Interpretação dos atos normativos das agências reguladoras


PorFernanda dos Passos- Postado em 07 novembro 2011

Autores: 
TIBÚRCIO, Dalton Robert

Resumo: O presente trabalho propõe reflexões sobre a interpretação dos atos normativos das Agências Reguladoras, a partir da fixação de algumas premissas hermenêuticas. Aborda-se, inicialmente, o caráter criador da interpretação e a ausência de neutralidade e objetividade do intérprete. Analisa-se, ainda, o conceito de discricionariedade técnica, fundamento e limite da função normativa das Agências, bem como a definição de política regulatória.  A partir de tais pressupostos, busca-se identificar qual a postura do intérprete diante dos atos normativos das Agências Reguladoras. Propõe-se que o intérprete assuma uma postura cautelosa, baseada no elemento literal, a fim de evitar a usurpação da competência normativa ou a indevida invasão no campo da discricionariedade atribuída pela lei às Agências para a concretização dos standards regulatórios.

Palavras-chave: Interpretação. Normas. Agências Reguladoras. Política Regulatória. Autocontenção.

Abstract: This paper come up with reflections on the normative acts from Regulatory Agencies, based on some hermeneutical assumptions. At first, it is important to emphasize the creator’s character of interpretation, plus neutrality and objectivity lack from interpreter. It also analyses the conception of technical discretion, basis and limit of normative function from Agencies, as well as definition of regulatory politic. Hereafter such assumptions, the main objective is to identify what is the interpreter’s stance upon normative acts from Regulatory Agencies. The interpreter should have a cautiously posture, based on literal element, in order to prevent usurpation of legislative power or undue invasion on discretion area, granted by law to the Agencies to achieve the regulatory standards.

Keywords: Interpretation. Standards. Regulatory Agencies. Regulatory Policy. Self Containment.

Sumário: 1. Introdução. 2. Novos parâmetros hermenêuticos para um novo direito. 3. A função normativa das Agências Reguladoras com fundamento e limite na discricionariedade técnica. 4. A política regulatória. 5. Especificidades da interpretação dos atos normativos das Agências Reguladoras. 5.1. A relevância do elemento literal. 5.2. A ótica dos agentes administrativos e órgãos internos da própria Agência. 5.3. A ótica da Consultoria Jurídica. 5.4. A ótica do Judiciário.  6. Conclusões. 7. Referências.

1. Introdução

A função normativa – em especial a adoção da tese da deslegalização[1] (retirada pelo próprio legislador de certas matérias do domínio da lei para o domínio do regulamento) - consiste no aspecto mais polêmico no estudo das Agências Reguladoras. BINENBOJM[2] chega a sustentar que “a deslegalização constituiria verdadeira fraude ao processo legislativo contemplado na Constituição”, concluindo que:

“[...] o poder normativo das agências reguladoras só pode apresentar natureza regulamentar infralegal, sendo a técnica da deslegalização, à luz da sistemática constitucional em vigor no Brasil – considerada tanto sob a perspectiva formal, quanto sob a material -, imprestável para explicar e inaceitável para justificar o poder normativo de que investidas as agências reguladoras”. (grifos do autor)

MOREIRA NETO[3], por sua vez, defende a compatibilidade do instituto com o texto constitucional, uma vez que “a deslegalização pelo Congresso Nacional, através de lei, está autorizada no caput do art. 48 [da Constituição Federal], que lhe dá competência para ‘dispor sobre todas as matérias de competência da União’, com as exceções de exclusividade expressamente previstas.” Detalhando a compatibilidade da função normativa das Agências com o princípio da legalidade, prossegue MOREIRA NETO[4]:

“Se, por um lado, a todos é livre escolher ofício, profissão, trabalho, ocupação etc., por outro lado, o seu desempenho em setores econômicos e sociais sensíveis, que apresentem riscos que possam comprometer o equilíbrio e a harmonia da sociedade, a Constituição pode fazer depender de condicionantes, legislados pelo Congresso Nacional, pelas assembléias legislativas estaduais e pelas câmaras municipais, conforme a competência atribuída a cada um deles.

É evidente que a satisfação dessas reservas só pode caber à lei, emanada desses corpos políticos, pois apenas eles têm legitimidade para disporem tanto sobre interesses públicos específicos quanto sobre direitos e obrigações dos particulares.

Há, todavia, duas distintas formas de satisfazer a reserva legal, conforme o legislador opte ou pela imposição direta de condutas, predefinidas por ele próprio, ou pela disposição indireta apenas de finalidades, que deverão ser detalhadas por uma fonte normativa derivada, por via da deslegalização, o que corresponde, em conseqüência, a uma disposição indireta, por meio da regulação que vier a ser produzida pela fonte secundária legitimada.

