A imoderação do direito de corrigir


Pormarina.cordeiro- Postado em 12 março 2012

Autores: 
LEMOS, Bruno Godinho de
SUMÁRIO: I.INTRODUÇÃO ; II.A FAMÍLIA E O DIREITO DE CORRIGIR ; III.ATITUDES DOS PAIS E TÉCNICAS DE EDUCAÇÃO DOS FILHOS: CAUSAS E CONSEQÜÊNCIAS ; IV.DIREITOS DA CRIANÇA E INTEGRIDADE FÍSICA; V.O LIMITE DO PODER DE CORRIGIR; VI.O EQUILÍBRIO DA FAMÍLIA E AS POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO; VII.CONSIDERAÇÕES FINAIS; VIII.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
I INTRODUÇÃO
            O método de educação dos filhos é uma escolha importante para a construção do futuro cidadão e do sujeito de direito, que terá que se inserir na sociedade satisfatoriamente, para que possa atender às pretensões, às imagens e às demandas pré-constituídas sobre os indivíduos. A lei estabeleça que compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores, dirigir-lhes a educação e a criação. No entanto, este poder não pode exceder a esfera do cabível à moral social. O pai que abusar de sua autoridade, castigando imoderadamente o filho ou praticar atos contrários à ética poderá perder o poder familiar.
            A questão concerne ao limite do uso da faculdade de impor castigos físicos aos filhos. Em alguns países e territórios é proibido pela lei aos pais ou quaisquer pessoas bater em crianças, muito por causa de pesquisas de psicólogos e sociólogos que ressaltam os aspectos negativos desta conduta. Pode-se recorrer, contando com este aspecto, ao princípio de que todas as pessoas têm o direito à proteção de sua integridade física e que as crianças também são pessoas, e que merecem um grau de atenção aumentado em razão de sua fragilidade.
            A postura que o pai vai tomar, então, diante da aprendizagem das crianças tem um papel importante no entendimento do processo de superação da opinião desfavorável das capacidades naturais dos filhos, que tendem a levar a acreditar que deveria ser impositivo quando poderia construir uma relação centrada no respeito.
II A FAMÍLIA E O DIREITO DE CORRIGIR
 A família está presente, mesmo que de maneira indireta, em todas a instituições e segmentos da sociedade, que terão seu funcionamento condicionado pelos valores estruturados e sedimentados dentro do circulo familiar. Ela é "uma unidade social ou sistema formando por um grupo de pessoas não só com redes de parentesco, mas principalmente com laços de afinidade, afeto e solidariedade, que vivem juntos e trabalham para satisfazerem suas necessidades comuns e solucionarem seus problemas". [01] A importância da família está nas funções que ela desempenha na sociedade e na intermediação entre o indivíduo e a realidade social.
            Toda família tem padrões de interação recorrentes e previsíveis. Estes padrões refletem as filiações, tensões e ordens importantes nas sociedades humanas. Os padrões que organizam a hierarquia do poder, assim, aparecem em toda família. Eles definem os caminhos que o grupo familiar utiliza para tomar decisões e controlar o comportamento de seus membros. Os modelos de autoridade são aspectos particularmente importantes da organização familiar, carregando o potencial para harmonia e para o conflito e estando sujeitos a ser desafiados à medida que os membros do circuito da família crescem e se modificam ao longo do tempo em que se confrontam com as regras explícitas e implícitas que surgem nos relacionamentos estabelecidos em subsistemas criados através do gênero e da idade, diferidos conforme os comportamentos pertinentes a cada subgrupo.
            Os conceitos que predominam sobre a família normal constituem uma ideologia baseada nos estereótipos dos papéis genéricos: o pai, como arrimo e chefe de família; a mãe, como dona de casa em tempo integral, companheira do marido etc. definidos por seus papéis, estes esquemas são dotados de direitos de deveres.A relação entre pais e filhos ganha contornos importantes neste processo enquanto substância moral primordial na formação dos indivíduos, que dependem essencialmente da influência de quem toma para si o papel de educá-los.
