Interrupção da gravidez de feto anencéfalo: a preponderância dos direitos da gestante


Porbarbara_montibeller- Postado em 17 abril 2012

Autores: 
PASSOS, Danielle de Paula Maciel dos

SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. A Anencefalia: conceito de anencefalia e expectativa de vida. 3 A gestação de fetos anencéfalo e o Código Penal de 1940. 4. A questão do início da vida. 5. dos direitos da gestante. 5.1. Direito à saúde. 5.2 Direito à liberdade e autonomia da vontade. 5.3. Direito à dignidade da pessoa humana e proibição da tortura. 6. Ponderação de direitos constitucionais. 7. Considerações finais. 8. Referências bibliográficas.


RESUMO

O trabalho tem como problema central o estudo da ponderação entre os direitos da dignidade da pessoa humana, da proibição da tortura, da saúde e da autonomia e liberdade, a serem tutelados às gestantes de fetos anencéfalos, versus o direito ao nascimento do feto, para ao final concluir o que deve prevalecer.

Palavras-chave: feto anencéfalo, interrupção, gravidez, ponderação de direitos.


ABSTRACT

The work has as central problem the study of the colision among the pregnant’s rights - person's dignity, prohibition of the torture, health, autonomy and freedom –, versus the anencephalus fetus rights – right to the life. At the end, concludes about which them should prevail.

Keywords: anencephalus fetus, interruption, pregnancy, consideration of rights.


1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende demonstrar a possibilidade jurídica da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, partindo da premissa que sob a ótica da ponderação de direitos constitucionais, devem prevalecer os direitos à dignidade da pessoa humana, da proibição da tortura, da saúde e da autonomia e da liberdade, a serem conferidos às gestantes, em detrimento da manutenção do feto, sem expectativa de vida extra-uterina.

Ocorre que a despeito de pesquisas médicas comprovarem a impossibilidade de vida extra-uterina dos fetos com a citada anomalia, muitas mulheres vêm sendo obrigadas a manter por nove meses uma gravidez inútil, o que além de trazer sérios riscos às suas vidas, ainda causa um grande transtorno psicológico e mental.

Ressalte-se que atualmente a questão ainda será enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal, pois pendente de apreciação a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), a qual pretende seja dada interpretação conforme a Constituição aos art. 124, 126, 128, incs. I e II do Código Penal, para afastar qualquer interpretação dos dispositivos como impeditivos da interrupção da gravidez.

O art. 128 do Código Penal não prevê de forma expressa a possibilidade de aborto nos casos de gravidez de feto anencéfalo, excluindo do crime de aborto apenas a interrupção da gravidez resultante de estupro ou que ofereça risco de vida à gestante.

Destarte, como médicos e demais profissionais de saúde têm receio de sofrerem as conseqüências penais de uma eventual interrupção da gravidez, as gestantes têm sido obrigadas a pedir autorização para a interrupção da gravidez.

Contudo, muitos juízes têm negado o pedido de abortamento da gestação, utilizando como fundamento, principalmente, a inexistência de permissão legal no Código Penal.

Assim, pretende-se demonstrar que à luz da Constituição é possível a interrupção da gravidez nesses casos, devendo-se garantir à gestante os direitos à dignidade da pessoa humana e proibição da tortura, à saúde, à autonomia e à liberdade, os quais não podem sucumbir apenas para se garantir o nascimento de um feto sem qualquer expectativa de sobrevida.  

2 A ANENCEFALIA: Conceito de anencefalia e expectativa de vida

De uns tempos para cá a sociedade tem se deparado com o problema de diagnósticos precoces de gestações de fetos anencéfalos.

De acordo com a literatura médica, a anencefalia consiste “[...] na má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de forma que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do córtex encefálico.” (BERGMAN; KLIEGMAN; HAL, 2002, apud BARROSO, 2004, p. 04).

Patrícia Marques Freitas (2011, p. 70) explica que “a medicina descreve a anencefalia e a espinha bífida como defeito aberto do tubo neural (DATB), que resulta da falha de fechamento do tubo neural ocorrendo até o 26º/28º dias de vida embrionária”.

Segundo Diniz e Ribeiro (2003, p. 101), a anomalia conhecida vulgarmente como “ausência de cérebro” importa a inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central (responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade), restando apenas algumas funções inferiores, que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal. 

Marcela Barroso (2012, p. 39) informa que “a anencefalia implica principalmente a falta de desenvolvimento dos hemisférios cerebrais e do hipotálamo e do desenvolvimento incompleto da pituitária e a ausência completa ou parcial da abóbada craniana”. Ainda segundo a autora, “as estruturas faciais são alteradas e há anormalidade nas vértebras cervicais. Os olhos podem parecer grandes rasgos normais, mas o nervo ótico é inexistente ou, não alcança o cérebro”.

A mesma autora (2012, p. 40) revela que:

A anencefalia está frequentemente ligada a outras anomalias, além disso devido à completa ablação das áreas cruciais do tálamo, os anencéfalos carecem do substrato neurais que se requer para experimentar dor, da mesma forma que carecem de substrato neural indispensáveis para o raciocínio, comunicação, conhecimento e sensibilidade em geral.

Pesquisas médicas apontam que a anencefalia é fatal em 100% (cem por cento) dos casos, sendo que metade dos fetos morrem antes de nascer e a outra metade não sobrevive às primeiras 48 (quarenta e oito) horas e em nenhum caso a mais que dias. E ainda, a mãe corre risco de morte e a gravidez deve ser interrompida imediatamente (BRUM, 2004, p. 68).

3 A GESTAÇÃO DE FETOS ANENCÉFALO E O CÓDIGO PENAL DE 1940

A despeito das indicações médicas e da certeza da inexistência de vida extra-uterina, muitas mulheres vêm sendo obrigadas a carregar por nove meses um feto sem expectativa alguma de vida, o que além de lhes trazer sérios riscos às suas vidas, ainda causa grande transtorno psicológico e mental.

O Código Penal tipifica a figura do aborto, o qual pode ser entendido como “a cessação da gravidez, antes do termo normal, causando a morte do feto ou embrião” (NUCCI, 2011, p. 652).

Dessa forma, a interrupção da gravidez nesses casos pode ser entendida, por alguns, como crime de aborto, já que o art. 128 do Código Penal não traz expressa como excludente de ilicitude tal hipótese. Vejamos:

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Como se vê o art. 128 do Código Penal não prevê de forma expressa a possibilidade de aborto nos casos de gravidez de feto anencéfalo, dispondo como causas de excludente de punibilidade apenas o aborto em caso de gravidez resultante de estupro ou que ofereça risco de vida à gestante.

Apesar de os especialistas afirmarem que a gravidez de feto com anencefalia pode causar riscos à saúde da gestante, tal hipótese não está albergada pela excludente de ilicitude do inc. II do art. 128 do Código Penal. É claro que se trouxer risco de morte à mãe haverá albergado pelo dispositivo.

Neste contexto, os médicos e demais profissionais de saúde têm receio de sofrerem as conseqüências penais de uma eventual interrupção da gravidez.

Assim, muitas mulheres têm recorrido à justiça a fim de pedir autorização para interromper a gravidez, o que nem sempre tem sido resolvido favoravelmente, pois muitos juízes têm negado o direito ao abortamento, principalmente sob o fundamento de inexistência de permissão legal no Código Penal.

Equivocadas mostram-se tais decisões, pois existe um fundamento maior para o deferimento de tais pedidos que é a proteção e o cumprimento dos direitos constitucionais à dignidade da pessoa humana e proibição da tortura, à saúde e, à autonomia e à liberdade, que devem ser garantidos às gestantes nesses casos tão dolorosos.

Conforme restará demonstrado adiante, na ponderação entre os citados direitos da gestante e o direito a uma expectativa de breve vida do feto devem prevalecer os primeiros, aplicando-se o princípio da proporcionalidade. Ressalte-se que as normas-princípios, ao contrário das normas-regras, não são afastadas completamente, mas aplicadas em maior ou menor proporção em um dado caso concreto.

Neste contexto, a fim de por fim à angustia e à insegurança jurídica, foi proposta a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), a qual pretende seja dada interpretação conforme a Constituição aos art. 124, 126, 128, incs. I e II do Código Penal, para afastar qualquer interpretação dos dispositivos como impeditivos da interrupção da gravidez.

Defende o subscritor da petição Inicial da referida ação que a hipótese em questão não foi prevista pelo Código Penal no art. 128 porque em 1940 não existia tecnologia hábil a diagnosticar com precisão as anomalias fetais incompatíveis com a vida, devendo-se aplicar uma interpretação evolutiva do direito:

O Código Penal tipifica o aborto provocado pela gestante ou por terceiro nos arts. 124 a 126. Mas não pune o aborto dito necessário, se não há outro meio de salvar a vida da gestante, nem tampouco o aborto desejado pela mulher, em caso de gravidez resultante de estupro. Pois bem: a hipótese aqui em exame só não foi expressamente abrigada no art. 128 do Código Penal como excludente de punibilidade porque em 1940, quando editada sua Parte Especial, a tecnologia existente não possibilitava o diagnóstico preciso de anomalias fetais incompatíveis com a vida. Não é difícil demonstrar o ponto.

