IMPACTOS DA (IN)COMPREENSÃO DA LINGUAGEM FORENSE E OS DESAFIOS DO ACESSO À JUSTIÇA


Pormarianajones- Postado em 31 maio 2019

Autores: 
Jeissiany Batista Maia
Eduardo Alves da Silva
Aurélia Carla Queiroga da Silva

https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate Revista do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí Editora Unijuí – Ano XXVII – n. 50 – jul./dez. 2018 – ISSN 2176-6622 p. 128-138

IMPACTOS DA (IN)COMPREENSÃO DA LINGUAGEM FORENSE E OS DESAFIOS DO ACESSO À JUSTIÇA

http://dx.doi.org/10.21527/2176-6622.2018.50.128-138 Recebido em: 1º/10/2017 Aceito em: 22/10/2018

Jeissiany Batista Maia

Graduanda em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Pesquisadora e bolsista em projetos de iniciação científica e de extensão. maiajeissiany@gmail.com

Eduardo Alves da Silva

Licenciado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Especialista em Libras (Língua Brasileira de Sinais). Professor de Língua Portuguesa e Inglesa. Estudante de linguística cognitiva no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da UFRN. edugrunge@hotmail.com

Aurélia Carla Queiroga da Silva

Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Especialista em Direito Processual Civil, com Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande. Professora de Direito Civil e da Área Propedêutica pela UERN – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte). aureliacarla@yahoo.com.br

RESUMO

O presente artigo trata dos aspectos linguísticos que envolvem a tessitura da prática discursiva (tanto oral quanto escrita) da fala jurídica e suas peculiaridades intrínsecas no tocante ao seu aspecto interpretativo na ordem pragmática do léxico da língua portuguesa. O estudo tem como objeto a compreensão do desdobramento do lexema jurídico que é distante do público em geral, o qual justamente se procura alcançar, e suas implicações no aspecto pragmático do uso do chamado “juridiquês”. O uso corrente de expressões jurídicas pode ter influência de fatores socioculturais ou até mesmo de ordem diastrática, o que denota uma espécie de status social imbricado ao uso da linguagem jurídica. Partindo de forma dedutiva, este estudo versa sobre uma experiência do jargão jurídico de forma a fazer generalizações em sua prática que, nos dias de hoje, tem-se tornado cada vez mais distante do uso pragmático de clareza que esta prática linguística se propõe a substanciar.

Palavras-chave: Linguagem forense. Compreensão. Acesso à Justiça.

IMPACTS OF THE (IN)COMPREHENSION OF FORENSIC LINGUISTICS AND THE CHALLENGES OF JUSTICE REACHING

ABSTRACT

This article deals with the linguistic aspects that involve the interpretation of the discursive practice (both oral and written) of juridical speech and its intrinsic peculiarities regarding its interpretative aspect in the pragmatic order of the lexicon of the Portuguese language. The purpose of this study is to understand the unfolding of the legal lexeme that is far from the general public, which it is precisely trying to reach, and its implications in the pragmatic aspect of usage of the so-called “juridiquês”. The current use of legal expressions can be influenced by sociocultural factors or even by diastratic aspects, which denotes a kind of social status mixed to the use of legal language. Deductively, this study deals with an experience of legal jargon in order to make generalizations on its practice, which nowadays has become increasingly distant from the clear pragmatic use this linguistic practice proposes to substantiate.

Keywords: Forensic Language. Comprehension. Justice Access.

SUMÁRIO

1 Introdução. 2 Linguagem e Compreensão do Discurso. 3 Finalidade e Caracteres da Linguagem. 4 Linguagem Forense e o Fenômeno da (In) compreensão. 4.1 Dificuldades de Decodificação do Vocabulário Jurídico. 4.2 Aspectos Sociais Subjacentes ao Discurso Jurídico. 5 Impactos da Falta de Compreensão da Linguagem Forense e o Déficit de Acesso à Justiça. 6 Conclusão. 7 Referências. Ano XXVII – nº 50 – jul./dez. 2018 – ISSN 2176-6622 IMPACTOS DA (IN)COMPREENSÃO DA LINGUAGEM FORENSE E OS DESAFIOS DO ACESSO À JUSTIÇA 129