            Como a família é uma instituição social, e devido à importância [02] desta convivência, o estado intervém nas relações entre pais e filhos para a proteção destes, enquanto menores. O pátrio poder, ou poder de família é, assim, um conjunto de deveres em que a "obrigação de educar os filhos está sobre a vigilância da autoridade pública. Sob este controle estão a saúde, a segurança e a moralidade do filho menor, admitindo-se que o pai possa ser destituído de tê-lo sob sua guarda se é negligente, incapaz ou arbitrário" [03].
            O artigo 229 da Constituição federal estabelece que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos. Seguindo esta instituição o Código Civil determina (artigo 384, I, do CC de 1916 e 1634, I, do CC 2002) que compete aos pais quanto à pessoa dos filhos menores dirigir-lhes a criação e educação. Essa manifestação conhecida como pátrio poder é uma situação subjetiva, constituída de um complexo de direitos e deveres que se distinguem, sem possibilidade de confusão, dos poderes propriamente ditos porque constitui uma "faculdade genérica reconhecida a todo sujeito como exteriorização de sua capacidade jurídica, sem direta sujeição de outrem" [04]. Estas situações subjetivas são dotadas de poder que se caracteriza por ser, ao mesmo tempo, uma faculdade e uma necessidade, sendo vinculado ao seu exercício a tutela dos interesses para os quais são atribuídos – a educação dos filhos e a defesa de seus interesses. O chamado poder-dever apresenta-se como uma figura intermediária entre o poder propriamente dito e o direito subjetivo, aproximando-se enquanto conceito, deste último porque á faculdade de agir corresponde um dever da parte do paciente, e ao dever uma pretensão de quem está sujeito ao poder, segundo Orlando Gomes.
            O poder, ou direito-função de acordo com alguns autores, de correção constitui uma das principais atribuições dos pais no exercício deste direito. O termo corrigir, segundo a definição encontrada em dicionário [05] significa: "dar forma correta a, emendando; eliminar (erro, deficiência etc); castigar". Trata-se, dentro do contexto pressuposto, de uma tentativa de socializar os filhos, por parte dos pais, para que eles "possam se tornar aceitos, atuarem bem e serem membros felizes da sociedade. Em geral, neste processo, os pais avaliam as ações de seus filhos como boas ou más, maduras ou imaturas, dignas de serem eliminadas ou encorajadas" [06]. Para que este objetivo seja cumprido os pais se utilizam de algumas técnicas e métodos que estão de acordo com a sua maneira de pensar e de pensar e de enxergar os filhos inseridos na realidade dos conflitos de nossa sociedade, com seus valores.
III ATITUDES DOS PAIS E TÉCNICAS DE EDUCAÇÃO DOS FILHOS: CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS
            O espaço ocupado pela família na vida do indivíduo é originalmente definidor das referências de mundo que ele carregará por toda a sua vida. Deste modo a intervenção dos pais sobre as crianças na tentativa de educá-las ou socializá-las segundo as regras implícitas à família ou a sociedade, além das preestabelecidas de forma verbal pelos pais, são conformadoras importantes da personalidade e das demandas do sujeito que está formado. Quase todos os pais têm idéias modelares com relação á maneira que gostariam que seus filhos fossem. Em suas tentativas de atingir essas concepções, os pais freqüentemente tentam inúmeras estratégias para atingir as suas diferentes finalidades.
            As maneiras de agir dos pais e as técnicas de educação constituem uma função de muitos fatores que interagem entre si, refletem inevitavelmente suas características de personalidade e suas crenças. Os elementos que influem nas práticas educacionais dos pais caem em três categorias: "(1) forças que emanam da personalidade dos pais (personalidade, expectativas, crenças sobre objetivos de socialização eficazes); (2) características da criança (personalidade e capacidades cognitivas); e (3) o contexto social mais amplo no qual o relacionamento entre pais e filhos é inserido" [07]. Ao usar estas técnicas disciplinares ou atuarem a partir dos comportamentos da criança, os pais estão tentando promover um compromisso com os seus valores.