Ora, as pessoas, quando optam por desenvolverem atividades nos referidos setores sensíveis, como tal caracterizados por lei em razão da existência de uma alta concentração de interesses gerais, submetem-se livremente à ordem jurídica que as rege, entendida em sua integralidade, tanto compreendendo aqueles comandos dispostos imediatamente pelos legisladores, como os comandos elaborados pelos órgãos legitimados para dispor mediatamente sobre os setores que foram deslegalizados, de modo que, em ambos os casos, resta igualmente respeitada a reserva constitucional”. (grifo do autor)

A par do dissenso doutrinário quanto à sua natureza, é inegável a existência no ordenamento jurídico brasileiro desta nova fonte do direito: os atos normativos das Agências Reguladoras. E como toda norma, elas também exigem uma atividade hermenêutica por parte dos seus aplicadores – seja o agente administrativo, o advogado parecerista ou o juiz. Convém refletir sobre alguns aspectos da atividade de interpretação, bem como sobre determinadas características próprias do objeto a ser interpretado, a fim de se extrair conclusões norteadoras à compreensão e aplicação das normas das Agências. 

2. Novos parâmetros hermenêuticos para um novo direito.

A hermenêutica tradicional define o ato de interpretar como a extração do significado contido na Lei. Confia-se no ideal de que a interpretação se dá sobre um conceito preexistente: o objeto da interpretação é declarado pelo intérprete. Assim, para MAXIMILIANO[5], interpretar consiste em “explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém”.

O conceito de interpretação como a revelação de uma vontade pretérita (da lei) contém uma confessada opção política – de prevalência do Legislativo sobre o Judiciário na criação do direito – e uma sutil proposta filosófica: a pretensa neutralidade do intérprete.

Ocorre que não é simples a distinção entre a atividade do aplicador da lei e a do legislador, uma vez que o ato de interpretar é uma etapa da própria criação do direito. KELSEN[6] sustenta, inclusive, que “a interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre autêntica. Ela cria o Direito.” Interpretar é concluir a tarefa do legislador, fixando os exatos contornos fáticos da norma, como se verifica em COELHO[7]:

“[...]Rigorosamente, e com maior profundidade, pode-se dizer que as situações da vida são constitutivas do significado das regras de direito, porque o sentido e o alcance dos enunciados normativos só se revelam em plenitude no momento da sua aplicação aos casos concretos.

Por isso é que juristas como Pérez Luño chegam a dizer que a norma jurídica não é o pressuposto, mas o resultado da interpretação, enquanto outros asseveram – como o faz, com freqüência, Miguel Reale – que o Direito é a norma e também a situação normada e que a norma é a sua interpretação, uma afirmação que, de resto, é comprovada pelo fato, não contestado sequer pelos críticos da criatividade hermenêutica, de que o direito, em sua concreta existência, é aquele “declarado” pelos juízes e tribunais, e que sem o problema suscitado, a partir do intérprete as normas jurídicas permanecem genéricas e estáticas, à espera de que ocorram as suas hipóteses de incidência, situações de fato que, também elas, estão sujeitas a juízos de constatação hermenêutica pelas instâncias a tanto legitimadas.” (grifos do autor)

No entanto, o intérprete não é absolutamente livre para fixar o conteúdo da norma interpretada (com a ressalva do entendimento dos adeptos do voluntarismo amorfo da Escola do Direito Livre, que defendem a livre criação normativa por parte do juiz[8]). Os limites do intérprete serão ditados pelo próprio texto interpretado. Nesse aspecto, entende-se que a interpretação literal, início da atividade hermenêutica, atua igualmente como limite da interpretação, conforme ressaltado por TORRES[9]:

“O método literal, gramatical ou lógico é apenas o início do processo interpretativo, que deve partir do texto. Tem por objetivo compatibilizar a letra com o espírito da lei. Depende, por isso mesmo, das próprias concepções da lingüística acerca da adequação entre pensamento e linguagem.

A interpretação literal, em outro sentido, significa um limite para a atividade do intérprete. Tendo por início o texto da norma, encontra o seu limite no sentido possível daquela expressão lingüística. É a fórmula brilhante de K. Larenz, antes referida, para quem a interpretação literal é a compreensão do sentido possível das palavras (mögliche Wortsinn), servindo este sentido de limite da própria interpretação, eis que além dele é que se iniciam a integração e a complementação do direito.” (grifo do autor)

Por outro lado, se entende modernamente que a interpretação não é um processo neutro. A suposta neutralidade científica da lei (ou de qualquer ato normativo), a garantir as respostas a todas as questões fáticas a ela subsumidas - por meio de um mero juízo de dedução, no qual a lei é a premissa maior, a relação de fato é a premissa menor e a conclusão é a regra concreta que vai reger o caso -, desconsidera as motivações do intérprete e o contexto social da interpretação.

A discussão quanto à natureza da interpretação (se um ato de conhecimento ou um ato de vontade) foi desenvolvida por KELSEN – filósofo do direito apontado por MOREIRA NETO[10] como a culminação do positivismo jurídico. Segundo KELSEN[11]:

“Se queremos caracterizar não apenas a interpretação da lei pelos tribunais ou pelas autoridades administrativas, mas, de modo inteiramente geral, a interpretação jurídica realizada pelos órgãos aplicadores do Direito, devemos dizer: na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do Direito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva. Com este ato, ou é produzida uma norma de escalão inferior, ou é executado um ato de coerção estatuído na norma jurídica aplicanda”. (grifo nosso)