O Código Penal exclui a punibilidade do aborto no caso de gravidez decorrente de estupro. Na sua valoração de fatores como a potencialidade de vida do feto e o sofrimento da mãe, vítima de uma violência, o legislador fez uma ponderação moral e permitiu a cessação da gestação. No caso aqui estudado, a ponderação é mais simples e envolve escolha moral menos drástica: o imenso sofrimento da mãe, de um lado, e a ausência de potencialidade de vida, do outro lado. Parece claro que o Código Penal, havendo autorizado o mais, somente não fez referência ao menos porque não era possível vislumbrar esta possibilidade no momento em que foi elaborado.

Deve-se aplicar aqui, no entanto, uma interpretação evolutiva do Direito. A norma jurídica, uma vez posta em vigor, liberta-se da vontade subjetiva que a criou e passa a ter uma existência objetiva e autônoma. É isso que permite sua adaptação a novas situações, ainda que não antecipadas pelo legislador, mas compreendidas na ordem de valores que o inspirou e nas possibilidades e limites oferecidos pelo texto normativo. Afigura-se fora de dúvida que a antecipação de parto aqui defendida situa-se no âmbito lógico das excludentes de punibilidade criadas pelo Código, por ser muito menos grave do que a que vale para o aborto em caso de estupro.

(BARROSO, 2012b, p. 26-27) .

4 A QUESTÃO DO INÍCIO DA VIDA

A discussão em torno do aborto passa não raras vezes pela discussão do momento em que começa a vida. A maioria dos que se posicionam contrariamente ao aborto defendem que a vida começa desde a concepção, razão pela qual não haveria como se eliminar o feto.

A questão do momento a partir do qual a vida começa passa longe de ser pacífica. Não existe consenso no campo filosófico, biológico, médico ou religioso. Para alguns a vida começa com a nidação, enquanto para outros é imprescindível a formação do Sistema Nervoso Central, etc.

A respeito do tema, Luis Roberto Barroso (2012b, p. 7-9) faz uma síntese das diversas correntes existentes a respeito do marco inicial da vida, a qual, por sua precisão, merece ser citada:

III. A QUESTÃO DO PONTO DE VISTA ÉTICO

1. O debate sobre o início da vida

Como se pretende demonstrar mais à frente, o art. 5º da Lei nº 11.105/2005 não viola o direito à vida e nem a dignidade humana, por diversas razões. É preciso admitir, no entanto, que inexiste consenso científico ou filosófico acerca do momento em que tem início a vida. O reconhecimento ou não de uma linha divisória moralmente significativa entre óvulo fertilizado e pessoa humana é uma das grandes questões do debate ético contemporâneo. Há inúmeras concepções acerca do tema18. Sem nenhuma pretensão de exaustividade, é possível enunciar algumas posições que têm sido defendidas no plano teórico, segundo as quais a vida humana se inicia: (i) com a fecundação; (ii) com a nidação19; (iii) quando o feto passa a ter capacidade de existir sem a mãe (entre a 24a e a 26a semanas da gestação)20; (iv) quando da formação do sistema nervoso central (SNC)21. Há até mesmo quem defenda que a vida humana se inicia quando passam a existir indicadores morais22. Não há necessidade nem conveniência de se prosseguir na enumeração das diferentes perspectivas debatidas no campo da bioética23. O ponto que se pretende aqui demonstrar é o da existência do que a filosofia moderna denomina de desacordo moral razoável24.

Cumpre especular acerca da postura ética ideal em situações como esta. O senso moral de cada um envolve elementos diversos25, que incluem: (a) a consciência de si, a definição dos próprios valores e da própria conduta; e (b) a percepção do outro, o respeito pelos valores do próximo e a tolerância com sua conduta. Não se trata de pregar, naturalmente, um relativismo moral, mas de reconhecer a inadequação do dogmatismo onde a vida democrática exige pluralismo e diversidade. Em situações como essa, o papel do Estado deve ser o de assegurar o exercício da autonomia privada, de respeitar a valoração ética de cada um, sem a imposição externa de condutas imperativas.

Os defensores da não interrupção da gravidez de fetos anencefálicos fundamentam sua posição no direito à vida do feto, protegida pela Constituição Federal no seu art. 5º, caput.

De acordo com essa corrente a vida deve ser protegida desde a concepção, conforme disposto no art. 2º do Código Civil e no art. 4º do Pacto de São José da Costa Rica. Nesse sentir, cito as palavras de Patrícia Freitas (2011, p. 68):

Além disso, a Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil, em seu art. 4º, I, caminhando no mesmo sentido que a legislação brasileira estabelece que: “toda pessoa tem direito a que se respeite a vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”. Portanto, segundo o Pacto, o início da vida ocorre desde o momento da concepção.

Consolidando essa idéia, o Código Civil brasileiro no artigo 2º, in verbis: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção os diretos do nascituro”. Dentre os quais, pode-se destacar o do exercício do direito à vida, garantido pela Constituição. A personalidade civil que é adquirida pelo recém-nascido  após o parto tem por pressuposto que este nasça com vida (…).

Para os propositores da ADPF 54, não existe aborto no caso de feto anencéfalo uma vez que a morte não decorreria dos meios abortivos, mas sim da má-formação congênita, incompatível com a vida extra-uterina.

Poder-se-ia cogitar, inclusive, a ausência de vida do feto anencéfalo em razão da inexistência de funções do sistema nervoso central. Como já afirmado, os fetos anencéfalos possuem apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal.

Como é sabido, a Lei nº. 9.434 de 04/02/1997 estabelece como momento do diagnóstico da morte, a morte encefálica. Assim, como a atividade cerebral dos fetos anencéfalos é limitada a funções inferiores, poder-se-ia comparar tal situação à própria ausência de vida.

Neste sentido, a Resolução CFM nº. 1752/2004[1] equiparou o anencéfalo a um natimorto cerebral, ao mesmo tempo em que previu a realização de transplante de órgão e tecidos após o nascimento.

Em 2010, a referida Resolução foi revogada pela Resolução CFM nº 1949 de 6 de julho de 2010[2], a qual explicitou os precários resultados obtidos com os transplantes dos órgãos e tecidos oriundos dos anencéfalos.

O Ministro Carlos Aires Brito chegou a suscitar tal questão em seu voto proferido no julgamento da ADI 3510 (BRASIL, 2008a):

Chego a uma terceira síntese parcial: se à lei ordinária é permitido fazer coincidir a morte encefálica com a cessação da vida de uma dada pessoa humana; se já está assim positivamente regrado que a morte encefálica é o preciso ponto terminal da personalizada existência humana, a justificar a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo ainda fisicamente pulsante para fins de transplante, pesquisa e tratamento; se enfim, o embrião humano a que se reporta o art. 5º da Lei de Biossegurança constitui-se num ente absolutamente incapaz de qualquer resquício de vida encefálica, então a afirmação de incompatibilidade deste último diploma legal com a Constituição é de ser plena e prontamente rechaçada. É afirmativa inteiramente órfã de suporte jurídico-positivo, sem embargo da inquestionável pureza dos propósitos e da franca honestidade intelectual dos que a fazem.

Para os defensores da ilegalidade do aborto de fetos anencéfalos é inconcebível equipará-los a um natimorto cerebral porque existente atividade cerebral ainda que limitada, conforme se posiciona Patrícia Freitas (2011, p. 105):

Em sentido complementar, os que entendem não se aplicar ao feto o critério da morte encefálica, ainda argumentam que sendo o encéfalo formado por córtex cerebral, bulbo e tronco-cerebral, o anencéfalo não se enquadraria no caso em questão porque apresenta os dois últimos componentes do encéfalo.

No que se refere ao termo utilizado na Resolução do CFM nº 1.752/2004 para definir o feto anencéfalo, qual seja, natimorto cerebral, estabelece-se uma incongruência com terminologia jurídica. Para o direito, natimorto é o que nasce sem vida alguma, o bebê de anencefalia, no entanto, respira, mama e chora. Assim, para os critérios de definição jurídica ele não pode ser tido como um natimorto.

Contudo, a despeito da existência de atividade cerebral nos fetos anencéfalos, esta é mínima, apta a produzir apenas movimentos involuntários tais como respiração e funções vasomotoras. Assim, o feto não tem consciência, é incapaz de relacionar-se, de comunicar-se, de sentir dor ou de ter emotividade, ou seja, não possui muitas das características que distinguem o ser humano dos outros animais.

O médico Dr. Thomaz Rafael Gollop, ouvido no STF na Audiência do dia 28/08/2004 (BRASIL, 2008c), explicou que de acordo com o Conselho Federal de Medicina, a respiração e batimento cardíaco, não excluem o diagnóstico de morte cerebral:

Uma outra contribuição: o sistema nervoso, hoje, é dividido no somático que tem a vida de relação; e o visceral, que é vida vegetativa.

Quando temos um doente terminal, temos um indivíduo em vida vegetativa; ele sobrevive numa fase terminal, mas não tem nenhuma vida de relação. Portanto, ele não tem capacidade de interpretação de informação. Quando chegamos a um paciente terminal na UTI e falamos alguma coisa, ele não tem condição de processar essa informação, porque ele precisa justamente do córtex cerebral. Se esse lhe falta, ele não tem condição de ter nenhum tipo de sentimento, nem condição de processar informação.

Esse gráfico já foi mostrado, mas, na merocrania, há um encéfalo rudimentar com algumas partes do encéfalo revestidos por uma membrana, e isto permite uma sobrevida maior. Esses indivíduos têm o tronco cerebral que permite respirar e ter batimento cardíaco, mas não permite, de maneira nenhuma, processar informação. Essa informação faltava e ela é importantíssima.