            A postura do pai diante da aprendizagem do seu filho conforma-se através do modelo direcionado pela percepção que ele nutre da realidade social do seu filho. A atuação, assim, sobre a criança ocorre a partir da estimulação, seleção e punição guiada pelos comportamentos bons ou ruins, que devam ser estimulados ou desencorajados. Neste processo as crenças dos pais sobre as motivações e capacidades das crianças são significativas na modelação das práticas disciplinares.
            Alguns pais acreditam que seus filhos são ativos, controlam sua aprendizagem e adquirem conhecimentos através da vivência. Discutem questões com seus filhos e lhes fazem muitas perguntas, estimulando-os assim a pensar e raciocinar. Em contraste, os pais que pensam que seus filhos são basicamente aprendizes passivos, adotam condutas e medidas que têm menos probabilidade de promover o desenvolvimento cognitivo. Além disso, aqueles que percebem seus filhos como capazes, e rápidos aprendizes aceitam que não deveriam ser restritivos, enquanto que aqueles que têm uma opinião desfavorável das capacidades naturais tendem a acreditar que deveriam ser restritivos e impositivos. [08]
            O princípio da bidirecionalidade é claramente observado nas interações entre pais e filhos: o temperamento e as características da criança influenciam na qualidade e na quantidade de cuidados que ela recebe, assim como as práticas educacionais dos pais influenciam as características da criança.
            Seguindo os valores sociais acredita-se que a punição seja um método eficaz de educação. Verifica-se esta tendência em diversos contextos construídos a partir do pressuposto de que estas práticas inibem os comportamentos considerados nocivos. A mais gritante manifestação desta realidade é o Direito Penal, que a partir da noção de responsabilidade, tenta restabelecer a ordem social com a punição que pretende ressocializar o indivíduo.
            Os pais também crêem que têm que apelar para a punição algumas vezes, principalmente quando estão tentando ensinar seus filhos a evitar práticas ou objetos perigosos, ou quando desejam inibir determinadas atividades. A punição pode ter conseqüências negativas, mas também pode ser aplicada com bons resultados para reduzir ou inibir respostas indesejáveis e promover o desenvolvimento do autocontrole e do comportamento apropriado socialmente. Para conseguir esses objetivos a punição deve ser administrada de acordo com alguns princípios bens estabelecidos. Se o objetivo é inibir ações inaceitáveis, a coerência na punição é essencial. A punição errática ou incoerente- por exemplo, punir um comportamento em determinados ocasiões e não puni-lo em outrs- provavelmente levará a persistência do comportamento. Assim como quanto mais curto for o intervalo entre o ato indesejável e a punição, mais eficaz será a tentativa de correção. As proibições e punições, neste processo, têm mais probabilidade de ter os efeitos desejados se seguidas de explicação sobre suas razões.
            Quando uma criança é observada realizando um comportamento indesejável os pais podem puni-la ou conversar com ela, tentando suprimi-lo. No entanto, aplicação criteriosa dos princípios do reforço ou recompensa pode levar a uma prática educativa altamente eficaz e humana. Técnicas indutivas são mais eficazes: elas incluem explicações, esclarecimentos sobre as conseqüências das ações. O exemplo paterno também é extremamente importante.
            Os pais punitivos fornecem modelos agressivos. A família pode ser, assim, um espaço perigoso para as crianças. Não raro, justifica-se a intervenção agressiva dos pais, visando a corrigi-las. "Crê- se que a imposição de limites às crianças deve ser, necessariamente, acompanhada de medidas de censura aplicadas moderadamente, que podem ir desde agressões físicas, restrições à liberdade de locomoção, imposição de obrigações ou tarefas humilhantes até rotinas rigorosas que comprometem o desenvolvimento físico e psíquico da criança e do adolescente". [09] Punições severas podem levar à obediência futura de regras, mas também podem levar a ressentimentos, medo, os quais, por sua vez, podem fazer com que a criança resista a aceitação e a internalização desta regras. Como reação, as crianças podem evitar os pais punitivos que, portanto, terão menos oportunidades de orientá-los.