Sendo a interpretação um ato de vontade[12], no qual o aplicar do Direito decide por uma das diversas possibilidades interpretativas (nos limites da moldura normativa na qual deve se manter o ato jurídico a pôr, ressalva KELSEN), não se pode esquecer que sequer a vontade humana é absolutamente livre. BARROSO[13], analisando os profundos abalos provocados nas convicções e na autoestima do homem pelas teorias desenvolvidas por MARX (o materialismo histórico) e FREUD (a descoberta do inconsciente), relativiza o papel do racionalismo na compreensão do mundo, admitindo que “a razão divida o palco da existência humana pelo menos com esses dois outros fatores: a ideologia e o inconsciente”. Dessa forma, prossegue BARROSO[14], constata-se uma impossibilidade da plena neutralidade e objetividade do intérprete:

“As reflexões acima incidem diretamente sobre dois conceitos que integram o imaginário do conhecimento científico: a neutralidade e a objetividade. Ao menos no domínio das ciências humanas e, especialmente no campo do Direito, a realização plena de qualquer um deles é impossível. A neutralidade, entendida como um distanciamento absoluto da questão a ser apreciada, pressupõe um operador jurídico isento não somente das complexidades da subjetividade pessoal, mas também das influências sociais. Isto é: sem história, sem memória, sem desejos. Uma ficção. O que é possível e desejável é produzir um intérprete consciente de suas circunstâncias: que tenha a percepção da sua postura ideológica (auto-crítica) e, na medida do possível, de suas neuroses e frustrações (auto-conhecimento). E, assim, sua atuação não consistirá na manutenção inconsciente da distribuição de poder e riquezas na sociedade, nem na projeção narcísica de seus desejos ocultos, complexos e culpas.

A objetividade se realizaria na existência de princípios, regras e conceitos de validade geral, independentemente do ponto de observação e da vontade do observador. O certo, contudo, é que o conhecimento, qualquer conhecimento, não é uma foto, um flagrante incontestável da realidade. Todos os objetos estão sujeitos à interpretação. Isto é especialmente válido para o Direito, cuja matéria prima é feita de normas, palavras, significantes e significados. A moderna dogmática jurídica já superou a idéia de que as leis possam ter, sempre e sempre, sentido unívoco, produzindo uma única solução adequada para cada caso. A objetividade possível no Direito reside no conjunto de possibilidades interpretativas que o relato da norma oferece.” (grifo do autor)

A ausência de neutralidade do intérprete e a variação do contexto social em que a interpretação é efetuada explicam porque uma mesma norma e um mesmo pressuposto fático podem resultar em distintas soluções hermenêuticas. No âmbito do Direito Constitucional esse fenômeno é muito evidente diante dos processos informais de reforma do texto constitucional acarretados pela interpretação evolutiva.

Interpretações colidentes surgem não apenas diante da evolução do contexto histórico e social. Não são raros os exemplos em que uma mesma questão jurídica encontra, no mesmo momento histórico, interpretações divergentes - e por vezes conflitantes - até mesmo pelas altas Cortes do Poder Judiciário. Veja-se, por exemplo, o caso da edição da súmula vinculante nº 5, do Supremo Tribunal Federal (A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição.). Essa súmula vinculante foi editada após o julgamento pelo STF do RE 434.059/DF, que reformou Acórdão[15] proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no MS 7078/DF. Note-se que esse MS 7078/DF foi utilizado como precedente para a edição do enunciado nº 343 da súmula do STJ (É obrigatória a presença de advogado em todas as fases de processo administrativo disciplinar.). Assim, no julgamento de um mesmo caso concreto (mandado de segurança com pedido de anulação da demissão de uma servidora do INSS, sob a alegação de cerceamento de defesa no processo administrativo, por conta da ausência de apresentação de defesa técnica por advogado), o STJ e o STF firmaram precedente para a edição de súmulas inconciliáveis.

Os conflitos de interpretações são inerentes às ciências do espírito, entre as quais o direito se insere. No entanto, para garantir a segurança jurídica do aparato social, o ordenamento jurídico necessita de graus de certeza. Refutando essa assertiva, diriam os adeptos mais radicais da concepção realista do direito que “a certeza, um dos pilares dos ordenamentos jurídicos continentais, é um mito que deriva de uma espécie de aquiescência infantil diante do princípio da autoridade; um mito a ser desfeito para erigir sobre as suas ruínas o direito como criação contínua e imprevisível[16].

O mito da certeza (ou o pragmatismo da vida), no entanto, nos exige decisões. O impasse decorrente de interpretações divergentes não pode se perpetuar indefinidamente. Isso porque, como ressalta COELHO[17], “todo ordenamento [...] é duplamente finito, porque não regride sem parar, nem progride indefinidamente. Num extremo, a norma fundamental, no outro a coisa julgada, a fecharem o sistema, por necessidade lógica e mesmo axiológica.”

Diante das dificuldades próprias da atividade hermenêutica, a segurança jurídica necessária à ordenação social é obtida por meio da atribuição de competência a um órgão (em regra, tarefa confiada à Corte Suprema do Poder Judiciário) para fixar a interpretação final da norma. Essa última palavra, portanto, é antes de qualquer coisa um ato de autoridade. No entanto, em um Estado Democrático de Direito, não basta que a decisão seja tomada pelo órgão competente. Será preciso que essa decisão final tenha por fundamento argumentos aceitáveis pelos membros da comunidade. Por isso se diz que o Juiz, ao decidir um caso concreto – interpretando, aplicando e, por consequência, criando o direito – deve também convencer. Deve-se ter em mente - conforme ressalta AARNIO[18] -, que “no âmbito do Direito, o intérprete não pode pretender um resultado que só a ele satisfaça, até porque a interpretação jurídica é essencialmente um fenômeno social e, assim, deve alcançar um nível de aceitabilidade geral”.