1 INTRODUÇÃO

É inegável a existência de uma relação simbiótica entre Comunicação e Direito, na medida em que a linguagem escrita interpõe-se como a base retórica do profissional da carreira jurídica, além de despontarem, ambos, como fenômenos sociais, cujas raízes sedimentam-se no convívio humano e na interação social. Perles afirma que a comunicação está relacionada ao fato de se transmitir algo do qual se conhece a existência, passando essa informação adiante, de modo a difundir sempre mais o conhecimento, a informação acerca de alguma coisa (PERLES, 2007). Por ser uma ciência social (assim como a Linguística), a Ciência Jurídica faz-se presente cotidianamente na vida da população, desde o momento do nascimento até a ocasião da morte. Por outro lado, essa ciência, que é interdisciplinar, comunica-se com várias outras, como a política, a Sociologia e a Filosofia, o que realça a importância da linguagem como fator elementar e determinante na evolução histórica da sociedade e do Direito. Entende-se a linguagem como principal instrumento de trabalho para o advogado, constituindo-se ela a única arma para a concretização do pedido e sua procedência, caso advogado do requerente, ou improcedência, se advogado do requerido. Nesse cenário surge a discussão sobre o “juridiquês”, que é um conjunto de expressões e termos utilizados entre os operadores do Direito, com gírias e jargões que tornam robusto o texto apresentado aos autos dos processos. É definido como um desvio no linguajar jurídico por prejudicar a inteligibilidade aos interlocutores. Apresentada de maneira escamoteada e diluída entre os fatores socioculturais que dificultam o direito de acesso à Justiça, a reflexão sobre a linguagem jurídica não tem obtido espaço de destaque nos livros que versam sobre essa garantia fundamental. Se “o Direito é, por excelência, entre as que mais o sejam, a ciência da palavra” (XAVIER, 2003, p. 9), razoável seria que ocupasse, no bojo das discussões sobre acesso à Justiça, um lugar de cuidadosa relevância. À discussão desta questão, outras se colocam paralelamente, quando não preliminarmente: o reconhecimento da linguagem jurídica como tal, o entendimento da linguagem jurídica como entrave ao acesso à Justiça, a compreensão dos mecanismos de manutenção de uma linguagem e dos motivos que a fomentam, o reconhecimento do direito constitucional de acesso à Justiça e, finalmente, o grau de importância que tem a linguagem jurídica, como elemento de interação entre o Judiciário e os cidadãos, e como veiculadora do Direito em um Estado Democrático. A premissa de o Direito ser instrumento que serve ao interesse coletivo leva-nos a uma lógica de que ele deve ser feito e praticado sob a ótica de atingir a todos que dele precisem em seu dia a dia e nas relações sociais. O fato de a linguagem hermética dos advogados, juízes, magistrados e do próprio texto jurídico constituir uma espécie de muro que separa o povo comum desse escopo de usuários abalizados e versados nessa linguagem faz com que a realidade do Direito fique cada vez mais distante das pessoas que busca atingir. A pesquisa, ora disposta, visa a depurar a problemática da (in)compreensão da linguagem forense na contemporaneidade, abordando questões atinentes ao universo linguístico do Direito, defendendo a necessidade de se abandonar o emprego do “juridiquês” em prol da otimização do próprio alcance social das decisões, dessa forma oportunizando à clientela comum, qual seja, o cidadão brasileiro, o acesso à Justiça em condições reais de interlocução e entendimento de todo o processo não só normativo, mas, sobretudo, comunicativo. Para tanto, aplicar-se-á o método dedutivo, por meio da consulta às fontes doutrinárias e à legislação pertinentes, tecendo um estudo interdisciplinar que impulsiona o uso da linguagem como ferramenta de emancipação social, na medida em que liberta o indivíduo para interpretar o mundo que o circunda.