            "As crianças não agressivas provavelmente respondem à punição paterna inibindo as ações pelas quais são punidas, enquanto os meninos altamente agressivos freqüentemente intensificam seu comportamento indesejável após a punição" [10]. Se uma criança é insolente ou continua uma ação proibida, os pais tornam-se mais punitivos, o que dá continuidade ao circuito desencadeado pela agressão paterna que, quando severa, pode ter efeitos colaterais graves, já que comporta tanta ansiedade que as crianças não aprendem a lição pretendida.
IV DIREITOS DA CRIANÇA E INTEGRIDADE FÍSICA
            As atitudes dos pais com relação à educação dos filhos têm suas razões na maneira como nossa sociedade percebe a criança e o período da infância, concepção esta que só pode ser compreendida dentro do seu contexto histórico. A faculdade relativa ao pátrio poder, assim, compreendida em acordo com as extensões de sua influência em perspectiva comas possibilidades de inter-relação cultural da motivação de sua disposição por parte dos que têm a sua atribuição, tem relação com a evolução histórica do pensamento social e do direito, na medida em que a problemática da situação de criança e de adolescente mereceu o interesse do nosso ordenamento e do direito internacional regulador dos Direitos Humanos, estabelecendo diversos deveres concernentes à atividade paterna da educação.
            A constituição da República, em seu artigo 227, dispõe que "é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Esta ordem estabelece positivamente os direitos relativos às crianças bem como os deveres dos pais, que são naturalmente seus responsáveis, como também da família. O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, regulamentando o artigo supra citado, trata exclusivamente dessa categoria de direitos estabelecendo as normas fundamentais, a necessidade e formas de prevenção da violação dos direitos, assim como estabelecem os funcionamentos especiais dedicados aos adolescentes e crianças.
            A preservação da integridade física do indivíduo entra no rol de direitos da criança enquanto direito da personalidade, que é estendido a todos enquanto sujeitos de direito. Existe uma relação com outros direitos básicos estabelecidos na Constituição e explicitados no Estatuto da Criança e do Adolescente. O capítulo I do título II dispõe sobre o direito à vida e à saúde das crianças e adolescentes, notadamente o artigo 13 que as protege contra os maus tratos. O direito a liberdade, respeito e dignidade, contido no segundo capítulo do título II, tem no artigo 15 o seguinte texto: "a criança e o adolescente tÊm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis". O direito à integridade física, pelo qual se protege a incolumidade do corpo e da mente, consiste em "manter-se a rigidez física e a lucidez mental do ser, opondo-se a qualquer atentado que venha atingi-las, como direito oponível a todos" [11]. Ele é, obviamente, estendido às crianças e adolescentes, mas ganha especial atenção em razão da consideração da importância de se proteger aos menores, que são essencialmente mais frágeis. Este direito tem relação com os direitos citados presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente, na medida em que a integridade física é imprescindível para manutenção da vida, da saúde, da liberdade, do respeito e da dignidade da criança enquanto pessoa humana.
            A guarda destes direitos, segundo o ECA e o código civil, pertence aos pais ou preceptores, que devem zelar pela manutenção da integridade física e de todos os seus efeitos e alcances possíveis mesmo quando tem a intenção de fazer o bem aos filhos ou corrigi-lhes de algum modo. A carta magna no parágrafo 4º do artigo 227 estabelece que a lei puna severamente o abuso, violência e a exploração sexual da criança e do adolescente. Em conformação com esta norma, o código civil impõe a perda do poder familiar ao pai que castigue imoderadamente o filho, o deixe em abandono ou pratique contra ele atos contrários aos bons costumes (artigo 395 do CC de 1916 ou 1638 do CC de 2002).
            Penalmente estabeleceu-se o tipo dos maus-tratos, que consiste em "expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina" (artigo 136 do código penal). Determinando reclusão da 4 a 12 anos e aumento de um terço, se o crime é praticado contra menor de 14 anos.