3. A função normativa das Agências Reguladoras com fundamento e limite na discricionariedade técnica.

A atribuição de uma função normativa às Agências Reguladoras, pelo fenômeno da deslegalização, tem por fundamento a necessidade de predomínio, em determinadas áreas, de escolhas técnicas sobre as escolhas políticas. MOREIRA NETO[19] expõe acerca do tema:

“O êxito alcançado pelas entidades reguladoras em todo mundo e que justifica sua adoção no ordenamento jurídico brasileiro, não se deve apenas à opção pela descentralização, mas, e principalmente, pela outorga de competência normativa sobre o setor que administram.

Com efeito, essa competência normativa atribuída às agências reguladoras é a chave de uma desejada atuação célere e flexível para a solução, em abstrato e em concreto, de questões em que predomine a escolha técnica, distanciada e isolada das disputas partidarizadas e dos complexos debates congressuais em que preponderam as escolhas abstratas político-administrativas, que conformam a arena de ação dos parlamentos, e que depois se prolongam nas escolhas administrativas discricionárias, concretas e abstratas, que prevalecem na ação dos órgãos burocráticos da administração indireta.

Como, em princípio, não se fazia a necessária e nítida diferença entre as matérias que exigem escolhas político-administrativas e as matérias em que devam prevalecer as escolhas técnicas, as competências legislativas dos parlamentos, que tradicionalmente sempre lhes foi privativa, na linha do postulado da separação dos Poderes, se exerceu, de início, integral e indiferentemente sobre ambas. Somente com a distinção, até mesmo para evitar que decisões técnicas ficassem cristalizadas em lei e se tornassem rapidamente obsoletas, é que se desenvolveu a solução das delegações legislativas”. (grifo do autor)

A discricionariedade técnica consiste não só no fundamento como também no limite substancial para o controle da função normativa das Agências Reguladoras. Isso porque “o conteúdo válido das normas baixadas pelas agências reguladoras está integralmente definido na margem de escolha técnico-científica que a legislação delegante abriu à exclusiva discrição dos respectivos agentes técnicos”[20].

É verdade que o termo discricionariedade técnica revela um paradoxo, uma vez que não há verdadeiro juízo de oportunidade e conveniência se a escolha é ditada pela aplicação da técnica científica. GIANNINI[21] vislumbra que as regras técnicas são “vinculantes não só da melhor como, e por tantas vezes, da única escolha possível, no âmbito da discricionariedade administrativa”. Assim, conforme ressalta MONCADA[22], a discricionariedade técnica no Direito Público da Economia resulta do “alto grau de tecnicização e especialização das suas normas, sempre variáveis segundo a conjuntura sócio-econômica diante da qual são prospectivadas”. Inegável, no entanto, que a própria técnica legislativa para a deslegalização com base em standards, dentro dos quais o órgão delegado desempenhará larga margem de escolha, evidencia o fato de que a função normativa das Agências representa o exercício de uma discricionariedade, muito embora de conteúdo técnico-científico. Sobre o tema, dispõe ARAGÃO[23]:

“As leis instituidoras das agências reguladoras integram, destarte, a categoria de leis-quadros (lois-cadre) ou standartizadas, próprias das matérias de particular complexidade técnica e dos setores suscetíveis a constantes mudanças econômicas e tecnológicas.

Podemos ver, com efeito, que, apesar da maior ou menor magnitude de poder normativo legalmente outorgado nas suas esferas de atuação, todas as agências reguladoras – umas mais e outras menos – possuem competências normativas calcadas em standards, ou seja, em palavras dotadas de baixa densidade normativa, às vezes meramente habilitadoras, devendo exercer estas competências na busca da realização das finalidade públicas – também genéricas – fixadas nas suas respectivas leis.

As leis com estas características não dão maiores elementos pelos quais o administrador deva pautar a sua atuação concreta ou regulamentar, referindo-se genericamente a valores morais, políticos e econômicos existentes no seio da sociedade (saúde pública, utilidade pública, suprimento do mercado interno, boas práticas da indústria, competição no mercado, preços abusivos, continuidade dos serviços públicos, regionalização, etc.). Assim, confere à Administração Pública um grande poder de integração do conteúdo da vontade do legislador, dentro dos quadros por ele estabelecidos. O objetivo das leis assim formuladas é “introduzir uma vagueza que permita o trato de fenômenos sociais muito fugazes para se prestarem ao aprisionamento em uma regra precisa”.

[...]