Por uma resolução do Conselho Federal de Medicina, aqui representando toda classe médica, interessa para o diagnóstico de morte encefálica, exclusivamente, a arreatividade supra-espinal.

Portanto, aquilo que está acima do tronco não reage, é morto, não tem atividade absolutamente nenhuma. Os sinais de reatividade infraespinal, ou seja, respiração e batimento cardíaco, não excluem o diagnóstico de morte cerebral.

(…)Também, segundo o Conselho Federal de Medicina, a morte encefálica é conseqüência de um processo irreversível e de causa conhecida, sendo o anencéfalo o resultado desse processo sem qualquer possibilidade de sobrevida por não possuir a parte vital do cérebro somático, a parte vital do cérebro. O feto anencéfalo é um natimorto cerebral. Evidentemente, qualquer médico, e já foi dito aqui, vai respeitar a opção pela manutenção da gravidez.

Importante notar que mesmo alguns organismos sem cérebro, como por exemplo, as esponjas, são capazes de realizar comportamentos como se locomover, conforme se extrai da Wikipédia (2012, p. 01):

Nem todos os comportamentos precisam de um cérebro. Mesmo organismos unicelulares são capazes de extrair informação do ambiente e responderem de acordo.[1] As esponjas, às quais falta um sistema nervoso central, são capazes de coordenar suas contrações corporais, e até mesmo de se locomoverem.[2] Nos vertebrados, a própria coluna vertebral contém circuitos neurais capazes de gerar respostas reflexas, assim como padrões motores simples, como nadar ou andar.[3] Entretanto, o controle sofisticado do comportamento, baseado em um sistema sensorial complexo requer a capacidade de integração de informações de um cérebro centralizado.

Como se verifica, até os organismos sem cérebro são capazes de realizar alguns comportamentos como nadar ou andar. De certo, biologicamente tais organismos possuem vida, mas ninguém afirmaria que a vida destes é tão importante quanto a vida de um ser humano.

Os fetos anencefálicos também são capazes de realizar alguns movimentos, mas como dito, estes são invontuntários. Dessa forma, ainda que se possa falar em vida, pelo menos no sentido biológico, seria possivel falar em uma vida humana? E mais, será que essa vida tão somente biológica desse ser incapaz de ter consciência, uma vida totalmente vegetativa, pode ser considerada tão importante quanto uma vida humana?

Para Ronald Dworkin (2009, p. 12 e 30), a discussão a respeito da permissão ou proibição do aborto não deve ter como ponto de partida o momento em que a vida começa, por ser tratar de discussão inútil:

Em termos muito gerais, posso descrever de imediato essa confusão intelectual. O debate público sobre o aborto foi incapaz de reconhecer uma distinção absolutamente crucial. Um lado insiste em que a vida humana começa no momento da concepção, que o feto é uma pessoa a partir desse momento, que o aborto é um assassinato, um homicídio ou uma agressão à santidade da humana. Cada uma dessas frases, porém, pode ser usada para descrever idéias muito diferentes.

 

A questão de saber se um feto é um ser humano já a partir da concepção, ou de algum momento posterior da gravidez, é simplesmente demasiado ambígua para ser de alguma utilidade. As questões cruciais são as duas perguntas morais que acabei de descrever, e devemos examiná-las diretamente, sem ambigüidades. Quando uma criatura adquire interesses e direitos? Quando a vida de uma criatura humana começa a incorporar um valor intrínseco, e com quais conseqüências? 

Por mais inusitada que possa ser a afirmação de Dworkin sobre a inutilidade da discussão, considerando a inexistência de consenso sobre o assunto ou mesmo a possibilidade de qualquer identificação de qual seja o pensamento dominante, parece ter razão o mestre. Pelo menos, não há como se discutir a questão do aborto, levando em consideração apenas uma dessas correntes.

Juridicamente, a Constituição Federal protege a inviolabilidade do direito à vida, conforme previsão do art. 5º, caput:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Contudo, o diploma constitucional não define quando começa ou termina a vida. Assim sendo, é plenamente defensável a idéia de que a Constituição Federal não se posicionou a respeito da proteção da vida do feto e da questão do aborto, conforme preleciona Marcela Barroso (2010, p. 149):

Em termos expressos, a constituição não se posiciona acerca da proteção da vida do feto e da questão do aborto. Ao contrário, durante a constituinte foi proposto que se positivasse a proteção da vida a desde a concepção e houve uma escolha deliberada pela omissão quanto ao início da proteção à vida, exatamente por ser esse um fato controverso.

Assim, restou à legislação ordinária estabelecer em que termos essa proteção de daria.

Neste sentir, o Código Civil de 2002, estabeleceu como marco inicial do surgimento da pessoa humana o nascimento com vida, colocando a salvo os direitos do nascituro desde a concepção:

Art. 1º Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.

Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

Destarte, segundo o Código Civil só se pode falar em pessoa humana após o nascimento com vida e, conseqüentemente, no princípio da dignidade da pessoa humana (BARROSO, Luis, 2012b, p. 13).  

Sobre a questão dos direitos do nascituro, discorre Luis Roberto Barroso (2012b, p. 11), que “nascituro é o ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato certo”, acepção essa extraída do Dicionário Houaiss.

Sem adentrar em maiores detalhes sobre a discussão, pode-se afirmar, diante das peculiaridades da gravidez, que o nascimento de feto anencéfalo não é acontecimento certo, ao contrário, é fato improvável. Assim, mais uma indagação se impõe: o feto anencéfalo teria direitos protegidos pelo Código Civil?

Por sua vez, o Código Penal Brasileiro, art. 128, retirou da esfera de proteção jurídica o direito à vida dos fetos em duas hipóteses: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e quando a gravidez resulta de estupro.

Como se vê, nessas duas circunstâncias o referido diploma legal dá preferência à proteção da vida e da honra da gestante em detrimento da potencialidade de vida feto, neste caso, saudável, com plenas condições de vida extra-uterina.

Interessante é que nunca se questionou a constitucionalidade da referida norma penal. E os defensores da ilegalidade do aborto de feto anecéfalos raramente se posicionam sobre a questão.

5 DOS DIREITOS DA GESTANTE

5.1 DIREITO À SAÚDE

A saúde é um direito social de todos e dever do Estado previsto no art. 196 da Constituição Federal.

De acordo com Eduardo Rocha (2011, p. 79), durante muitos anos a saúde foi concebida apenas como ausência de doenças, mas que no decorrer do processo histórico constatou-se que este conceito negativo não era capaz de proporcionar uma vida com qualidade, ampliando-se a noção de saúde a uma dimensão positiva.

A Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2012), define a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”.

Como se verifica, o conceito de saúde não compreende apenas a ausência de doença, mas abrange o bem estar tanto físico como mental e social.

No caso da gravidez de fetos anencéfalos, os especialistas apontam muitos complicadores que podem comprometer a saúde e até mesmo a vida das gestantes, como por exemplo, risco de óbito intra-uterino, possibilidade de toxemia gravídica em razão do excesso de líquido amniótico, aumento dos riscos obstétricos no parto e no pós-parto, risco de hipertensão e diabetes, parto prematuro, gravidez prolongada, descolamento placentário, esterectomia, etc. Igualmente relatado foi o abalo psicológico sofrido pelas gestantes.

Sobre esses riscos falaram na Audiência no STF do dia 28.08.2004 alguns especialistas. O Doutor Roberto Luiz D’Ávila, representando o Conselho Federal de Medicina assim se posicionou (BRASIL, 2008c, p. 07-08):

A gravidez impõe um risco à mulher. Por que submetê-la a um risco, que para nós é desnecessário, se ela não desejar? E esse é o grande problema, ficamos absolutamente reféns das decisões judiciais.

Geralmente o que acontece, infelizmente, é que as decisões não favorecem ao desejo dos pais, elas são postergadas, e, quando se decide, o bebê já nasceu e já morreu. É assim que acontece. Na grande maioria, sessenta e cinco por cento das estatísticas mostram que os anencéfalos morrem intra-útero, numa provável seleção natural. A natureza faz isso com má-formações incompatíveis com a vida. Mas alguns chegam a nascer, e a grande maioria morre poucas horas depois; aqueles que duram mais tempo são absolutamente exceções. E nós que fazemos medicina, ciência, não nos pautamos por exceções, nos pautamos por regras, e a regra geral exige isso.

E ainda em resposta ao questionamento do MINISTRO MARCO AURÉLIO que indagou se a saúde da gestante, em si, é afetada pela gravidez de feto com anencefalia, assim respondeu:

Excelência, sou cardiologista, mas é claro que, por dever de ofício, lemos muito sobre o assunto, até por ser um estudante ainda de Bioética. É sabido que, na gestação de um anencéfalo, é muito freqüente a ocorrência simultânea do que chamamos de polihidrâmnio, excesso de líquido amniótico, já que ele não deglute, há uma contínua produção, e essa associação é muito comum. Essa condição de polihidrâmnio é acompanhada de toxemia gravídica, caso grave que expõe a saúde da mãe.  (BRASIL, 2008b)

Por sua vez, falou pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, o Professor Doutor Jorge Andalaft Neto, que enumerou uma série de complicadores da gravidez de anencéfalo (BRASIL, 2008b, p. 15-19):

A anencefalia é uma malformação mais frequentemente diagnosticada no primeiro trimestre da gestação.