            Com estes institutos a proteção da integridade física por via legal fica clara enquanto pretensão do legislador, e como tendência do ordenamento brasileiro, que considera a criança a criança como digna de condição especial, por ser hiposuficiente, inclusive contra a atividade paterna considerada lesiva, mesmo que com a motivação de correção.
V O LIMITE DO PODER DE CORRIGIR
            A utilização do animus corrigendi é, portanto, amplamente condicionada pelo ordenamento brasileiro. No entanto, culturalmente aceito no Brasil, assim como em muitas outras regiões, que os pais possam utilizar da punição física contra os filhos na tentativa de educá-los e socializá-los, segundo seus interesses e modelos. Esta técnica de educação reflete a realidade, construída durante muito tempo, em que a criança e o adolescente são simplesmente objetos de realização das determinações paternas. Castigos físicos podem levar a obediência futura às regras, mas também podem levar a ressentimentos e medo, os quais, por sua vez, podem fazer com que a criança resista a aceitação e internalização destas regras. Partindo desta concepção, a apreensão do conceito de violência torna-se bem próxima de um entendimento lógico mais abrangente. Deixando de lado as barreiras culturais que impedem uma avaliação concreta do fenômeno, a violÊncia física contra a criança e o adolescente deixa ser apenas aquela que se encontra no imaginário social, nas ocorrências policiais e nos hospitais. O conceito ampliado passa a abranger, principalmente, as agressões que poderiam ser consideradas como menos severas, e passam despercebidas aos olhos da sociedade.
            A violência física é caracterizada por qualquer ação única ou repetida, não acidenta (ou intencional), perpetrada por um agente agressor adulto ou mais velho, que provoque dano físico à criança ou ao adolescente. Este dano causado pelo ato abusivo pode variar [12]de lesão leve a conseqüências extremas como a morte.
            Essa realidade remonta a aceitação da prática de violência na sociedade, seja como método satisfatório de educação, seja como mecanismo presente no cotidiano de sanção utilizado junto às crianças e aos adolescentes por seus responsáveis. A violência praticada no ambiente familiar guarda uma relação direta com a violência estrutural e "é uma conseqüência das relações interpessoais dos atores envolvidos: criança /adolescente e famílias (pais, tios irmãos e etc)" [13].
Os pais punitivos fornecem modelos agressivos que são capazes de afetar profundamente o curso da experiência individual, moldando a capacidade da pessoa de atuar sobre o seu ambiente e de construir a sua própria história. Uma criança que é constantemente surrada, chacoalhada, fortemente reprimida, pode usar de formas de agressividade em interações com seus companheiros. "Pode ser inferido que os pais que usam punição severa também estejam treinando seus filhos a ser pais punitivos. De fato, muitos pais que maltratam seus filhos foram maltratados quando crianças" [14]. Sendo maltratadas, negligenciadas ou testemunhando e sentindo uma agressão, as crianças detêm um risco crescente para continuar a violência em suas famílias de procriação, ou em outros contextos sociais. A linguagem da violência passa a ser a única legítima.
            As principais técnicas disciplinares às quais os delinqüentes foram submetidos provavelmente envolveram a punição física. Os pais de jovens criminosos e mesmo altamente agressivos são mais incoerentes no uso de recompensas e punições que aquelas cujos filhos não são delinqüentes.
            O ciclo da violência ou a transmissão intergeracional da violência designa fenômenos como o de crianças vítimas de abuso virem a ser pais abusivos, o do vínculo entre abuso, delinqüência e comportamento violento em geral, o do vínculo entre abuso, isolamento e comportamento autodestrutivo, bem como dos efeitos dos testemunhos infantis da violência dentro e fora da família sobre o comportamento agressivo. [15]
            A dor assume um papel importante na conformação dos efeitos causados pela agressão física. O impacto causado pelas experiências traumáticas que ocorrem na infância, quando o indivíduo encontra-se particularmente vulnerável e impotente, "são potencialmente capazes de interferir de modo grave no crescimento normal da criança, bem como em seu futuro funcionamento como adulto" [16].