2 LINGUAGEM E COMPREENSÃO DO DISCURSO

Para melhor assimilação da problemática, faz-se imperioso aclarar as noções semânticas de linguística, língua e linguagem. Mario Eduardo Martelotta aduz: “Lingüística é a disciplina que estuda cientificamente a linguagem” (, 2008, p. 15). Sendo assim, é imprescindível que qualquer estudo que vise a abordar algo de natureza tão acadêmica quanto a linguagem jurídica seja feito sob a luz de uma ciência. Ainda em seu estudo o autor afirma que língua “(...) é um sistema usado entre os membros de um grupo social e linguagem é uma habilidade a qual os seres humanos possuem de se comunicar”. Editora Unijuí – Revista do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí Jeissiany Batista Maia – Eduardo Alves da Silva – Aurélia Carla Queiroga da Silva 130 Sob o ponto de vista jurídico temos que a língua portuguesa é uma língua comum expressada mediante a faculdade de se comunicar com os falantes de um grupo social, mas que encontra um limbo que só se faz compreensível entre usuários mais específicos da língua portuguesa: os do jargão jurídico ou “juridiquês”. Então, de que forma o Direito concretiza o seu objetivo de garantir o acesso à Justiça quando apenas os seus usuários podem efetivamente compreendê-la? À luz da Linguística, a pragmática é o estudo do significado sob o ponto de vista dos interlocutores, do seu significado contextual. À pragmática implicam os seguintes fatores chamados de Tríade Pragmática:1 O sinal linguístico (a coisa a ser dita), aquilo a que esse sinal remete e a quem ele significa. A Linguística e sua prática moderna estudam esses aspectos, pois toda língua tem sua realização não só nos atos de fala e comunicação, mas também em todas as suas implicaturas e variáveis socioculturais. Assim, a prática e execução do jargão político devem estar pautadas em múltiplas variáveis para que se conclua seu objetivo principal, que é o entendimento dos termos para poderem surtir os efeitos desejados. Para o clássico linguista Roman Jakobson (1971), a linguagem apresenta uma variedade de funções e devemos levar em conta os elementos constitutivos de todo ato de comunicação, que estão a seguir arranjados: Figura 1 – Atos Comunicativos de Jakobson Fonte: Repositório de imagens do Google. Na Figura 1 observa-se que para que haja entendimento comunicativo entre emissor e receptor é preciso que essa estrutura seja atendida, sob pena de impossibilidade de comunicação. Isso significa que para que haja comunicação não basta que um remetente envie uma mensagem a um destinatário, pois, para que essa mensagem seja compreendida, é necessário que ela preencha algumas condições. Segundo a lição de Jakobson, que se percebe na Figura 1, são condições fundamentais: Um contexto apreensível pelo destinatário – aqui se leva em conta dois tipos de contextos. Contexto em que frases proferidas anteriormente podem ser levadas em consideração (contexto linguístico) ou dados referentes ao local, ao momento da comunicação ou mesmo ao tipo de relação entre os interlocutores (contexto extralinguístico) Um código que seja conhecido pelo remetente e destinatário – no caso de um discurso entre advogado e o seu cliente ou entre um magistrado que divulga sua decisão judicial para todo o país pela televisão, por exemplo, temos a língua portuguesa. Um contato ou canal físico e uma conexão psicológica – o termo “canal” refere-se ao meio pelo qual a mensagem é transmitida. No caso de uma conversa o canal é o ar, no caso de uma decisão televisionada, a TV. Assim, observa-se que numa situação comunicativa ideal entre um usuário dos termos jurídicos e um receptor leigo, a condição “b” estaria sendo prejudicada parcialmente, pois o português que é praticado pelo remetente é substancialmente diferente daquele praticado pelo receptor. Existe comunicação entre o usuário 1 Foi o filósofo norte-americano Charles S. Peirce o primeiro autor a utilizar a palavra “pragmatics”, no seu artigo How to make our ideas clear, de 1878. Pierce exerceu influência sobre vários filósofos e assim foram divulgadas suas ideias sobre a tríade pragmática. Essa tríade representa a relação entre cada signo, objeto e interpretante. O que Peirce procurou destacar ao postular essa tríade foi a necessidade de teorizar a linguagem levando-se em conta o que sempre foi lembrado na Linguística, ou seja, o sinal, mas também aquilo a que este sinal remete e, principalmente, a quem ele significa (grifo nosso). In: MARTELOTTA. Mario Eduardo. Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2008. p. 60. Ano XXVII – nº 50 – jul./dez. 2018 – ISSN 2176-6622 IMPACTOS DA (IN)COMPREENSÃO DA LINGUAGEM FORENSE E OS DESAFIOS DO ACESSO À JUSTIÇA 131 comum e seu advogado, mas não há comunicação satisfatória entre o advogado e o usuário comum. Dessa forma há um ato comunicativo falho, insatisfatório ou até inexistente se o usuário do vocabulário jurídico não refizer todo o seu discurso para que o remetente o compreenda. Como importante ferramenta da comunicação, a linguagem deve ser clara e direta, de modo a fazer que o receptor entenda por completo a mensagem emitida. No campo jurídico, a linguagem assume importância crucial. Tanto sob a forma verbal como sob a forma escrita, é utilizada nos foros para a apresentação do pedido de tutela jurisdicional e de sua contraposição, para a tomada de depoimentos e testemunhos, para a prolação de sentença, entre outros atos jurídicos (ADORNO; SILVA, 2000, p. 73). Destarte, a comunicação deve ser clara e objetiva, livre de quaisquer subjetividades. A prática do linguajar do jurista deve permanecer num escopo socialmente e situacionalmente definido, livre de metáforas, preciosismos, arcaísmos e elementos destoantes do português praticado pelo grupo e aceito por convenções linguísticas que caracterizam seu público-alvo. A mudança das variantes linguísticas tem motivação situacional para cada tipo de convenção. Uma conversa informal para um grupo definidamente alocado, a norma culta para situações de formalidade, etc. No caso da prática linguística jurídica, o que se percebe é um distanciamento do público-alvo a ponto da irresolução linguística, engendrando no falante um constructo de dubiez e incompreensão.

3 FINALIDADE E CARACTERES DA LINGUAGEM JURÍDICA

O Código de Ética e Disciplina da OAB elenca diversas normas sob as quais um advogado deve atuar para que sua relação com o seu cliente seja o mais clara, pragmática e objetiva possível. Essas regras são uma espécie de código de conduta para que o instrumento que o advogado usa, o Direito, não seja leviano ou exageradamente hermético a ponto de que não mais haja entendimento entre advogado e cliente: Art. 46. O advogado, na condição de defensor nomeado, conveniado ou dativo, deve comportar-se com zelo, empenhando-se para que o cliente se sinta amparado e tenha a expectativa de regular desenvolvimento da demanda (BRASIL, 2017). Assim, o uso dos termos jurídicos extremamente pomposos e herméticos encontra um obstáculo em sua pragmática, pois, segundo o próprio código de conduta das pessoas que fazem uso desse jargão, impede que seu cliente sinta-se “amparado” e “encontre suas expectativas”. Ainda é preciso mencionar que além de uma postura reta e objetiva quanto ao seu relacionamento com seu cliente, o advogado deve usar uma linguagem clara e objetiva no que tange sua prática com ele. O pressuposto da necessidade do uso dessa linguagem encontra uma incoerência nesse mesmo Código de Ética citado anteriormente quando: Art. 8º.O advogado deve informar o cliente, de forma clara e inequívoca, quanto a eventuais riscos da sua pretensão, e das consequências que poderão advir da demanda (BRASIL, 2017). Claramente constata-se que o que é exigido no Código de Ética e Disciplina da OAB não corresponde à realidade do discurso jurídico para seus clientes. Com textos rebuscados e, muitas vezes incompreensíveis, o discurso do advogado ou do magistrado nunca se concretizará de forma “inequívoca” pois seu uso prático é bem diferente da realidade do cliente, e não por ser apenas leigo, mas por esse discurso se distanciar tanto do português que usamos no dia a dia que o torna incompreensível para qualquer pessoa que não seja da área de Direito. Um exemplo de como o texto jurídico pode se distanciar do senso comum com estrangeirismos (Inglês, Latim, etc.) e superadjetivados de forma soberba de maneira a parecer ininteligível mostra-se neste exemplo: Empôs lavor ingente, cristalizo o desiderato da suma do litígio. E sem extrapolar dos fatos contendidos, id est, atendo-me aos lindes apertados da res in iudicium deducta, cumpre-se solver o dissídio, jungido, por igual, à ordem dos tempos novos, ressalvando, contudo, o meu pensar de iure condendo (MOREIRA, 2017). Outro exemplo: Editora Unijuí – Revista do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí Jeissiany Batista Maia – Eduardo Alves da Silva – Aurélia Carla Queiroga da Silva 132 Com evidência, a autoria do fato ali narrado, de cuja ilicitude oposição por incabível à espécie, diante dos elementos de convicção colhidos no instrutório judicial, que chancelam foros de credibilidade às peças constantes do inquisitório propedêutico, por concordes (MOREIRA, 2017). Também nessa direção é importante ao operador do Direito que, além dos conhecimentos gramaticais, saiba articular adequadamente as palavras, fazendo uso de argumentos convincentes, de maneira coerente e coesa. Com essa previsão é que José Carlos Barbosa Moreira faz-nos esta advertência: O juiz deve ter a virtude da autocontenção (…). Todos nós já tivemos ímpetos de usar expressões impublicáveis para estigmatizar determinados comportamentos. Não devemos ser sequer sarcásticos; devemos, simplesmente, com os dentes cerrados, conter os nossos ímpetos (MOREIRA, 2017). A compreensão da linguagem jurídica tende a ser prejudicada a partir dos termos rebuscados das peças e o formalismo exacerbado, que são capazes de tornar a linguagem incompreensível para pessoas leigas.