No primeiro exame de ultra-som, já dentro do primeiro trimestre da gestação, antes de doze semanas é possível diagnosticar a patologia – o professor Roberto Alberto D’Ávila fala em um caso de nove semanas.

O impacto psíquico é muito grande para as mulheres, é devastador. Elas são acometidas por choro, tristeza profunda, frustração, culpa, indignação, sofrimento, pensamentos de morte e acham que elas são as responsáveis por estar acontecendo aquela coisa com o seu bebê.

A anencefalia é incompatível com a vida – isso explicamos para a mulher. Ela é letal, multifatorial e decorre de defeitos de fechamento de tubo neural. O feto também pode ter outras malformações associadas. Agora, o problema é que o prosseguimento gestacional aumenta muito os riscos para as mulheres. Esses são dados da Organização Mundial da Saúde em um estudo feito em 2005, muito bem estruturado.

Aí estão as repercussões para a vida da mulher que é forçada a prosseguir a gestação:aumento da morbidade; aumento dos riscos durante a gestação; aumento dos riscos obstétricos no parto e no pós-parto e conseqüências psicológicas severas. São dados da Organização Mundial da Saúde e do Comitê da Associação de Ginecologia e Obstetrícia Americana.

Um estudo com oitenta pacientes realizado na Universidade Federal de São Paulo mostrou os seguintes dados, Excelência: variações do líquido amniótico, 50% - isso foi uma tese de Doutorado muito estruturada, passou por uma banca examinadora de muita competência, sendo os dados muito confiáveis –, inclusive sendo o mais importante o polidrâmnio; a hipertensão e o diabetes apareceram em 9,3% das mulheres; o parto prematuro em 58% das mulheres; a gravidez prolongada em 22%; descolamento placentário, 7% - esses são dados muito confiáveis -; óbito intra-uterino, 7%; 4,8% das mulheres precisaram tomar transfusão de sangue porque o útero não contraía depois do parto; 4% sofreram esterectomia, perderam o útero; apenas 2,8% destas mulheres não apresentaram nenhuma intercorrência.

Um outro trabalho, feito no Japão por Hitomi, em 2007, mostra uma situação parecida: 50% de polidrâmnios; 23% de óbito intra-uterino; 46% de apresentações anômalas - o bebê não fica na posição correta, não fica de cabecinha para baixo, mas fica atravessado ou sentado, não conseguindo se posicionar -, o que aumenta muito o risco na hora do parto; partos de emergência, 29%; e esterectomias pós-parto, 5% - 5% das mulheres sofrem esterectomia, perdem o útero em decorrência disso. Polidrâmnio provoca - Vossa Senhora havia perguntado - insuficiência venosa, partos prematuros, dificuldades respiratórias e ruptura prematura da bolsa ocorrem em 50% das vezes.

Agora, o impacto sobre a saúde mental das mulheres é impressionante. O risco de depressão é oito vezes maior. O stress psíquico, a angústia, a culpa, pensamentos de suicídios - temos casos em que a mulheres queriam se suicidar por se sentirem culpadas, fora que a situação conjugal dessas mulheres fica muito comprometida -, fixação na imagem fetal, sofrimento e tristeza profunda.

O Doutor Thomaz Rafael Gollop, representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, também elencou alguns problemas relacionados á gestação de anencéfalos (BRASIL, 2008c, p 98-99):

Fiz bem. Trouxe alguns dados com referência bibliográfica: Polihidrâmnio, cinqüenta por cento dos casos; gravidez prolongada, dezoito por cento dos casos; anomalias na posição do feto que complicam o parto e arriscam a mãe, vinte e cinco por cento dos casos.

Notem senhores: um quarto das grávidas têm posições inadequadas do feto que complicam a dinâmica do parto. O descolamento da placenta do útero antes do parto é três vezes maior e pode trazer graves complicações obstétricas. O acrômio é o osso do ombro. O desprendimento do ombro que tem altas implicações e complicações do assoalho pélvico da mulher é seis vezes maior; rotura prematura da bolsa das águas, três vezes maior.

Nós somos cuidadosos nas referências, no estudo. Portanto, na retenção de placenta e atonia do útero que não se contrai, não há dados na literatura. E eu não me permito fazer chutes.

Esta é a condição de um feto anencefálico: ele não tem crânio nem cérebro. Logo, não pode ter nenhum tipo de sentimento, porque não há uma estação que processe isso.

Suelen Chirieleison Terruel (2012, p.01) também expõe os riscos que a saúde da gestante corre com a gravidez nessas circunstâncias:

Com relação aos períodos do parto, nota-se que, em geral, a fase de dilatação e de expulsão fetal são mais demoradas. Orienta-se que deve ser observado que, nos casos onde há cicatrizes uterinas anteriores (cesarianas), a estimulação do parto deve ser criteriosa. A escolha da via parto é sempre difícil, com preferência ao parto por via vaginal, mesmo sendo mais penoso. Cria-se um risco elevado no momento do parto devido ao trauma que o tecido nervoso residual sofre por não estar protegido pelas estruturas ósseas.

Quanto à gestante, há divergência sobre o fato da gestação de anencéfalo ser prejudicial ou não à mulher. Significativa é a representação de médicos que dizem não haver nenhum risco para a gestante, os quais afirmam ser a gestação de anencéfalo idêntica à gestação de feto saudável.

Entretanto, existe uma vertente que defende ser a gestante de anencéfalo prejudicada pela gestação, afirmando que há evidências muito claras de que a manutenção da gestação pode elevar o risco de morbi-mortalidade materna. Neste sentido se posiciona a Febrasgo, afirmando ser freqüente a associação da anencefalia à polihidrâmnio em 50% dos casos. Esta alta incidência deve-se ao fato de que parte do líquido amniótico é deglutido pelo concepto. Também a apresentação fetal anômala (pélvico transverso, de face e oblíquos) é encontrada em gestações de anencéfalo devido à dificuldade de insinuação do pólo fetal no estreito inferior da bacia. Não é desprezível também a associação com doença hipertensiva específica de gravidez (DHEG), comprometendo o bem-estar físico da gestante.

Nos casos em que se observa a associação com polihidrâmnio e trabalho de parto prolongado, a incidência de hipotonia e hemorragia no pós-parto é de 3 a 5 vezes maior. Pelo fato da mulher não amamentar, já que há o bloqueio da lactação, também a involução uterina é mais lenta, suscitando sangramento às vezes de grande monta no puerpério.

Como se pode notar, não há dúvidas que tanto a saúde física quanto a saúde mental da gestante é abalada na gravidez de feto anencefálico.

O Conselho Federal da OAB já se manifestou no sentido de dever prevalecer o direito à saúde da gestante nesse casos de gestação de anencéfalo, conforme se verifica do trecho do Parecer abaixo (2004, grifo nosso):

17. Com efeito, o artigo 196, da Carta Magna, reza: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". Se a mulher, em gestação de um feto anencefálico, pode correr risco de vida, porque, segundo a literatura médica, cerca de cinqüenta por cento desses fetos têm morte intra-uterina, evidente que o direito à saúde da mulher deve prevalecer. Não só. Registram hospitais e clínicas médicas o profundo transtorno psicológico de que padece a mulher, quando aguarda o parto de um ser sub-humano, sem cérebro, com forma de gente, mas, sem a essência do humano.É evidente que a gestante, nessas circunstâncias, tem o direito de velar por sua saúde.

5.2 DIREITO À LIBERDADE E AUTONOMIA DA VONTADE

O principal argumento daqueles que são contra o aborto dos fetos anencéfalos é a proteção do direito à vida desde a concepção, direito este que, alegam, não pode ser sacrificado em benefício da proteção aos direitos da saúde e liberdade da mãe gestante.

Neste sentido, afirma Patrícia Freitas que, apesar das dores emocionais ocasionadas à gestante, a vida do feto anencéfalo deve ser protegido. Defende ainda a autora que a dor emocional e a dor psicológica devem ser suportadas pela gestante por ser inerente à condição de ser humano.

Contudo, entende-se que ainda que a gravidez acarrete dores emocionais e psicológicas para a gestante, o feto anencéfalo está vivo em seu ventre e, por conseguinte, seu direito à vida não pode ser violado. No caso em questão, em que se opõem o princípio de liberdade da mãe ao princípio fundamental da vida, o princípio da proporcionalidade e da ponderação nos leva a crer que o bebê anencéfalo se apresenta como a vida mais fragilizada a ser protegida pela Constituição Federal (…) (FREITAS, 2011, p. 67)

Assim, o risco psicológico não pode ser tido como justificativa para a realização do aborto, do mesmo modo não pode o ser o estado de sofrimento pelo qual passa a mãe perante um caso de malformação fetal. A dor emocional e sofrimento são condições próprias do ser humano (…). (FREITAS, 2011, p. 85)

Ainda que a ótica da dor materna e do companheiro sejam relevantes, esse sofrimento não pode suplantar a inviolabilidade do direito à vida resguardado na Constituição Federal brasileira. (FREITAS, 2011, p. 91).

Para a Igreja Católica, a vida deve ser protegida desde a concepção pelo simples fato de o feto pertencer à espécie humana. Trata-se de proteção ao valor intrínseco da vida. Neste sentido, citam-se algumas passagens da fala do Padre Luiz Antônio Bento, na Audiência da ADPF nº. 54, representando a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil:

Queremos, desta forma, apresentar as razões pelas quais defendemos a humanidade deste ser humano que está em gestação, ainda que esteja com malformação.

