de sua origem, raça, sexo, idade, estado civil ou condição social e econômica.

 

1.        [6] A sujeição dos povos a uma subjugação, dominação e exploração constitui uma negação dos direitos humanos fundamentais, é contrária à Carta das Nações Unidas e compromete a causa da paz e da cooperação mundial;

2.        Todos os povos tem o direito de livre determinação; em virtude desse direito, determinam livremente sua condição política e perseguem livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.

3.        A falta de reparação na ordem política, econômica e social ou educativa não deverá nunca ser o pretexto para o atraso da independência.

4.        A fim de que os povos dependentes possam exercer de forma pacífica e livremente o seu direito à independência completa, deverá cessar toda ação armada ou toda e qualquer medida repressiva de qualquer índole dirigida contra eles, e deverá respeitar-se a integridade de seu território nacional.

5.        Nos territórios, sem condições ou reservas, conforme sua vontade e seus desejos livremente expressados, sem distinção de raça, crença ou cor, para lhes permitir usufruir de liberdade e independência absolutas.

6.        Toda tentativa encaminhada a quebrar total ou parcialmente a unidade nacional e a integridade territorial de um país é incompatível com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas.

7.        Todos os estados devem observar fiel e estreitamente as disposições da Carta das Nações Unidas, da Declaração Universal de Direitos Humanos e da presente declaração sobre a base da igualdade, da não intervenção nos assuntos internos dos demais Estados e do respeito aos direitos soberanos de todos os povos e de sua integridade territorial