4 LINGUAGEM FORENSE E O FENÔMENO DA (IN)COMPREENSÃO

Denota-se que para haver comunicação e entendimento do discurso, seja ele oral ou escrito, é necessário que ambos, receptor e emissor, compreendam o texto. O filósofo da linguagem H. P Grice em seus estudos aborda um aspecto importante da pragmática linguística, mencionado “implicaturas conversacionais” que são indispensáveis para a compreensão mútua entre os participantes de um ato comunicativo. Aponta duas implicaturas: as convencionais e as conversacionais. As convencionais são aquelas cuja significação é gerada internamente, isto é, dentro do sistema linguístico de uma língua natural, e as conversacionais estão mais ligadas ao contexto extralinguístico. Considerando os aspectos dessas implicaturas, Grice desenvolveu princípios de cooperação e máximas conversacionais que são indispensáveis para o entendimento do discurso. Desta forma é fundamental apreender que: Nem sempre o que se diz corresponde à realidade ou é realmente aquilo que se quer dizer, donde a importância de se recorrer, nesses casos, ao contexto comunicativo: o significado é obtido, então, por meio de uma implicatura, isto é, do resultado da adesão ao princípio da cooperação que guiaria a interação verbal (linguística) entre indivíduos (GRICE, 2008, p. 90). Desse modo, o uso do “juridiquês” ou de formas rebuscadas demais da fala jurídica prejudicaria a compreensão do discurso, pois não haveria essas implicaturas. O entendimento mútuo do discurso estaria comprometido em todos os níveis, tanto no nível linguístico, pois o uso do juridiquês não corresponde perfeitamente ao sistema linguístico da língua portuguesa corriqueira no dia a dia, quanto em âmbito extralinguístico, tendo em vista que o ouvinte leigo desse tipo de linguagem se perde no contexto da fala. Outrossim, o filósofo da linguagem John Austin (MARTELOTTA, 2008, p. 92) versa sobre a teoria dos atos de fala observando que para se dizer algo é preciso performar atos simultâneos repletos de pragmática para se fazer sentido. Para ele existem três atos de discurso; o ato locutório centrado no nível fonético, o ato ilocutório centrado no caráter performativo (modo de dizer) e o ato perlocutório, que são os efeitos causados pelo proferimento do discurso. De tal forma que, quando se faz uso de uma linguagem muito rebuscada no plano jurídico, esses atos são igualmente prejudicados. Em âmbito locutório o cidadão comum que ouve alguém falar juridiquês estranha as palavras e construções nunca antes ouvidas a ponto de mal entender que aquilo é língua portuguesa. Em nível ilocutório, o ouvinte do “juridiquês” igualmente estranha o modo como o discurso é dito, pois é deveras diferente da realidade. E, finalmente, em âmbito perlocutório o texto torna-se incompreensível, pois o objetivo do falante de que seu receptor entendesse a mensagem foi totalmente destruído quando, por exemplo, o emissor ouve a seguinte resposta: “Dá para traduzir agora, doutor?” Ano XXVII – nº 50 – jul./dez. 2018 – ISSN 2176-6622 IMPACTOS DA (IN)COMPREENSÃO DA LINGUAGEM FORENSE E OS DESAFIOS DO ACESSO À JUSTIÇA 133