As pretensões de desqualificação da pessoa humana ferem a dignidade intrínseca e inviolável da pessoa. Só pelo fato de pertencer à espécie humana, esse indivíduo tem uma dignidade; e é essa dignidade que queremos reafirmar, que precisa ser tutelada, que precisa ser respeitada.

Uma vida atingida por limites psicofísicos - ou, como se diz, portadores de anomalia - é certamente limitada na sua liberdade exterior, porém em nada diminui a sua dignidade. O fato de uma deficiência, de uma anomalia, não diminui ou nega a dignidade de uma pessoa; portanto, o indivíduo humano vale pelo seu ser, não pelo seu modo de ser, muito menos pelo reconhecimento que pode vir de outros em ordem às qualidades físicas ou psíquicas, quer as possua ou não. Essa dignidade é intrínseca à pessoa.

Quanto ao sofrimento da gestante e da família, este sofrimento a todos sensibiliza. Não podemos ser indiferentes a essa dor e angústia. Não significa que nós somos insensíveis ao sofrimento da mãe, ao sofrimento do pai, ao sofrimento de toda a família, daqueles que convivem com essa realidade. Mas esse sofrimento não justifica nem autoriza o sacrifício da vida do filho que se carrega no ventre. Mas esse sofrimento, portanto, precisa ser acolhido por todos, porque, quando a Medicina não pode curar, ela ainda pode fazer muita coisa, pode aliviar o sofrimento, pode confortar, pode estar presente na vida desses pacientes. E, neste caso, são dois os pacientes: a mãe e o filho que precisam dos cuidados.

Ainda Jérôme Lejeune: se a natureza condena, não cabe à Medicina executar a sentença, mas, sim, transformar a pena. (BRASIL, 2008b, p 5-11).

Em primeiro lugar, a Igreja Católica equivoca-se ao comparar a situação do aborto de feto anencéfalo ao aborto eugênico, como se se tratasse de uma escolha sobre a vida ou a morte de um ser malformado. Contudo, não se trata de escolher abortar um ser com malformação, mas sim um ser que não terá condições de vida extra-uterina. As pessoas com outros de tipos de malformação podem viver em sociedade com suas limitações, já os fetos com anencefalia nem sequer tem condições de vida.

Em segundo, percebe-se que a Igreja Católica defende o Direito à vida pelo simples fato de esta possuir um valor intrínseco, ou seja, a vida humana é um bem sagrado, valioso em si mesmo. Assim, a vida deve ser protegida a qualquer custo, pelo simples fato de existir, independente de seu tempo, de sua qualidade ou de quaisquer outros fatores, porque é apenas Deus quem deve ter o domínio sobre a vida e a morte.

Partindo-se da premissa que a vida sagrada em si mesmo, as vidas de todas as pessoas devem ter igual valor, não podendo existir escalonamento entre elas, de forma que não se justificaria a autorização de abortamento quando a vida da gestante correr risco e nem ainda em caso de aborto.

Ocorre que considerar que a vida tem um valor sagrado, intrínseco,, igualmente relevante em qualquer caso, é um ponto de vista, apenas um, dentre tantos que igualmente merecem respeito.

Na verdade, mesmo as pessoas que consideram a vida como um bem supremo, não se opõem a algumas relativizações ao direito à vida, como por exemplo, o aborto para salvar a vida da gestante.

Para alguns doutrinadores, como a expectativa de vida de fetos com anencefalia é muito pequena, sendo poucos os que nascem com vida e, os que conseguem, vivem apenas poucos dias, não haveria vida a ser tutelada pela norma.

Como se vê, não existe um consenso mínimo a respeito da existência ou não de vida em um feto anencéfalo, de forma que não cabe ao Estado impor à gestante um sofrimento, tão-somente para fazê-la aceitar uma convicção filosófica ou religiosa de um terceiro qualquer. Caberá à própria gestante decidir se deseja aguardar o final de sua gravidez ou se deseja desde logo abortar a criança. Tal decisão deverá ficar sob a responsabilidade apenas da gestante e seu companheiro, não devendo o Estado tolerar ingerências externas.

Nesse sentido,

As duas questões tratadas no presente texto envolvem temas sensíveis, por colocarem o Direito na fronteira entre a ciência e a fé. Trata-se de um espaço onde se contrapõem visões de mundo diversas, capazes de produzir desacordos morais razoáveis. Quando isso ocorre, o papel do Direito é o de reconhecer a diversidade e resguardar o pluralismo, sem impor condutas compulsórias, violadoras da consciência de cada um. Em situações como essas, o respeito à dignidade da pessoa humana determina que se observe a autonomia privada do sujeito, suas escolhas e sua verdade. (BARROSO, 2012b, p. 37).

5.3 DIREITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E PROIBIÇÃO DA TORTURA

A dignidade da pessoa humana encontra-se erigida à condição de fundamento do Estado na Constituição de 1988, consoante art. 1.º, III:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Para alguns autores, em razão da importância de seu conteúdo, trata-se de princípio matriz de todo o ordenamento jurídico constitucional, a partir do qual as demais normas devem ser interpretadas. Neste sentido, ensina Piovesan (2009, p. 07):

O valor da dignidade humana — ineditamente elevado a princípio fundamental da Carta, nos termos do art. 1°, III — impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Na ordem de 1988, esses valores passam a ser dotados de uma especial força expansiva, projetando-se por todo universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional.

Não há duvidas de que obrigar a gestante a carregar por nove meses um feto sem qualquer expectativa de sobrevida é violar a dignidade da sua condição de ser humano e submetê-la à tortura, tanto física, quanto psicológica.

Como já dito, além de existirem riscos de vida à gestante, pois há grande probabilidade de morte intra-uterina do feto, existem ainda os abalos psicológicos sofridos pela gestante, que conviverá todos os dias da gravidez com a angústia de dar à luz a uma criança sem vida.

Neste sentido, explicativas as palavras de Luis Roberto Barroso (2012b, p.28):

O princípio da dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio da humanidade. Uma das suas manifestações concretas se dá pela via dos chamados direitos da personalidade, que são direitos reconhecidos a todos os seres humanos e oponíveis aos demais indivíduos e ao Estado. Tais direitos se apresentam em dois grupos: (i) direitos à integridade física, englobando o direito à vida, o direito ao próprio corpo e o direito ao cadáver; e (ii) direitos à integridade moral e psicológica, rubrica na qual se inserem os direitos à honra, à liberdade, à vida privada, à intimidade, à imagem, dentre outros.

Pois bem: obrigar uma mulher a levar até o final a gestação de um feto anencefálico, sem viabilidade de vida extrauterina, viola as duas dimensões da dignidade referidas acima. Do ponto de vista da integridade física, a gestante será obrigada a passar cerca de seis meses – o diagnóstico é feito no terceiro mês – sofrendo as transformações de seu corpo, preparando-se para a chegada do filho que ela não vai ter. No tocante à integridade psicológica, é impossível exagerar o sofrimento de uma pessoa que dorme e acorda, todos os dias, por 180 (cento e oitenta) dias, com a certeza de que o parto, para ela, não será uma celebração da vida, mas um adiado ritual de morte. Ao final de tudo, não haverá um berço, mas um pequeno caixão. Em síntese: impor à mulher o prolongamento de um sofrimento inútil e indesejado viola sua dignidade.

Muito sensato também o posicionamento do Ministro Marco Aurélio de Melo (BRASIL, 2005, grifo nosso), ao proferir o seu voto na Questão de Ordem na ADPF nº. 54, in verbis:

Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a  possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal.   São nove meses de acompanhamento, minuto  a  minuto,  de  avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a- dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50%  dos  casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como  razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como  registrado  na  inicial,  a  gestante  convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é - e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto -  que  conflita  com  a dignidade  humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade. A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físico, mental e social. Daí cumprir o afastamento do quadro, aguardando-se o desfecho, o julgamento de fundo da própria argüição de descumprimento de preceito fundamental, no que idas e vindas do processo acabam por projetar no tempo esdrúxula situação.

6 ponderação de direitos CONSTITUCIONAIS

Em que pese não existir consenso a respeito da existência ou não de vida nos fetos anencéfalos, é possível constatar que toda problemática gira em torno de saber qual direito constitucional deve prevalecer: o direito à vida do feto anencéfalo ou os direitos à saúde, à liberdade e à dignidade da gestante.

A Constituição é composta por normas-regras e normas-princípios, mais especificamente “por regras e princípios de diferentes graus de densidade normativa (concretização), articulados de maneira tal que, juntos, formam uma unidade material (unidade da constituição).”(CUNHA, 2011, p. 144).

Para estabelecer a diferença entre os princípios e as regras, a doutrina criou alguns critérios. Segundo Robert Alexy (2008, p. 87) há diversos critérios para se distinguir regras de princípios, sendo o mais usado o da generalidade:

Há diversos critérios para se distinguir regras de princípios. Provavelmente aquele que é utilizado com mais freqüência é o da generalidade. Segundo esse critério, princípios são normas com grau de generalidade relativamente alto, enquanto o grau de generalidade das regras é relativamente baixo. Um exemplo de norma de grau de generalidade relativamente alto é a norma que garante a liberdade de crença. De outro lado, uma norma de grau de generalidade relativamente baixo seria a norma que prevê que todo preso tem direito de converter outros presos à sua crença. Segundo o critério da generalidade, seria possível pensar em classificar a primeira norma como princípio e a segunda como regra.