Observa SILVANO LABRIOLA que, não consistindo a regulação numa disciplina destinada a conformar a atividade privada, mas a ditar as regras e condições gerais do seu desenvolvimento, a relação entre a lei e as normas das autoridades independentes é tão atípica, que faz com que se questione se estas estão realmente subordinadas àquela. “O Legislador, de fato, se limita a fixar poucos princípios, sobretudo a indicar os valores a serem perseguidos pela autoridade (...). A autoridade independente possui uma discricionariedade consideravelmente ampla conferida pela lei para preencher os espaços por ela deixados e para desenvolver os princípios nela estabelecidos. A normatização da autoridade teria nesta hipótese, de fato, força primária.” (grifo nosso)

Importante destacar, ainda, que o exercício da função normativa das Agências deve atender a requisitos legitimadores, assim como se dá, ainda que em grau distinto, com a função legislativa do Parlamento. Em outras palavras: a função normativa da Agência também deve seguir um devido processo legal (formal e material) para o seu regular exercício, no qual se destaca a existência de competência para a edição da norma. Conforme ressaltado por CUÉLLAR[24], “a expedição de regulamento deve sempre ser fundamentada, apresentando motivação pública de fato e de direito, contemporânea à sua edição. Ainda que geral e abstrato, o regulamento é ato administrativo – e como tal deve ser emanado.”

4. A política regulatória

A função normativa exercida pela Agência não deve ser compreendida como uma atividade automaticamente ditada pela técnica-científica. Ainda que orientado por razões técnicas, é inegável que o agente regulador, ao editar uma norma, pratica verdadeiro ato de vontade. BINENBOJM[25] destaca que “o dever de fundamentação técnica das decisões não inibe que conteúdos volitivos possam sempre existir na atividade regulatória”. A discricionariedade a ser exercida, no mais das vezes, resultará na ponderação de valores a serem articulados, conforme destaca ARAGÃO[26]:

“Vimos que a lei comete às agências reguladoras a cura de uma série de interesse, públicos e privados, assim como a persecução de uma série de finalidades [...]. Naturalmente que na cura destes interesses e na busca da realização destas finalidades, as agências reguladoras – e a Administração Pública em geral – revestem-se de um largo poder discricionário.

Além da baixa densidade semântica com que a lei coloca estes interesses e finalidades, em muitas situações concretas eles entram em contradição.

Isso faz com que [...] cada vez mais se encara o exercício da discricionariedade pela Administração Pública – e a fortiori pelas agências reguladoras - como o exercício de uma profícua ponderação entre os diversos interesses públicos e privados envolvidos, buscando, dentro de metodologia própria, [...] realizar a maior efetividade possível de todos eles (“mandados de otimização”), alcançando, se possível, o consenso, até porque, entre as competências das agências reguladoras, encontra-se a de compor conflitos [...]”.

Assim, a função normativa das Agências, fundada e limitada pela discricionariedade técnica, também resulta de opções (ponderações de valores) feitas pelo órgão regulador. Nesse sentido, pode-se entender que há uma política regulatória (que não se confunde com a política partidária, própria do debate parlamentar) que rege a edição das normas das Agências.

De fato, cabe às Agências executar políticas públicas setoriais, por meio da persecução de finalidades públicas, conceitualmente fixadas com alto grau de abertura. Por sua vez, a regulação desenvolvida pelas Agências é norteada pelo princípio da individualização e da concretude, sintetizados por ARAGÃO[27] na constatação de que “se a regulação visa a modificar (melhorar) a realidade social, deve, com base e em cumprimento a princípios gerais que regem estas modificações, ter em conta as situações reais, concretas, sobre as quais deve atuar”. Assim, a própria execução da política pública (fixada pelas leis e pela Administração central) resulta na definição da política regulatória. Por isso, ARAGÃO[28] expõe que “em face do Princípio da Retroalimentação da Regulação, não há como se sustentar que todos os aspectos políticos dos setores regulados ficaram retidos na Administração central, cabendo às agências reguladoras apenas a sua execução autômata e técnico-burocrática”. Há sempre um espaço volitivo a ser exercido pela Agência, o qual terá, em sentido amplo, um caráter político.

5. Especificidades da interpretação dos atos normativos das Agências Reguladoras.

O intérprete não é neutro e o resultado de sua atividade será sempre um ato de vontade: uma escolha dentre as possibilidades interpretativas ditadas pelo texto. Por sua vez, a edição de um ato normativo pela Agência resulta também de uma escolha, um juízo volitivo, de ponderação de interesses, com fundamento e limite na discricionariedade técnica, que definirá uma política regulatória. Tais premissas servem de orientação hermenêutica para a interpretação dos atos normativos das Agências, como se passa a analisar.

5.1. A relevância do elemento literal.

Diante dos atos normativos das Agências convém adotar uma maior ressalva quanto a uma hermenêutica criativa. Sem negar que o ato de interpretar se constitui em uma etapa da própria criação do direito, conforme já dito, deve-se evitar a interpretação que, em seu resultado, acabe por inovar em relação às possibilidades do texto da norma interpretada (esse é o sentido da expressão hermenêutica criativa aqui utilizada). Não se pode menosprezar o fato de que a Agência é dotada de função normativa que deve ser exercida dentro dos limites da deslegalização e na forma prevista em lei.

Vale ressaltar: a interpretação gramatical (que se entende como um dos métodos ou elementos clássicos de interpretação, ao lado do método histórico, sistemático e teleológico) não se confunde com a interpretação restritiva (esta ligada ao resultado do processo interpretativo, ao lado da interpretação extensiva e da interpretação declarativa). Não se está defendendo que a interpretação das normas das Agências Reguladoras seja sempre restritiva, uma vez que a interpretação extensiva deve ser admitida sempre que “se situe dentro da possibilidade expressiva da letra da lei”, conforme expressão utilizada por TORRES[29], ao tratar da interpretação literal no âmbito do Direito Tributário (CTN, art. 111).