4.1 Dificuldades da Decodificação do Vocabulário Jurídico

A compreensão de textos do operador do Direito requer domínio das técnicas textuais para a operacionalização de informações jurídicas, quer dizer, demanda conhecimento específico, forma de locução, técnicas de redação, estilos e medidas próprias. A habilidade de extrair informações do texto tem sido considerada uma das mais importantes, o que implica, entre outros fatores, a capacidade de distinguir ideias principais de informações de detalhes. Diante de um texto, a ativação do conhecimento prévio, aquele adquirido ao longo da vida, não ocorre apenas a partir de um item lexical, mas depende da inferência dos conhecimentos individuais armazenados na memória do indivíduo, isto é, todos têm um repertório de conhecimentos acumulados e organizados no decorrer de sua experiência de vida, fator de relevância capaz de captar o sentido dos enunciados que compõem o texto, de modo fundamental, pois sem ele não haverá compreensão. Quando o sujeito depara-se com um texto, para que se inicie o processo de compreensão é necessário que ele ative o conhecimento prévio a respeito. Como a leitura é um processo interativo, torna-se necessário o envolvimento dos níveis de conhecimento, como: linguístico, textual, de mundo ou enciclopédico. É relevante observar o papel do contexto para o processo de compreensão. Muitos textos não podem ser compreendidos sem que se considere o contexto geral em que estão situados. Diante de um texto não se leva em consideração apenas itens lexicais, mas os conhecimentos do sujeito, suas crenças, as circunstâncias em que o texto é lido. Dessa forma, o contexto e a compreensão mantêm uma intrínseca relação. É necessário informar, é preciso haver uma compreensão dinâmica e abrangente do sujeito com o texto, um encontro vivo de histórias de um com outro, que envolve componentes sensoriais, emocionais, perceptivos, intelectuais ou cognitivos, socioculturais, econômicos e políticos. Durante a construção de sentido o indivíduo interage com as formas dadas pela sociedade, em um determinado tempo e espaço. Pode-se afirmar que se apropria da cultura que vive. Segundo Othon Garcia (2017, p. 157), a clareza das ideias está intimamente relacionada com a clareza e precisão das palavras. No Direito, os sentidos das palavras ocupam destaque maior porque qualquer sistema jurídico, para alcançar seus objetivos, deve cuidar do valor nocional do vocabulário técnico e estabelecer relações semântico-sintáticas harmônicas e seguras na organização do pensamento. Escrever em linguagem comum, entretanto, sem prejuízo técnico, constitui uma das mais árduas tarefas do operador do Direito. Como escrever claro para ser compreendido por leigos? O mundo jurídico é cercado por palavras polissêmicas, muito embora o profissional do Direito busque a univocidade. Exemplificamos com a palavra Justiça, que tanto expressa “a vontade de dar a cada um o que é seu” (CRETELLA JÚNIOR, 2000), quanto exprime as regras em lei previstas, e, ainda, o aparelhamento político- -jurídico destinado à aplicação da norma do caso concreto. O texto jurídico apresenta arcaísmos, neologismos, estrangeirismos, latinismos, diversas siglas, abreviaturas, citações de acórdão de leis, entre outras particularidades, que se torna um percalço para o profissional do Direito. Isso significa que os cuidados com a linguagem e expressividade jurídica são infinitamente maiores que em outras áreas, pois o desempenho locutório do operador do Direito serve para medir a competência profissional, o desempenho judicial, a liberdade de um cliente, quer dizer, as técnicas de escrita são indispensáveis para atingir os resultados profissionais desejados. Vale ressaltar que as técnicas de análise e construção textual são também determinantes para a oratória profissional. A compreensão do texto jurídico envolve além do conhecimento linguístico, do conhecimento textual e do conhecimento de mundo, o conhecimento específico, pois sem este último a compreensão torna-se fragmentada e difícil. Como explicar em linguagem comum que um crime é inafiançável? Primeiramente, é preciso explicar o que é fiança no processo penal e como se viabiliza e produz efeito e, para complicar um pouco mais, é necessário considerar que o vocábulo “fiança” apresenta várias acepções. Como se vê, a linguagem jurídica é bela por apresentar “armadilhas” e, quando bem utilizada, o sucesso é quase sempre garantido. Para Editora Unijuí – Revista do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí Jeissiany Batista Maia – Eduardo Alves da Silva – Aurélia Carla Queiroga da Silva 134 o leigo compreender o texto jurídico é necessário um comportamento pedagógico do profissional do Direito, em outras palavras, cabe a este profissional traduzir o Direito para o seu receptor. Essa atitude corresponde a um ofício de interesse social. Dessa forma, o redator no exercício profissional, escrevendo peças jurídicas ou extrajudiciais, precisa selecionar e organizar as suas ideias no texto, pois a linguagem jurídica, como não poderia deixar de ser, exterioriza sentimentos e busca persuadir ideias. É preciso, assim, ao autor de um texto, enlaçar as palavras para que construa, com habilidade, um enunciado capaz de transmitir uma mensagem, que exprima um todo significativo com intenção comunicativa, colocando o emissor em contato com o receptor.