            Uma criança que tem os seus direitos fundamentais violentadas, notadamente o direito a integridade física, certamente no futuro terá dificuldades para se livrar dos ensinamentos que lhe foram impostos de forma brutal. O primeiro reflexo, possivelmente, atinge o grupo familiar em forma de rebeldia, desrespeitos etc. o segundo reflexo freqüentemente "atingirá, de alguma forma, a omissa socialmente que ajudou a violentar os seus demais direitos e os considera como potenciais agressores" [17].
            Jan Hunt, psicóloga diretora do The Natural Child Project nos Estados Unidos sintetizou as razões com as quais entende o castigo físico como danoso, orientando pela sua não utilização como forma de técnica disciplinar:
            1.Bater ensina as crianças a serem agressivas. Pesquisas indicam que muitos (quase todos) os criminosos foram vítimas destes castigos na infância;
            2.Bater passa a imagem nociva de que o mais forte sempre tem razão. Quando o indivíduo for adulto, vai ser incapaz de sentir compaixão pelos mais fracos;
            3.Ensina que bater em outros é um modo correto de exprimir sentimentos e solucionar problemas. Se os pais não conseguem resolver os problemas de modo criativo e humano, dificilmente as crianças vão fazê-lo;
            4.Poupe o bastão e estrague a criança. Isto é uma idéia errônea, já que bater apenas ensina os filhos a misturar sentimentos e idéias com a violência;
            5.O castigo interfere com o vínculo entre a mãe e os pais, uma vez que não é da natureza humana amar a quem nos fere. O castigo, quando funciona, origina um comportamento funcional superficial, baseado no medo, ao invés do respeito;
            6.Muitos pais não aprenderam na infância que existe um meio mais construtivo de se relacionar com as crianças;
            7.A raiva e a frustração que a criança não se arrisca a expressar abertamente ficam guardadas. O resultado percebe-se na adolescência, quando se cria uma revolta;
            8.Bater nas nádegas, que é uma zona erógena, pode criar na mente da criança uma associação entre dor e prazer sexual e levar dificuldades na vida adulta. Uma criança que só recebe atenção quando é castigada vai confundir os conceitos de dor e prazer, e vai pensar que não merece nada melhor;
            9.Em muitos casos, o mau comportamento é na verdade, uma reação a um possível descaso com algumas de suas necessidades básicas;
            10.A alta prevalência de surras transmite ondas de choque ao longo da coluna e causa lesões a integridade física do indivíduo.
            A violência doméstica ou o ato de punir a criança com castigo físico, represente uma omissão, praticada pelos pais, parentes ou responsáveis contra crianças e /ou adolescentes, que implica "de um lado numa transgressão no poder /dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que as crianças têm de ser tratadas como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento" [18]. Em nossa sociedade, é a família o lugar onde se estabelecerão as relações afetivas básicas através dos quais a criança aprenderá como interagir com os demais, de acordo com os valores e normas prevalentes na cultura em que está inserida. Daí ser relevante que se proteja as relações familiares e se proteja o processo de formação da personalidade e dos valores da criança de todo e qualquer ataque que possa vir a lesar os direitos a elas inerentes e seus efeitos sobre as suas vidas.
            Todas as pessoas têm o direito a proteção de sua integridade física e as crianças também são pessoas, de modo que se torna premente que se reconheça que os castigos físicos, por causa de suas conseqüências, constituem violação a integridade da criança e tem relação com muitas situações danosas que podem vir a acontecer com elas.
VI O EQUILÍBRIO DA FAMÍLIA E AS POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO
            Ao observar família como base da construção do imaginário das relações sociais e das possibilidades de inserção do indivíduo na sociedade percebe-se a importância deste instituto social. Daí ser relevante, para se combater a violência doméstica familiar contra crianças e adolescentes que se trabalhe também as famílias, não apresentando a elas um modelo a ser seguido, mas questionando e refletindo junto com elas o modelo na qual estão enquadrados, revendo como está distribuído o poder entre os seus membros, de forma que seja possível uma convivência menos autoritária.