Ainda para o mesmo autor o ponto decisivo na distinção entre princípios e regras é que os princípios determinam que algo seja feito na maior medida do possível:

O ponto decisivo na distinção entre princípios e regras é que os princípios são normas que ordenam que algo seja feito na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida da sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.

Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. (ALEXY, 2008, p. 90-91)

Para complementar o posicionamento acima, pode-se citar Dirley da Cunha Júnior (2011, p. 155):

Interessante destacar que os princípios, por se revelarem como normas jurídicas impositivas de optimização, ainda que eventualmente conflitantes (o que pode ocorrer), coexistem, pois permitem o balanceamento de valores e interesses de acordo com sua importância para o caso concreto, ou seja, podem ser objeto de ponderação, harmonização ou concordância. Já as regras sequer podem coexistir quando colidentes, pois as regras antinômicas excluem-se.

No caso em apreço, é notório que as normas invocadas (direito à vida, à saúde, à liberdade e à dignidade da pessoa humana) são normas-princípios, dotadas de alto grau de abstração e generalidade. Dessa forma, as referidas normas coexistem no ordenamento jurídico, não são excludentes, podendo uma ou outra prevalecer no caso concreto.

O conflito entre regras se resolve no âmbito da validade. Para a solução dos conflitos entre as chamadas normas-regras, deve-se excluir uma delas do ordenamento, aplicando-se para tanto um dos critérios propostos por Noberto Bobbio (1999): o critério cronológico (lex posterior derogat priori), o critério hierárquico (lex superior derogat inferiori) e o critério da especialidade (lex specialis derogat generali).

E quando há colisão entre princípios constitucionais? Como resolvê-los? Diferente do conflito entre normas-regras, a colisão entre normas-princípios não se resolve no campo da validade, mas sim no campo do valor. Nesse sentido:

A colisão entre princípios constitucionais não se resolve no campo da validade, mas no campo do valor. Se uma determinada situação é proibida por um princípio, mas permitida por outro, não há que se falar em nulidade de um princípio pela aplicação do outro. No caso concreto, em uma "relação de precedência condicionada", determinado princípio terá maior relevância que o outro, preponderando. Não se pode aceitar que um princípio reconhecido pelo ordenamento constitucional possa ser declarado inválido, por que não aplicável a uma situação específica. Ele apenas recua frente ao maior peso, naquele caso, de outro princípio também reconhecido pela Constituição. A solução do conflito entre regras, em síntese, dá-se no plano da validade, enquanto a colisão de princípios constitucionais no âmbito do valor. (CRISTÓVAM, 2012, p. 11)

De acordo com Robert Alexy (2008, p. 94-95), todos os princípios constitucionais têm o mesmo valor em abstrato, de forma que a solução ao conflito entre uns e outros somente pode ser dada quando analisado o caso concreto, pois poderão ser valorados de forma distinta, dadas as circunstancias postas.

Essa relação de tensão não pode ser solucionada com base em uma precedência absoluta de um desses deveres, ou seja, nenhum desses deveres goza, “por si só, de prioridade”. O “conflito” deve, ao contrário, ser resolvido “por meio de um sopesamento entre os interesses conflitantes”. O objetivo desse sopesamento é definir qual dos interesses – que abstratamente estão no mesmo nível – tem maior peso no caso concreto: (…)

Ressalta-se que não existe direito absoluto, por mais fundamental que possa parecer, pois sua valoração deve ser realizada no caso real analisado. Pedro Lenza (2008, p. 590) classifica essa característica dos direitos fundamentais como “limitabilidade” ou “relatividade”.

No mesmo sentir José Sérgio Cristóvam (2012, p. 12) afirma que “a existência de princípios absolutos, capazes de preceder sobre os demais em quaisquer condições de colisão, não se mostra consoante com o próprio conceito de princípios jurídicos”.

Destarte, para que se possa solucionar a colisão entre direitos constitucionais faz-se imperativo utilizar o princípio da proporcionalidade, a fim de se descobrir qual deles deve preponderar no caso concreto.

Ao estudar a colisão de princípios constitucionais George Lima (2012, p. 4-5) defende que as duas soluções encontradas pela doutrina de Hesse e Dworkin devem sempre estar acompanhadas pelo princípio da proporcionalidade:

Duas soluções foram desenvolvidas pela doutrina (estrangeira, diga-se de passagem) e vêm sendo comumente utilizada pelos Tribunais. A primeira é a da concordância prática (Hesse); a segunda, a da dimensão de peso ou importância (Dworkin). A par dessas duas soluções, aparece, em qualquer situação, o princípio da proporcionalidade como "meta-princípio", isto é, como "princípio dos princípios", visando, da melhor forma, preservar os princípios constitucionais em jogo. O próprio HESSE entende que a concordância prática é uma projeção do princípio da proporcionalidade.

A nosso ver, essas duas soluções (concordância prática e dimensão de peso e importância) podem e devem ser aplicadas sucessivamente, sempre tendo o princípio da proporcionalidade como "parâmetro": primeiro, aplica-se a concordância prática]; em seguida, não sendo possível a concordância, dimensiona-se o peso e importância dos princípios em jogo, sacrificando, o mínimo possível, o princípio de "menor peso".

O princípio da proporcionalidade não se encontra expresso no texto constitucional brasileiro, mas pode ser extraído do principio do devido processo legal, previsto no art. 5º, LIV.

O devido processo legal possui duas dimensões: o devido processo legal formal ou procedimental e o devido processo legal material ou substantivo. A primeira remonta à Carta do Rei João Sem Terra, de 1215, e diz respeito à abertura de processo formal, regular. A segunda diz respeito à necessidade da razoabilidade da decisão. Fazendo um breve retrospecto sobre a origem do princípio, cito:

Na verdade, a razoabilidade tem sua origem e desenvolvimento ligados à garantia do devido processo legal, antigo instituto do direito anglo-saxão que remonta à cláusula de law of the land inscrita na Magna carta de 1215. Esta garantia teve origem na Inglaterra, com um aspecto meramente formal (“procedural due process”, segundo o qual não é possível a condenação de alguém sem o devido processo legal) e se desenvolveu nos Estados Unidos com uma aspecto muito mais substantivo ou material (“substantive due process of law”) para permitir ao Judiciário investigar o próprio mérito dos atos do poder público, a fim de verificar se esses atos são razoáveis, ou seja, se estão conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia (CUNHA JÚNIOR, 2011, p. 227).

A doutrina alemã divide o princípio da proporcionalidade em três elementos ou subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito ou ponderação.

No direito constitucional alemão, a ponderação é uma parte daquilo que é exigido por um principio mais amplo. Esse princípio mais amplo é o princípio da proporcionalidade. O principio da proporcionalidade compõe-se de três princípios parciais: dos princípios da idoneidade, da necessidade e da proporcionalidade em sentido restrito (ALEXY, 2007, p. 110-111).

Na adequação deve-se perguntar se a medida adotada é hábil a atingir a finalidade pretendida. Na necessidade pergunta-se se a medida adotada é realmente necessária, isto é, se não existe um meio menos gravoso para alcançar o objetivo almejado. Na proporcionalidade em sentido estrito busca-se sopesar os princípios constitucionais envolvidos a fim de dar preponderância ao de maior valor no caso concreto.

Melhor explica a divisão o Ministro Gilmar Mendes (2012, p. 4):

O subprincípio da adequação (Geeignetheit) exige que as medidas interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos. O subprincípio da necessidade (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit) significa que nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos. Em outros termos, o meio não será necessário se o objetivo almejado puder ser alcançado com a adoção de medida que se revele a um só tempo adequada e menos onerosa. Ressalte-se que, na prática, adequação e necessidade não têm o mesmo peso ou relevância no juízo de ponderação. Assim, apenas o que é adequado pode ser necessário, mas o que é necessário não pode ser inadequado. Pieroth e Schlink ressaltam que a prova da necessidade tem maior relevância do que o teste da adequação. Positivo o teste da necessidade, não há de ser negativo o teste da adequação. Por outro lado, se o teste quanto à necessidade revelar-se negativo, o resultado positivo do teste de adequação não mais poderá afetar o resultado definitivo ou final.

Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade em sentido estrito).

Diante das explicações acima, é chegada a hora de averiguar qual direito deve prevalecer na colisão entre o direito à vida, atribuído ao feto, e o diretos à saúde, liberdade, autonomia da vontade, dignidade da pessoa humana e proibição da tortura, conferidos à gestante.

E, como visto, a análise de tal conflito deve ser feita com base no princípio da proporcionalidade, valorando-se, no caso concreto, a qual direito deve ser atribuído maior peso, a fim de que se obtenha um resultado satisfatório.

Como já ressaltado anteriormente, não existe um consenso mínimo sobre a existência ou não de vida nos fetos anencéfalos. Sem querer retornar à discussão e sem a pretensão de chegar a uma conclusão definitiva sobre o assunto, parte-se da premissa hipotética de que existe vida no feto.

Para os defensores da proibição do aborto no caso em apreço, a vida do feto deve ser preservada, pois o direito à vida deve ser protegido desde a concepção. O direito à vida seria, pois, um bem maior, um direito fundamental inviolável, de forma que a vida dos fetos deve ser protegida em detrimento de qualquer outro direito que se possa conferir à gestante, mesmo que seja breve e que a morte seja um fato certo.