4.2 Aspectos Sociais Subjacentes ao Discurso Jurídico

A Juíza Heliana Coutinho Hess declara que “o acesso ao Judiciário [...] é ajustado para corresponder às demandas da classe dominante e mais forte” (HESS, 2004, p. 64). Infere-se, a partir dessas análises, que a linguagem jurídica, mecanismo de acesso à Justiça, reveste-se de um modelo discursivo ideológico conveniente à manutenção do poder de acesso pelas classes dominantes. Nesse sentido, para se interpretar a linguagem e, em foco, a linguagem jurídica, é preciso compreendê- -la como também veiculadora de uma ideologia, amalgamada de significados e de sentidos próprios, aparentemente neutros. Historicamente, as classes sociais detentoras de privilégios sempre se esmeraram em manter estável o status de privilégio em suas relações. Esse interesse é o que as leva a elaborar, defender e consolidar uma visão de mundo que justifica, legitima e explica aquela organização social. Por outro lado, as classes sociais desprivilegiadas tentam conhecer a organização da sociedade dominante e seus mecanismos de manutenção de poder para, então, enfrentá-los, transformando tais mecanismos em seu favor. Por acreditar ser a falta de conhecimento da linguagem jurídica um obstáculo de raízes socioculturais, diferentemente da organização textual, a obra de Moralles (2006) preceitua que a dificuldade que a linguagem jurídica tem colocado aos cidadãos de uma determinada organização sociocultural, interfere na compreensão do discurso jurídico e se torna um óbice ao acesso à Justiça. As classes menos favorecidas econômica e culturalmente desconhecem, em regra, direitos tradicionais que versam sobre direito de vizinhança, família, sucessão, locação, posse, entre outros que lhes afetam a vida cotidianamente. Em se tratando de novos direitos, tais como do consumidor, meio ambiente, biodireito, as dificuldades de conhecimento destes, bem como de seus mecanismos de efetivação, revelam-se alarmantes na sociedade em geral. Para a barreira ao conhecimento dos direitos concorrem a inexistência, na sociedade atual, de entidades que tenham por escopo a democratização do conhecimento do Direito, assim como uma política educacional voltada para essa finalidade. Acresce-se ao bolo da desinformação jurídica que a ação dos meios de comunicação, na veiculação de programas que orientem a população a buscar a tutela jurisdicional, por intermédio dos órgãos públicos, é ainda muito tímida. Fazendo uma conjugação entre fatores econômicos, sociais e culturais, Moralles escreve que: A barreira social de acesso à Justiça é percebida sobretudo nas camadas mais pobres da sociedade, que em nosso país é a grande maioria da população, pois normalmente o grau de pobreza está atrelado ao grau de pouca educação e informação das pessoas (2006, p. 75). Somados ao pensamento da autora, outros estudiosos também dirão que as classes populares menos favorecidas economicamente, além de não poderem arcar com o custo do processo, amargam uma educação deficitária, que não lhes garante o conhecimento necessário ao acesso à Justiça. Reflita-se que, na sociedade brasileira, alguns já nascem com seus direitos garantidos e, ainda que não saibam entender a linguagem jurídica ou compreender a organização judiciária, podem pagar a quem sabe. Já outros precisam aprender a conhecer e lutar por seus direitos, precisam aprender que têm direito a ter direitos. Ano XXVII – nº 50 – jul./dez. 2018 – ISSN 2176-6622 IMPACTOS DA (IN)COMPREENSÃO DA LINGUAGEM FORENSE E OS DESAFIOS DO ACESSO À JUSTIÇA 135 Não se pode esquecer que o acesso à Justiça deve “ser encarado como o requisito fundamental e o mais básico dos direitos humanos, de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 12). Nesta senda, a sua materialização necessária para a manutenção da coesão do Estado brasileiro também advém da dignidade da pessoa humana. A problemática do acesso à Justiça desperta o interesse de vários estudiosos no campo social e eminentemente jurídico, posto que reflete a própria finalidade do poder Judiciário, cujo alcance precisa atingir a coletividade, satisfazendo seu desejo de reparação e/ou punição, e sempre com fundamento legal. Dissecando o conceito, Grinover afirma: A ordem jurídico-positiva (Constituição e leis ordinárias) e o lavor dos processualistas modernos têm posto em destaque uma série de princípios e garantias que, somados e interpretados harmonicamente, constituem o traçado do caminho que conduz as partes à ordem jurídica justa. O acesso à justiça é, pois, a ideia central a que converge toda a oferta constitucional e legal desses princípios e garantias. Assim, oferece-se a mais ampla admissão de pessoas e causas ao processo (universalidade da jurisdição), depois garante-se a todas elas (no devido processo legal, para que possam participar intensamente da formação do convencimento do juiz que irá julgar a causa (princípio do contraditório), podendo exigir dele a efetividade de uma participação em diálogo –, tudo isso com vistas a preparar uma solução a dinâmica dos princípios e garantias do processo, na sua interação teleológica apontada para a pacificação com justiça (apud CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2009, p. 40). Moralles, assim como outros juristas e estudiosos do problema do acesso à Justiça, não dá relevância à linguagem jurídica como aspecto sociocultural a ser mais seriamente considerado na democratização da Justiça. O caminho de sua argumentação é previsível e ratificado em muitas outras discussões: o problema da linguagem jurídica não está nela e, sim, no cidadão, que é pobre, sem instrução, sem educação de qualidade. O que quer dizer claramente que a linguagem jurídica pode permanecer exatamente como está até que todos os cidadãos estejam ricos, instruídos e educados. Enquanto isso não acontece, com ou sem a intervenção do Estado, é natural que a Justiça esteja à disposição apenas de um pequeno grupo de privilegiados.