            A tentativa de defesa dos direitos humanos da população infanto-juvenil com base nas leis, no Estatuto da Criança e do Adolescente, e na Constituição incluem uma atuação sobre a realidade social, na tentativa de dirimir os abusos constantes de práticas lesivas contra crianças e adolescentes. Entendo o castigo físico com uma violação ao direito a integridade física, a intervenção por parte das esferas competentes deve acontecer no sentido de restringi-lo. No entanto, esta realidade faz parte de nossos esquemas culturais, sendo aceito normalmente pela ética social, de modo que não é possível uma atuação meramente restritiva, mas, ao revés, preventiva, que atue por meio das instituições educativas e da família promovendo uma reinvenção dos valores intrínsecos às práticas de educação por parte dos pais.
            A violação da criança é relatada com mais freqüência nas famílias de classe baixa. "A incidência mais alta de violência ocorre entre pais adolescentes, pobres, sem instrução e socialmente isolados, principalmente os de famílias grandes" [19].
            Deve-se notar que o cuidado inadequado e os maus-tratos estão ligados à qualidade precária da relação de apego. "No âmbito da família, são importantes fatores como interações disfuncionais entre os membros da famílias, características infantis eliciadoras do abuso e relações conjugais conflituosas" [20]. Os péssimos níveis que o Brasil alcança em indicadores de desenvolvimentos social certamente demarcam um quadro geral de intensificação das formas de violência no cotidiano da população, especialmente das camadas mais pobres.
            A presença de mecanismos de proteção e segredo na família em torno da agressão, nos casos de abuso à criança, em nome da preservação do mito da família normal tem como conseqüência, além do desamparo e desespero tanto da vítima como do agressor, ocorre a sabotagem da intervenção preventiva, que entra como contexto privilegiado nas possibilidades de intervenção no fenômeno para que se possa garantir o equilíbrio familiar necessário a manutenção da saúde da família e, por conseguinte, das crianças.
VII CONSIDERAÇÕES FINAIS
            Bater não ajuda na educação, senão promovendo a realização de condutas lesivas às crianças, a sua integridade, aprendizagem, e ao próprio comportamento do futuro adulto. Além do mais, a alta prevalência de surras, mesmo que relativamente brandas, transmite ondas de choque ao longo de toda a coluna e podem causar lesões ao funcionamento do organismo, que pode trazer complicações. Deste modo, a atitude de educar os filhos com castigo físicos constituem uma violência desproporcional e sem sentido, que lesa o direito a integridade física e tem influência sobre diversas outras esferas da vida dos indivíduos em processo de crescimento e estabilização de sua vida.
            As leis brasileiras consolidam e garantem direitos específicos às crianças e adolescentes, que necessitam ser cumpridos integralmente para que se possa garantir a manutenção da integridade dos menores. Com o entendimento de que os efeitos da lesão a integridade física influenciarão toda a vida dos indivíduos, a aplicação da lei torna-se ainda mais clara e necessária.
            A repressão, no entanto, não iria resolver o conflito, em virtude da característica de for íntimo das questões familiares e da própria cultura que possibilitaria a manutenção das práticas. A prevenção parece ser a mais importante, pois pode até mesmo, através da informação, levar a mudança no imaginário social quanto ao tratamento dispensado aos meninos e meninas.
            Não podem existir direitos humanos sem respeito às crianças como sujeitos de sua história, que controlam sua aprendizagem e adquirem conhecimentos através da vivência. O ideal, portanto, é que não seja necessário bater nas crianças para educá-las. Que a vontade e o dever de educar esteja sempre condicionada a perceber seus filhos como indivíduos atuantes, que não merecem ser limitados pela mão paterna. O respeito ao outro começa dentro de casa.
VIII REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
            BAPTISTA, Maria Azinalda Neves. Violência doméstica: as contribuições da terapia familiar como uma possibilidade de tratamento. In: Violência doméstica contra crianças e adolescentes. Recife: Editora Universidade de Pernambuco- EDUPE, 2002.