Do outro lado, alega-se em defesa do direito à saúde da gestante que a gravidez de fetos anencéfalos possui muitos riscos, por exemplo, óbito intra-uterino, possibilidade de toxemia gravídica em razão do excesso de líquido amniótico, aumento dos riscos obstétricos no parto e no pós-parto, hipertensão e diabetes, parto prematuro, gravidez prolongada, descolamento placentário, esterectomia, etc. Além da saúde física, a saúde mental e psicológica das gestantes também seria abalada, pois a alegria da espera do nascimento de um filho se transforma na angústia da espera de uma criança morta.

Por sua vez, argumenta-se que forçar a gestante a carregar por nove meses um feto sem qualquer expectativa de sobrevida é violar a dignidade da sua condição de ser humano, submetendo-a a um tratamento equivalente a tortura.

Sustenta-se ainda em favor das gestantes que, obrigá-las a suportar os riscos a sua saúde física e as dores emocionais de uma gravidez infrutífera, em prol de deixar nascer um feto sem condições de vida extra-uterina, sobre o qual pesa a dúvida da efetiva existência de vida, viola os direitos à liberdade e autonomia da vontade. Liberdade de consciência e crença para escolher entre aguardar o fim da gravidez ou de por fim imediatamente à mesma.

Para sopesar os direitos contrapostos deve-se verificar se satisfeitos todos os elementos do principio da proporcionalidade, subsumindo o caso aos critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito ou ponderação.

a) Adequação: saber seas medidas interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos.

Para a análise da adequação, interessante fazer as seguintes indagações:

É adequado compelir a gestante a aguardar até o fim da gravidez, sujeitando-se a múltiplos riscos à sua saúde e física e mental, suportando todas as dores psicológicas tortuosas, para que seu filho possa ter breves momentos de vida biológica, ainda que inconsciente, e morrer pouco tempo depois? É adequado obrigá-la a dar à luz a um ser anencéfalo apenas porque algumas pessoas entendem que a vida tem início desde a concepção?

Ou é adequado permitir que a gestante opte por interromper a gravidez, se entender que não deve colocar sua saúde em risco e/ou não tem condições psicológicas de suportar a dor de carregar por nove meses um feto que  sobreviverá por apenas poucas horas/dias? É adequado que a gestante esteja livre para decidir se deseja dar à luz mesmo colocando sua saúde em risco?

Sem dúvidas, a resposta à primeira indagação só pode ser negativa. E à segunda positiva.

Não é adequado obrigar a gestante a colocar sua saúde física e, quiçá, sua própria vida, em risco, apenas para que o feto venha a nascer e morrer logo em seguida. Da mesma forma que não é adequado obrigar a gestante a conviver por nove meses com a tortuosa dor de saber que terá que enterrar seu filho logo depois que ele nascer. Não é adequado coagir a gestante a dar à luz a um ser anencéfalo apenas porque algumas pessoas entendem que a vida tem início desde a concepção e por isso deve ser protegida incondicionalmente, a qualquer custo.

b) Necessidade: saber se existe um meio menos gravoso para alcançar o objetivo almejado.

Respondido ao questionamento sobre o que é mais adequado, deve-se perguntar se não existe meio menos gravoso aos direitos do feto e que ao mesmo tempo possa resguardar os direitos da gestante.

Infelizmente, não existe tratamento ou cura para anencefalia, sendo fatal em 100% (cem por cento) dos casos. Assim, a morte do feto sempre ocorrerá, seja dentro do útero, seja poucos dias após o parto.

Em contrapartida, não existe outro meio apto a garantir os direitos da gestante que não seja o de permitir-lhe optar se deseja ou não interromper a gravidez.

c) Proporcionalidade em sentido ou ponderação: busca valorar os princípios constitucionais envolvidos a fim de dar preponderância ao de maior valor no caso concreto.

De acordo com Robert Alexy (2007, p. 110-111), utiliza-se a ponderação se os sacrifícios não podem ser evitados, devendo-se observar três passos: 1) comprovar o grau do não-cumprimento ou prejuízo de um princípio; 2) comprovar a importância do cumprimento do princípio em sentido contrário; 3) comprovar se a importância do cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o prejuízo ou não cumprimento do outro:

Se custos ou sacrifícios não podem ser evitados, torna-se necessária uma ponderação. A ponderação é objeto do terceiro principio parcial do princípio da proporcionalidade em sentido restrito. Esse princípio diz o que significa a otimização relativamente às possibilidades jurídicas. Ele é idêntico com uma regra que se pode denominar “lei da ponderação”.

A lei da ponderação deixa decompor-se em três passos. Em um primeiro passo deve ser comprovado o grau do não-cumprimento ou prejuízo de um princípio. A isso deve seguir, em um segundo passo, a comprovação da importância do cumprimento do princípio em sentido contrário. Em um terceiro passo deve, finalmente, ser comprovado, se a importância do cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o prejuízo ou não cumprimento do outro.

Não há duvidas que o direito à vida é um dos direitos mais importantes do ordenamento jurídico. Isso não significa dizer que deve ser absoluto, que não possa sucumbir frente a determinadas situações específicas. Os entendimentos extremistas geralmente levam a algumas distorções e injustiças, razão pela qual devem ser sempre evitados.

Como já informado algumas vezes ao longo deste trabalho, não existe consenso no campo filosófico, religioso ou cientifico a respeito de quando a vida começa. Por outro lado, também não há consenso sobre a existência de vida nos fetos anencéfalos, mesmo após o nascimento dos mesmos.

Inobstante, ainda que se entenda pela existência de vida após o nascimento dos anencéfalos, tal vida será meramente biológica ou vegetativa, pois como visto antes, mesmo que se visualize atividade cerebral nos fetos anencéfalos, esta é absurdamente limitada, apta a produzir apenas movimentos involuntários tais como respiração e funções vasomotoras.

Dessa forma, não haverá vida racional, caracterizadora da própria condição humana, pois o feto anencéfalo, por não possuir Sistema Nervoso Central, não terá consciência, será incapaz de relacionar-se, de comunicar-se, de sentir dor ou de ter emotividade.

Assim, além da certeza do óbito do feto anencéfalo e do pouco tempo de sobrevida extra-uterina, se houver, pode-se dizer que nesse pouco tempo haverá tão-somente uma vida vegetativa, inconsciente, incapaz de perceber a própria existência. Ousa-se dizer que apesar da forma física humana, qualitativamente não haverá vida humana.

Nestes termos, ao se impedir o abortamento, nada mais se estará a fazer do que postegar um fato que ocorrerá invariável e naturalmente. Em outras palavras, a pretendida proteção à vida do feto só durará enquanto a natureza quiser, de forma que não se pode dizer que o prejuízo ao princípio será incalculável ou de grande monta.

O anencéfalo vai e sempre vai, mas a vida que fica, a vida da mãe, não precisa sofrer tantos danos e muitas vezes irreparáveis. Como já dito e repisado, a gravidez em circunstâncias tais possui muitos complicadores à saúde da gestante, podendo causar inclusive riscos de vida à da mesma. Há um grande percentual de óbitos intra-uterinos, o aumento de líquido amniótico pode causar toxemia, aumentam-se os riscos obstétricos no parto e pós-parto, possibilidade de desenvolvimento de hipertensão, diabetes, parto prematuro, gravidez prolongada, descolamento placentário e até esterectomia. A gestante pode perder seu útero e ver acabar seu sonho de ter mais filhos.

Por sua vez, o abalo à saúde mental e psíquica da gestante é incomensurável, podendo levar a um quadro de depressão, stress, angústia, culpa e até tentativa de suicídio, como relatou o Dr. Professor Doutor Jorge Andalaft Neto, quando ouvido na Audiência no STF, dia 28/08/2008 (BRASIL, 2008c, p.19):

Agora, o impacto sobre a saúde mental das mulheres é impressionante. O risco de depressão é oito vezes maior. O stress psíquico, a angústia, a culpa, pensamentos de suicídios - temos casos em que a mulheres queriam se suicidar por se sentirem culpadas, fora que a situação conjugal dessas mulheres fica muito comprometida -, fixação na imagem fetal, sofrimento e tristeza profunda.

A Dra. Lia Zanotta Machado, socióloga, quando ouvida na audiência no STF, dia 04/09/2004 (BRASIL, 2008d, p. 47-50), trouxe relatos de mulheres que passaram por uma gravidez de anencéfalo, os quais revelam quão tortuosa pode ser tal experiência:

Baseio-me nos depoimentos de 58 mulheres de nove Estados brasileiros que, graças à liminar do Supremo Tribunal Federal, vigente de julho a outubro de 2004, decidiram interromper a gravidez. Todas pobres, casadas ou solteiras, com e sem filhos, de diferentes idades e identidades raciais.

Trago as vozes de quatro destas mulheres. Suas experiências evidenciam três momentos: o do encontro com o trágico, com a tortura e com a supressão da tortura. Nomeiam a tragédia de diferentes formas.

Érica relata o momento do diagnóstico com ultra-som: “ele, primeiro, olhou para mim e disse que a criança tinha um problema. Perguntei se tinha solução. Não tinha. Depois, um crente, nas clínicas, me falou que Deus ia pôr um cérebro no filho na hora do nascimento.” Tomada pelo choro, responde a si mesma com angústia, mas com certeza: “nunca que ia ocorrer que, depois de o nenê estar formado, fosse aparecer o cérebro do nada”.

Camila, logo depois do diagnóstico de anencefalia fetal, declara: “fiquei dez dias em casa sem fazer nada. Não me penteava; não me levantava. Era como se eu não quisesse mais viver”.