5 IMPACTOS DA FALTA DE COMPREENSÃO DA LINGUAGEM FORENSE E O DÉFICIT DE ACESSO À JUSTIÇA

Expresso na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, XXXV, o direito de acesso à Justiça para todos se constitui em um dos pilares da cidadania plena. Para além da garantia constitucional, de apreciação pelo poder Judiciário de toda lesão ou ameaça a direito, caminha hoje o entendimento do que vem a ser o efetivo acesso à Justiça, ampliando-se a questão para acesso ao Direito. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXV - a lei não excluirá da apreciação do poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (BRASIL, 2017). Nas palavras de Hess, “o conceito de acesso à Justiça é universal” (HESS, 2004, p. 1) e decorreu da análise dos conflitos surgidos em sociedades, nas quais se pretendeu atenuar a desigualdade socioeconômica, promovendo o bem-estar social por meio da intervenção do Estado. Positivados nas modernas Constituições e Tratados, os direitos e garantias de acesso à Justiça desenvolveram-se à medida que os direitos e garantias fundamentais e, bem como, o direito político à cidadania se impuseram por intermédio dos movimentos políticos e sociais no Ocidente. Em Cappelletti e Garth (1988, p. 8), o direito de acesso à Justiça é considerado o mais básico dos direitos humanos, sendo este o responsável pela efetividade dos demais direitos que incluem, além dos civis e políticos, gerados no século 18, os direitos sociais, econômicos e culturais. Dessa forma, a expressão “acesso à Justiça” vai além do direito de acesso ao poder Judiciário, compreendendo-a como o acesso uma ordem jurídica que vá proporcionar ao cidadão “resultados que sejam individual e socialmente justos”. Editora Unijuí – Revista do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí Jeissiany Batista Maia – Eduardo Alves da Silva – Aurélia Carla Queiroga da Silva 136 O Estado brasileiro regula a si mesmo e a vida de todos os cidadãos por meio do Direito. O Direito é ferramenta para viabilizar o bem-estar coletivo e a justiça social, objetivos do Estado Social. Tão importante é o conhecimento do Direito que o artigo 3° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro dispõe que “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece” (BRASIL, 2017). A presunção de que o conhecimento da lei é exigível de todos faz supor a existência de um Estado Democrático de Informação: um Estado que, por meio da educação institucional ou não, faça a informação chegar às últimas fronteiras de seu território e ao mais anônimo e pobre nacional. Em linhas gerais, reconhece-se como linguagem jurídica a forma de expressão escrita ou oral utilizada no universo jurídico, diferenciada de outras linguagens por seu acervo peculiar de termos técnicos e pela utilização de recursos de ornamentação e rebuscamento do texto. Sobre este conceito, esclarece Perles que “há uma linguagem jurídica porque o Direito dá um sentido particular a certos termos. O conjunto desses termos forma o vocabulário jurídico” (PERLES, 2007). Vale ressaltar que na CF/88 estão contidos direitos e garantias fundamentais da República, concessora de vários direitos aos agentes sociais. Não é o bastante, todavia, apenas conceder os direitos; existe a necessidade da simplificação destas normas para, a partir de então, haver, de fato, a compreensão efetiva dos direitos garantidos e consagrados na Constituição Federal e também nas demais leis infraconstitucionais que estão vigentes em nosso mundo jurídico. Entende-se por “juridiquês” as expressões e termos utilizados entre os operadores do Direito, caracterizado pelo uso de gírias e jargões que tornam robusto, do ponto de vista jurídico, o texto apresentado. Pode-se defini-lo ainda como um desvio no linguajar jurídico, na forma de preciosismo e no uso em excesso e desnecessário dos termos formais na construção textual jurídica, observados atualmente nos pronomes de tratamento dirigido aos magistrados e até mesmo entre os advogados, no curso processual. É importante destacar que o cerne da questão não se refere ao uso de termos técnicos, porque muitos são necessários e insubstituíveis, sob pena de macular o objetivo da peça que o contém. Conforme já explanado, todavia, o “juridiquês” pode existir na forma de preciosismo, pelo exacerbado uso de expressões latinas, de expressões ou termos arcaicos, rebuscados e de neologismos, tornando-se um dos fatores que dificultam a compreensão das peças processuais por parte de pessoas leigas e até mesmo de advogados. Mattoso Câmara Jr. esclarece que a “A clareza é a qualidade central de quem fala ou escreve” (1986, p. 157) Observa o referido autor que a importância da clareza decorre das funções de possibilitar o pensamento em sentido amplo e permitir a comunicação do pensamento elaborado. No mesmo sentido, Santos reafirma a importância e a indispensabilidade da clareza na linguagem jurídica: Deve-se escrever com as palavras que usamos na linguagem comum. Por isso convém evitar-se os arcaísmos, expressões raras e obsoletas. Quando o discurso, a palestra ou o relato refiram-se a temas científicos e filosóficos deve ser empregada a terminologia em uso nessas ciências. A finalidade dessa regra é garantir a clareza que é uma das qualidades principais de um bom estilo (SANTOS, 1954, p. 15). Eduardo C. B. Bittar, ao discorrer sobre as técnicas de escrita, análise e construção textual na seara jurídica, declara que o profissional do Direito está adstrito ao uso da modalidade formal da língua, a qual se submete a regras de gramaticalidade. A afirmação de Bittar tem muito a contribuir quando ele acrescenta à sua argumentação a noção de coerência em um texto jurídico. Descarta-se o simples alinhamento de locuções técnico-jurídicas, bem como o uso indiscriminado de uma linguagem rebuscada, acompanhada de latinismos, como possibilidades viabilizadoras de coerência e, brilhante e taxativamente, argumenta que “a coerência do texto jurídico se constata quando meios e fins são atingidos” (BITTAR, 2010, p. 390), o que acontece quando se tem consciência das pessoas envolvidas no processo de comunicação e que todo texto tem um público-alvo ao qual se destina. O estilo de linguagem jurídico deve ser visto como um auxiliador para a compreensão da lei e deve facilitar a comunicação jurídica. Sytia afirma que a palavra, em um contexto jurídico, dever ser empregada de forma clara e exata, além de se evitar uma delicadeza exagerada na semântica e ambiguidade na interpretação e na aplicação do texto legal (SYTIA, 2002, p. 58). Ano XXVII – nº 50 – jul./dez. 2018 – ISSN 2176-6622 IMPACTOS DA (IN)COMPREENSÃO DA LINGUAGEM FORENSE E OS DESAFIOS DO ACESSO À JUSTIÇA 137 Ao ensejo, Bittar vem apontar os esforços das investigações acadêmicas e dos debates entre os operadores do Direito, a respeito da simplificação da linguagem jurídica, louvando tais iniciativas. Complementando, é ele mesmo a dizer que simplificação não significa perda da técnica e nem negligência na precisão e que a abolição dos excessos de linguagem sinaliza para uma maior democratização do Direito. A democratização implica numa aproximação do Direito da realidade que procura representar e sobre a qual pretende agir, implica na adoção de uma postura que não cria divisões e separações entre universos discursivos, quando a síntese a simplicidade podem significar mais (BITTAR, 2010, p. 390). Com a mesma preocupação de acessibilidade da linguagem jurídica, lembre-se o discurso de posse da ministra Ellen Gracie o assumir a Presidência do Supremo Tribunal Federal: [...] Que a sentença seja compreensível a quem apresentou a demanda e se enderece às partes em litígio. A decisão deve ter caráter esclarecedor e didático. Destinatário de nosso trabalho é o cidadão jurisdicionado, não as academias jurídicas, as publicações especializadas ou as instâncias superiores. Nada deve ser mais claro e acessível do que uma decisão judicial bem fundamentada (SUPREMO..., 2006). Se a função do Direito contemporâneo é a resolução de conflitos, buscando métodos lógicos e eficazes, primando por princípios e valores necessários ao bem-estar coletivo, não se justifica o uso de um vocabulário que vá apartar em vez de harmonizar direitos e garantias fundamentais.