É verdade que mesmo o elemento literal pode ser distorcido pelo intérprete ou utilizado para uma interpretação destituída de sentido. Convém ter em mente a advertência do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Galloti[30]: “De todas, a interpretação literal é a pior. Foi por ela que Cléia, na Chartreuse de Parme, de Stendhal, havendo feito um voto a Nossa Senhora de que não mais veria seu amante Fabrício, passou a recebê-lo na mais absoluta escuridão, supondo que assim estaria cumprindo o compromisso”. Por isso, os demais métodos de interpretação serão legítimos quando utilizados pelo intérprete para buscar o correto alcance da norma. Porém, o texto da norma será sempre um limite insuperável, conforme destaca BARROSO[31]:

 “[...] os conceitos e possibilidades semânticas do texto figuram como ponto de partida e como limite máximo da interpretação. O intérprete não pode ignorar ou torcer o sentido das palavras, sob pena de sobrepor a retórica à legitimidade democrática, à lógica e à segurança jurídica. A cor cinza compreende uma variedade de tonalidades entre o preto e o branco, mas não é vermelha nem amarela.”

5.2. A ótica dos agentes administrativos e órgãos internos da própria Agência.

A interpretação literal (ou gramatical) assume um aspecto de maior relevo na rotineira tarefa dos agentes administrativos da Agência de interpretar e aplicar as normas regulatórias. O respeito aos limites determinados pelo texto das normas se impõe, a fim de que a atividade hermenêutica não resulte no exercício do poder normativo por órgão destituído de tal competência. E conforme já se disse, a função normativa deve seguir o devido processo legal (do qual a regra de competência é questão fundamental) para ser validamente desempenhada.

Não se poderá exigir dos participantes do setor regulado obrigações não previstas nos normativos regulatórios, com base exclusivamente em uma interpretação dessas normas. Repita-se: o agente administrativo deve atentar para as limitações impostas pelo próprio texto das Resoluções ou outros atos normativos editados pela Agência. Havendo, porém, fundada dúvida quanto ao alcance dessas normas, não se deve exercer um juízo hermenêutico criativo, em usurpação da própria função normativa.

No âmbito do microssistema da Agência, a última palavra sobre os conflitos de interpretação dos normativos regulatórios caberá ao órgão máximo detentor da competência normativa sobre a matéria. Os questionamentos de interpretação devem ser solucionados pelo órgão colegiado da Agência, a fim de que aperfeiçoe, se for o caso, o normativo imperfeito – por violação ao dever de clareza das normas jurídicas - ou mesmo realize uma interpretação autêntica da norma plurívoca, editando uma súmula normativa sobre o assunto. A discricionariedade técnica, por meio da qual são concretizados os standards das leis delegantes, deve se manifestar em claras escolhas regulatórias, razão pela qual as dúvidas de interpretação devem ser resolvidas pelo órgão titular da competência normativa.

Não se trata de submeter ao colegiado da Agência, para referendo, todos os atos dos agentes administrativos que demandem interpretação dos normativos editados. Nem tampouco se defende que a Agência exerça legisferação hipertrofiada, sintoma que comprometeria, inclusive, a própria efetividade de suas normas. Ordinariamente, os órgãos internos da Agência exercerão sua rotineira tarefa de interpretar e aplicar os atos regulatórios, com o cuidado de não usurpar a função normativa.

A questão, em última análise, é de competência: deve-se perquirir a quem compete fixar a interpretação dos atos normativos editados pela Agência Reguladora. Existindo pluralidade de definições possíveis, em matéria sujeita a escolhas regulatórias, deve-se privilegiar o conceito deliberado pelo órgão colegiado da Agência com competência legal para o exercício da função normativa.

5.3. A ótica da Consultoria Jurídica.

A Constituição da República atribui à Advocacia-Geral da União, por meio de seus membros, a função de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo federal (CF, art. 131). Por sua vez, compete ao Advogado-Geral da União “fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e demais atos normativos, a ser uniformemente seguida pelos órgãos e entidades da Administração Federal” (LC nº 73/93, art. 4º, X). Não obstante, deve-se ter muito cuidado para que a atividade de consultoria não represente a substituição da política regulatória pela interpretação (sempre volitiva) do parecerista.

O parecerista atua sempre no esclarecimento do dado estritamente jurídico da questão posta na consulta, que agregado a outros dados da realidade (colhidos pelo Administrador), resultará na prática de um ato administrativo. Se o Agente Regulador necessitar da prévia manifestação dos órgãos de consultoria para a prática de um ato administrativo deve-se delimitar qual o dado jurídico estará sujeito à apreciação, pois a postura da consultoria variará de acordo com esse elemento. Assim:

a) se a hipótese sob consulta demandar a interpretação da Constituição e das leis, ou mesmo de aspecto estritamente jurídico dos normativos da Agência, a consultoria atuará com liberdade para opinar sobre a melhor interpretação jurídica a ser empregada;

b) no entanto, se a consulta diz respeito a elemento ligado à discricionariedade técnica, que expressa a própria política regulatória da Agência, não caberá ao parecerista opinar sobre o tema, até porque não lhe compete exercer a função regulatória.