            BASTOS, Ana Cecília de Souza. Intervenção frente ao problema decorrente da violência contra crianças no contexto familiar. In: Revista de psicologia, vol. 13 (1/2), vol 14 (1/2). Fortaleza: EUFC, 1995/1996.
            BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
            BRASIL, Código Civil /obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Luiz Eduardo Alves de Siqueira. São Paulo: Saraiva, 2001.
            BRASIL. Código Civil comparado/ coordenadora: Anne Joyce Angler. São Paulo: Riddel, 2002.
            BRASIL. Código Penal /obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Luiz Eduardo Alves de Siqueira. São Paulo: Saraiva, 2001.
            FERREIRA, KÁTIA Maria Maia. Violência doméstica /intrafamiliar contra crianças e adolescentes. In: Violência doméstica contra crianças e adolescentes. Recife: EDUPE, 2002.
            GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
            HOLANDA, Aurélio Buarque de. Minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
            MUSSEN, Paul Henry; CONGER, John Janeway; KAGAN, Jerome; HUSTON, Aletha Carol. Tradução de Maria Lúcia G. Leite Rosa. Desenvolvimento e personalidade da criança. São Paulo: Editora Harbra, 1995.
            NASCIMENTO, Carlos Alberto Domingues. A dor da violência. In: Violência doméstica contra crianças e adolescentes. Recife: EDUPE, 2002.
            NEPOMUCENO, Valéria. O mau- trato infantil e o Estatuto da Criança e do Adolescente: os caminhos da prevenção, da proteção e da responsabilização. In: Violência doméstica contra crianças e adolescentes. Recife: EDUPE, 2002.
            SILVA, Inalva Regina; NÓBREGA, Renata (colaboração). Feridas que não cicatrizam. In: Violência doméstica contra crianças e adolescentes. Recife: EDUPE, 2002
NOTAS
            01 BAPTISTA, A.N..Violência Doméstica: as contribuições da terapia familiar como possibilidade de tratamento. In: Violência contra crianças e adolescentes (2002); pg. 183
            02 A constituição federal, no seu artigo 226, caput, estabelece que: "a família é base da sociedade e tem especial proteção do Estado".
            03 GOMES, O.Introdução ao direito civil. (2001): pg. 86
            04 Vicente Ráo, citado por Gomes 92001), op.cit. : pg. 104
            05 HOLANDA, A.B. de. Minidicionário da língua portuguesa (1989) : pg. 140
            06 MUSSEN, P.H.; CONGER, J.J.; CAGAN, J.; HUSTON, A.C.. Desenvolvimento e personalidade da criança.
            07 Mussem, Conger, & Huston (1995), op. Cit.; pg 432
            08 Mussem, Conger, Kagan & Huston (1995), op.cit.; pg 434
            09 Baptista (20020, op.cit.; pg. 184
            10 Mussen, Conger, Kagan & Huston (1995), op.cit.; pg 441
            11 BITTAR, C.A.. Os direitos da personalidade (1995); pg. 72
            12 SILVA, I.R.. Feridas que não cicatrizam. In: Violência contra crianças e adolescentes (2002); pg. 88
            13 NASCIMENTO, C.R.D. a dor da violência. In: Violência contra crianças e adolescentes (2002); pg.48
            14 Mussen, Conger, Kagan & Huston (1995), op. cit.; pg 441
            15 BASTOS, A.C.S.. Intervenção frente aos problemas decorrentes da violência contra crianças no contexto familiar. In: Revista de psicologia, vol 13 (1/2), vol 14 (1/2); pg 75
            16 Baptista (2002), op.cit.; pg. 223
            17 Silva & Nóbrega (2002), op.cit.; pg. 91
            18 V.N. Guerra citado por FERREIRA, K.M.M. Violência doméstica /intrafamiliar contra crianças e adolescentes. In: Violência doméstica contra crianças e adolescentes (2002); pg. 33
19 Mussein, Conger, Kagam & Houston (1995), op.cit.;pg.460
            20 Bastos (1995/1996), op.cit.;pgs.79-80