Dulcinéia, sete filhos, conta-nos sobre a recente gravidez: “fiz ultra-som, me disseram que era anencefalia. Contei para meu pai, minha mãe, meus irmãos. O companheiro nem acreditava. Para mim, o filho é tudo.”

Michele detalha angustiada: o radiologista olhou para a tela, olhou para mim, meu coração deu um estralo; me senti a pior mulher do mundo. Foram os piores momentos do mundo. É que ele foi esperado, desejado, amado antes de ser gerado.”

Todas elas, de diferentes formas, vivenciam a tragédia de esperar um filho ou filha e saber que a anencefalia implica na certeza da morte cerebral já acontecida e na certeza de uma curta sobrevida vegetativa, quando e se ocorrer.

Nomeiam a tortura de diferentes formas. Para Érica, seria continuar a gravidez. Seria “muito mais sofrimentoA gravidez de Michele foi anunciada dentro de um programa de reprodução assistida, depois de haver tentado engravidar durante um ano, vivida com extrema expectativa e felicidade. Depois do diagnóstico de anencefalia fetal, foi descrita como um “trauma terrível”.

Todas elas experimentam a tragédia inevitável da morte cerebral fetal. Sofrem e vivem a tragédia, mas não a confundem com a situação torturante de levarem adiante a gravidez. Querem decidir. Nomeiam a supressão da tortura de diferentes formas: “tirar o peso do mundo de suas costas”, “aquietar aquilo que estava se passando”.

Para Érica, se ela não tivesse feito a antecipação, “nada ia mudar no feto, ele só ia crescer, mas do mesmo jeito. Se fosse para ser saudável, seria desde o começo”.

Camila sente alívio e paz com a antecipação do parto: “sentiu as dores no dia 18 de outubro às seis da tarde; às seis e meia estava andando no hospital. Foi como se tirassem um peso muito grande das minhas costas; como se tivessem tirado com a mão o peso; parecia que eu estava carregando o mundo dentro de mim”. Michele considera: “meu sonho lá - a saudade do filho que não teve - era o que tenho hoje; a felicidade da filha, nascida de segunda gravidez. Sintetiza o que entende por supressão da situação torturante: “se fosse para fazer, eu faria novamente. Não é arrependimento. Não é culpa. O que fiz, foi aquietar aquilo que estava se passando”.

Todas elas diferenciam o que é evitável do que é inevitável. O que é tragédia do que é tortura. De um lado, o inevitável da tragédia e, de outro, o sofrimento desnecessário e evitável da continuidade da gravidez com diagnóstico de morte fetal cerebral. Quiseram a supressão da situação torturante.

Como se pode perceber dos depoimentos acima, obrigar a gestante a carregar por nove meses um feto sem qualquer expectativa de sobrevida traduz-se na violação de sua dignidade, submetendo-a à tortura, tanto física, quanto psicológica. Assim, não há melhor saída do que conceder à gestante o direito de optar pela interrupção ou pela continuidade da gravidez.

Não se pode negar a importância dos direitos ora conferidos às gestantes (saúde, dignidade, liberdade), restando demonstrado que o cumprimento dos mesmos justifica o prejuízo ou não cumprimento do direito à sobrevida do feto.

7 considerações finais

A sociedade tem se deparado com o problema de diagnósticos precoces de gestações de fetos anencéfalos, que é uma má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de forma que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex.

Apesar de a anencefalia ser 100% (cem por cento) fatal, muitas mulheres vêm sendo obrigadas a manter por nove meses uma gravidez nestes termos, pois o art. 128 do Código Penal não prevê de forma expressa a possibilidade de aborto nesses casos, de forma que se faz necessário ir à justiça para pedir autorização, o que nem sempre tem resultados exitosos.

Para tentar uniformizar as decisões, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) ajuizou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, ainda pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal, através da qual pretende seja dada interpretação conforme a Constituição aos art. 124, 126, 128, incs. I e II do Código Penal, para afastar qualquer interpretação dos dispositivos como impeditivos da interrupção da gravidez.

No presente trabalho tentou-se demonstrar a existência de uma colisão de princípios constitucionais, a qual deve ser resolvida à luz do princípio da proporcionalidade.

Subsumindo o caso aos critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito ou ponderação, elementos do principio da proporcionalidade, verificou-se que possuem mais valor no caso concreto os direitos à saúde, à liberdade e à dignidade da gestante, em detrimento do direito à curta e inexpressiva vida (sobrevida) do feto.

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BARROSO, Marcela Maria Gomes Giorgi. Aborto no Poder Judiciário: o caso da ADPF 54. Dissertação de mestrado. 2010. 186 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade  de direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em <www.teses.usp.br/teses/.../dissertacao_Marcela_Giorgi_Barroso.pdf>. Acesso em: 17 fev. 2012.

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_____.Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Voto do Ministro Carlos Aires Brito na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 3510 – Julgado em 29/05/2008a, DJe-096 DIVULG 27-05-2010 PUBLIC 28-05-2010 RTJ VOL 00214  PP-00043.

_____. Supremo Tribunal Federal. Audiência na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54-8 - Distrito Federal – realização nos dias 26/08/2008b, Relator: Min. Marco Aurélio. Argüente(s): Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS - advogado(a/s) : Luís Roberto Barroso e outro(a/s).

_____. Supremo Tribunal Federal. Audiência na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54-8 - Distrito Federal – realização nos dias 28/08/2008c, Relator: Min. Marco Aurélio. Argüente(s): Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS - advogado(a/s) : Luís Roberto Barroso e outro(a/s).

_____. Supremo Tribunal Federal. Audiência na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54-8 - Distrito Federal – realização nos dias 04/09/2008d, Relator: Min. Marco Aurélio. Argüente(s): Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS - advogado(a/s) : Luís Roberto Barroso e outro(a/s).

_____. Supremo Tribunal Federal. Audiência na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54-8 - Distrito Federal – realização nos dias 16/09/2008e, Relator: Min. Marco Aurélio. Argüente(s): Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS - advogado(a/s) : Luís Roberto Barroso e outro(a/s).

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[1] O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições que lhe confere a Lei n° 3.268, de 30  de  setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e

CONSIDERANDO que os anencéfalos são natimortos cerebrais (por não possuírem os hemisférios cerebrais) que têm parada cardiorrespiratória ainda durante as primeiras horas pós-parto, quando muitos órgãos e tecidos podem ter sofrido franca hipoxemia, tornando-os inviáveis para transplantes;

CONSIDERANDO que para os anencéfalos, por sua inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica;

CONSIDERANDO que os anencéfalos podem dispor de órgãos e tecidos viáveis para transplantes, principalmente em crianças; 

CONSIDERANDO que as crianças devem preferencialmente receber órgãos com dimensões compatíveis;

CONSIDERANDO que a Resolução CFM nº 1.480/97, em seu artigo 3º, cita que a morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida, sendo o anencéfalo o resultado de um processo irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade de sobrevida, por não possuir a parte vital do cérebro;

CONSIDERANDO que os pais demonstram o mais elevado sentimento de solidariedade quando, ao invés de solicitar uma antecipação terapêutica do parto, optam por gestar um ente que sabem que jamais viverá, doando seus órgãos e tecidos possíveis de serem transplantados;

CONSIDERANDO o Parecer CFM nº 24/03, aprovado na sessão plenária de 9 de maio de 2003;

CONSIDERANDO o Fórum Nacional sobre Anencefalia e Doação de Órgãos, realizado em 16 de junho de 2004 na sede do CFM;

CONSIDERANDO as várias contribuições recebidas de instituições éticas, científicas e legais;

CONSIDERANDO a decisão do Plenário do Conselho Federal de Medicina, em 8 de setembro de 2004,

RESOLVE:

Art. 1º Uma vez autorizado formalmente pelos pais, o médico poderá realizar o transplante de órgãos e/ou tecidos do anencéfalo, após o seu nascimento.

Art. 2º A vontade dos pais deve ser manifestada formalmente, no mínimo 15 dias antes da data provável do nascimento.

Art. 3º Revogam-se as disposições em contrário.

 Art. 4º Esta resolução entrará em vigor na data de sua publicação.

 

[2] Revoga a Resolução CFM nº 1.752/04, que trata da autorização ética do uso de órgãos e/ou tecidos de anencéfalos para transplante, mediante autorização prévia dos pais.

O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, alterada pela Lei nº 11.000, de 15 de dezembro de 2004, regulamentada pelos Decretos nos 44.045, de 19 de julho de 1958, e 6.821, de 14 de abril de 2009, e

CONSIDERANDO que para os anencéfalos, por sua inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica;

CONSIDERANDO os precários resultados obtidos com os órgãos transplantados;

CONSIDERANDO o disposto na Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, alterada pela Lei nº 10.211, de 23 de março de 2001, pela Lei nº 11.633, de 27  de dezembro de 2007, e pela Lei nº 11.521, de 18 de setembro de 2007, regulamentada pelo Decreto nº 2.268, de 30 de junho de 1997;

CONSIDERANDO o disposto nas Resoluções CFM nos 1.826, de 6 de dezembro de 2007, e 1931, de 24 de setembro de 2009;

CONSIDERANDO o decidido na sessão plenária do Conselho Federal de Medicina de 10 de junho de 2010,

RESOLVE:

Art. 1º Revogar a Resolução CFM nº 1.752/04.

Art. 2º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília-DF, 10 de junho de 2010