6 CONCLUSÃO

Verificou-se, que o ato de comunicação remonta desde os estágios mais iniciais do ser humano com ferramentas linguísticas rudimentares até o fim de sua vida, quando já dispõe de um aparato linguístico muito mais encorpado. Os atos de comunicação, desde o começo até o irromper de sua maturidade exigem um contexto sociocultural adequado para sua efetivação pragmática – e isso inclui a prática da linguagem jurídica. O distanciamento do discurso efetivado pelo operador jurídico é destoante do escopo que ele pretende alcançar e suas motivações são amplamente socioculturais, levando em conta fatores de prestígio, status e demandas arbitrárias muito mais do que demandas de ordem linguística. Percebeu-se que a motivação do uso do “juridiquês” se dá indelevelmente por aspectos alheios à língua em suas estruturas e, devido a isso, a compreensão do “homem comum” que busca o acesso a ela torna-se sobremaneira prejudicada. Embora seja possível enxergar anseios por uma linguagem rebuscada e que visa à perfeição formal, esta não se adéqua ao público que o jurista pretende alcançar, causando estranhamento e, muitas vezes, a completa falta de entendimento. É notório que alguns operadores do Direito não tratam a linguagem como forma de comunicação ampla, mas sim restrita ao grupo profissional, valendo-se de termos latinos e técnicos obstruentes à comunicação. Estabelecendo-se como um código a que poucos têm acesso, pode-se afirmar que, ao produzir o texto jurídico, o autor tem em mente seus destinatários: aqueles a quem é possível a sua compreensão e aqueles para quem a compreensão é impossível. A sua intenção de exclusão de determinado público já se explicita no momento em que ele escolhe com que palavras comporá o seu texto. A linguagem só existe como realização social. Se um determinado texto não passa de um amontoado de termos técnicos e misturados a um vasto juridiquês, regado a rebuscamentos, o cidadão, que é o outro na ponte do diálogo, não existe, e desse modo a linguagem perde a razão de ser. Ao se escolher um vocabulário obsoleto e estereotipado para compor um texto jurídico, há uma correspondência com mecanismos de conservação, inclusive das desigualdades sociais que uma ordenação institucional sustenta, e levando-se em conta toda a discussão sobre participação democrática e cidadã, conclui-se que a linguagem jurídica – rebuscada, obsoleta, impregnada de arcaísmos e latinismos – não contempla os ideais constitucionais de igualdade e democracia, impactando, em grande medida, o acesso à Justiça. Constatou-se se torna relevante o aprofundamento do estudo interdisciplinar entre Direito e linguagem no intuito de que se reflita o resguardo do direito do cidadão na condição de pertencente de um Estado Democrático de Direito, no qual o cumprimento da comunicação jurídica deve passar pelo viés da democracia, Editora Unijuí – Revista do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí Jeissiany Batista Maia – Eduardo Alves da Silva – Aurélia Carla Queiroga da Silva 138 propiciando aos cidadãos o acesso aos seus direitos e, no que tange à linguagem, deve-se estabelecer o processo comunicativo durante o atendimento aos recursos judiciais, de modo que haja compreensão entre a comunidade jurídica e as outras partes da sociedade, em especial o público leigo. Conclui-se com isso que o padrão linguístico é democrático, mas a erudição e o rebuscamento na linguagem não o são, de modo que função social da linguagem, em um Estado Democrático de Direito, não deveria ser outra senão a de comunicar.

7 REFERÊNCIAS

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