SOARES[32], após recordar a origem do vocábulo hermenêutica (que remete ao deus-alado Hermes, mensageiro entre os deuses e os homens) pondera que o intérprete “atua verdadeiramente como um intermediário na relação estabelecida entre o autor de uma obra e a comunidade humana”. Quando um órgão da Agência suscita à consultoria dúvida relativa ao alcance de um ato normativo editado pela própria Agência está evidente a contradição: o autor solicita a outro sujeito a interpretação de sua própria obra. No entanto, revela-se inexorável que o ônus de esclarecer quais foram os dados técnicos que fundamentam e legitimam o exercício do poder normativo será sempre da própria Agência Reguladora.

5.4. A ótica do Judiciário.

Também no âmbito da interpretação dos atos normativos das Agências Reguladoras pelo Poder Judiciário será preciso atentar-se para a carga discricionária de tais normas. O juiz não poderá se substituir ao órgão regulador para definir as escolhas técnicas. Mais uma vez se percebe que uma interpretação criativa representaria uma grave invasão na discricionariedade atribuída pela lei às Agências para preencher os standards regulatórios.

A questão, no fundo, remete à problemática do controle pelo Judiciário sobre o exercício da discricionariedade técnica. BARROSO[33], tratando da revisão judicial sobre a função decisória das Agências, mas com ponderações aplicáveis ao controle jurisdicional das Agências em geral, expõe:

“O conhecimento convencional no sentido de não ser possível exercer controle de mérito sobre os atos administrativos tem cedido passo a algumas exceções qualitativamente importantes, geradas no âmbito do pós-positivismo e da normatividade dos princípios. Nesta nova realidade, destacam-se princípios com reflexos importantes no direito administrativo, dentre os quais o da razoabilidade, da moralidade e da eficiência. À luz desses novos elementos, já não é mais possível afirmar, de modo peremptório, que o mérito do ato administrativo não é passível de exame. Isso porque verificar se alguma coisa é, por exemplo, razoável – ou seja, se há adequação entre meio e fim, necessidade e proporcionalidade – constitui, evidentemente, um exame de mérito.

[...], no tocante às decisões das agências reguladoras, a posição do Judiciário deve ser de relativa auto-contenção, somente devendo invalidá-las quando não possam resistir aos testes constitucionalmente qualificados, como os de razoabilidade ou moralidade, já mencionados, ou outros, como os da isonomia e mesmo o da dignidade da pessoa humana. Notadamente no que diz respeito a decisões informadas por critérios técnicos, deverá agir com parcimônia, sob pena de se cair no domínio da incerteza e do subjetivismo.” (grifo nosso)

Essa postura de autocontenção por parte do Judiciário não significa, em absoluto, intangibilidade das escolhas regulatórias. Veja-se, sobre o tema, a posição defendida por ARAGÃO[34], que embora ressaltando o caráter excepcional das circunstâncias do caso concreto, admite um maior ativismo judicial no controle sobre as decisões regulatórias:

“Malgrado a existência de respeitáveis opiniões no sentido da impossibilidade tout court de substituição judicial das decisões discricionárias da Administração Pública – cabendo ao poder judiciário apenas anular as decisões que chegarem a violar o âmbito de apreciação deixado pela lei -, entendemos que em casos concretos nos quais os autos e a norma discricionária a ser aplicada ofereçam elementos suficientes para que seja cabível apenas uma solução razoável, o Poder Judiciário não deverá se furtar em aplicá-la. Noutras palavras, o Poder Judiciário só poderá suprir (em caso de omissão) ou substituir (no caso de anulação) o exercício da atividade discricionária da Administração Pública nos casos concretos em que existirem elementos objetivos suficientes para que, do conjunto dos dados normativos e fáticos disponíveis, se possa extrair uma – e apenas uma – solução legítima”. (negrito do autor)

É inegável, porém, que a excepcionalidade acaba por confirmar a regra: o controle da discricionariedade técnica deve se contentar com o juízo do razoável. Essa é a posição proposta por SOUTO[35]

“Quando a ordem jurídica se remete a questões técnicas complexas de difícil compreensão ou de impossível reprodução probatória (por sua característica intrínseca), o juiz deve se contentar com o “juízo do tolerável”, ou seja, uma decisão motivada da Administração (já que o estado da arte ainda não permitiu a certeza absoluta). O juiz não pode dirimir dúvidas sobre as quais a ciência ou a técnica ainda não firmaram uma verdade universal (salvo se a técnica não foi bem utilizada – por insuficiência, erro de fato, incongruência). Deve, no entanto, analisar se há transparência e coerência lógica na motivação científica, técnica ou de experiência. O controle das questões complexas deve ir até onde sejam possíveis os aspectos objetiváveis; no mais, deve se aceitar o juízo do razoável.” (grifo nosso)

O Juiz – assim como os demais intérpretes – não pode desconsiderar o alto grau de discricionariedade de conteúdo técnico-científico exercida pelas Agências Reguladoras por meio de sua função normativa. Por outro lado, o magistrado deve estar consciente de que a sua pré-compreensão acerca do problema submetido à apreciação decorre da inarredável constatação de que “toda interpretação é produto de uma época, de uma conjuntura que abrange os fatos, as circunstâncias do intérprete e, evidentemente, o imaginário de cada um” [36]. Portanto, interpretar uma norma com denso caráter técnico exige do hermeneuta uma postura cautelosa, a fim de evitar um juízo invasivo da competência atribuída pela lei às Agências para definir as escolhas regulatórias. Isso não significa a impossibilidade do controle judicial sobre o exercício da discricionariedade técnica. No entanto, o juízo do razoável mostra-se como um limite aceitável desse controle, uma vez que a autocontenção judicial, na espécie, busca realizar o programa constitucional de repartição de competências.

6. Conclusões.

Das reflexões desenvolvidas no presente trabalho verificou-se em relação ao ato de interpretar que: (i) a interpretação é parte da própria criação da norma; (ii) essa criação normativa pelo intérprete encontra limitações nas possibilidades do texto a ser interpretado; (iii) a razão não confere ao intérprete o atributo da neutralidade, podendo conduzi-lo, quanto muito, a desenvolver  sua autocrítica e seu autoconhecimento (iv) os impasses decorrentes das múltiplas possibilidades hermenêuticas devem cessar pela escolha a ser feita pelo órgão com competência e legitimidade para estabelecer a última palavra sobre os conflitos de interpretação.

Por sua vez, demonstrou-se que (i) os atos normativos das Agências Reguladoras decorrem do exercício pelo órgão competente de discricionariedade, com conteúdo técnico-científico, para concretizar os standards veiculados nas leis delegantes; (ii) as escolhas regulatórias (política regulatória) resultam de  juízos de ponderação dos valores setoriais a serem compatibilizados; (iii) a função normativa será legítima se exercida dentro de limites formais e materiais estabelecidos na Constituição e nas leis.

Com base em tais premissas, conclui-se que na interpretação dos atos normativos das Agências Reguladoras convém evitar um resultado inovador em relação às possibilidades dos textos interpretados, razão pela qual o elemento literal assume relevância como início e limite da atividade hermenêutica. A cautela do intérprete se justifica pela necessidade de respeito às competências estabelecidas pela lei e conferidas às Agências para definir a política regulatória, por meio do exercício da discricionariedade técnico-científica. Em síntese: não se faz escolha regulatória por meio da interpretação.

 

Referências bibliográficas:
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Notas:
[1]
Cf. MEDAUAR, Odete. O direito Administrativo em evolução. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 250/252.

[2] BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 283 e 285.
[3] NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 123
[4] Ibid., p. 127/128.
[5] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 7.
[6] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 394.
[7] COELHO, Inocêncio Mártires. Ordenamento Jurídico, Constituição e Norma Fundamental. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. p. 63/64.
[8] Cf. BONAVIDES, 2009; BOBBIO, 2008.
[9] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 131.
[10] NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Mutações do Direito Administrativo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.  p. 154.
[11] KELSEN, op. cit., p. 394.
[12] As implicações de se compreender a interpretação como um ato de vontade são um amplo campo de debate na pós-modernidade. A discricionariedade do intérprete, v. g., é um dos alvos do ataque de DWORKIN ao positivismo de HART. O presente trabalho pretende ressaltar apenas a inegável constatação de que o intérprete exerce sempre um juízo de valor, em algum grau influenciado por suas próprias convicções. Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 50/63. HART, H.L.A. O Conceito de Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 351/356.
[13] BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional, Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 8/9.
[14] BARROSO, 2003, op. cit. p. 10.
[15] Eis o teor do referido Acórdão (MS 7078/DF; DJ 09/12/2003):
MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. CERCEAMENTO DE DEFESA. OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE ADVOGADO CONSTITUÍDO E DE DEFENSOR DATIVO.1. A presença obrigatória de advogado constituído ou defensor dativo é elementar à essência mesma da garantia constitucional do direito à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, quer se trate de processo judicial ou administrativo, porque tem como sujeitos não apenas os litigantes, mas também os acusados em geral.2. Ordem concedida. 
[16] FRANK, Jerome apud BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. 2ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008. p. 46.
[17] COELHO, op. cit, p. 134.
[18] AARNIO, Aulis apud COELHO, op. cit p. 122.
[19] NETO, 2007, op. cit., p. 214.
[20] NETO, 2007, op. cit., p. 222.
[21] GIANNINI, Massimo Severo. apud NETO, 2007, op. cit., p. 221.
[22] MONCADA, Luis S. Cabral de. apud ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009. p. 85.
[23] ARAGÃO, op. cit., p. 408/409.
[24] CUÉLLAR, Leila. apud ARAGÃO, op. cit, p. 440.
[25] BINENBOJM, op. cit, p. 290.
[26] ARAGÃO, op. cit., p. 434.
[27] ARAGÃO, op. cit., p. 107.
[28] ARAGÃO, op. cit. p. 363.
[29] TORRES, op. cit., p. 132.
[30] aput BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 3ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999. p. 127.
[31] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 291
[32] SOARES, Ricardo Maurício Freire. A interpretação Constitucional: uma abordagem filosófica. In: NOVELINO, Marcelo (Org.). Leituras Complementares de Direito Constitucional – Controle de Constitucionalidade e Hermenêutica Constitucional. 2ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2008. p. 96.
[33] BARROSO, 2003, op. cit., p. 299.
[34] ARAGÃO, op. cit. p. 353.
[35] SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 370/371.
[36] BARROSO, 1999, op. cit. p. 1.