Há nulidade no inquérito policial?


PorPedro Duarte- Postado em 25 fevereiro 2013

Autores: 
Irving Marc Shikasho Nagima

Aborda o tema da existência de nulidade na fase pré-processual (inquérito policial) e sua conseqüência em juízo. Conceito, disposição legal, características, vicios e nulidades.

O inquérito policial pode ser definido como o conjunto de atos praticados pela função executiva do Estado com o escopo de apurar a autoria e materialidade de uma infração penal. Neste sentido, ensina FERNANDO CAPEZ (Curso de Processo Penal. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2003):

"É o conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária para a apuração de uma infração penal e de sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa ingressarem juízo" (p. 70).

E é assim que dispõe o artigo 4º do Código de Processo Penal:

"Art. 4º. A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria".

Em direito comparado, o Código de Processo Penal Português estabelece, em seu artigo 262, item 1, o conceito bem aplicável a nosso direito:

"O inquérito policial compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação".

Assim, o inquérito policial tem como principal objetivo a busca de indícios de autoria e de materialidade, a fim de que seja, então, remetido ao Representante do Ministério Público para que promova ou não a denúncia. FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO (Processo Penal. 10. Ed. São Paulo: Saraiva, 1987. Vol. 1) esclarece que:

"(...) o inquérito visa à apuração da existência de infração penal e à respectiva autoria, a fim de que o titular da ação penal disponha de elementos que o autorizem a promovê-la. Apurar a infração penal é colher informações a respeito do fato criminoso. (...) Apurar a autoria significa que a Autoridade Policial deve desenvolver a necessária atividade visando a descobrir, conhecer o verdadeiro autoria do fato infringente da norma, porquanto, não se sabendo quem o teria cometido, não se poderá promover a ação penal". (p. 163).

Feita essas considerações introdutórias, há de se falar sobre as características do inquérito policial, essencial para a discussão da nulidade nesta fase inquisitorial. As principais características são: (a) procedimento escrito, (b) sigiloso, (c) oficialidade, (d) oficiosidade, (e) autoritariedade, (f) indisponibilidade e (g) inquisitivo.

A respeito das características, vale a pena ressaltar sobre o caráter inquisitivo do inquérito policial. Diz o mestre FREDERICO MARQUES (Tratado de Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 1980. Vol. 1):

"O inquérito policial não é um processo, mas simples procedimento. O Estado, por intermédio da polícia, exerce um dos poucos poderes de autodefesa que lhe é reservado na esfera de repressão ao crime, preparando a apresentação em juízo da pretensão punitiva que na ação penal será deduzida por meio da acusação. O seu caráter inquisitivo é, por isso mesmo, evidente. A polícia investiga o crime para que o Estado possa ingressar em juízo, e não para resolver uma lide, dando a cada um o que é seu. Donde ter dito BIRKMEYER que, na fase policial da persecutio criminis, "o réu é simples objeto de um procedimento administrativo, e não sujeito de um processo jurisdicionalmente garantido". Em face da polícia, o indiciado é apenas objeto de pesquisas e investigações, porquanto ela representa o Estado como titular do direito de punir, e não o Estado como juiz" (pp. 189/190).

Denota-se, daí, que no inquérito policial, não há acusação nem defesa, somente levantamento de fatos para uma possível denúncia / queixa-crime posterior. Tanto é assim que não há sequer o contraditório nesta fase, conforme dispõe a Jurisprudência:

"CONTRADITÓRIO NO INQUÉRITO POLICIAL. INEXISTÊNCIA. (STF). A inaplicabilidade da garantia do contraditório ao procedimento de investigação policial tem sido reconhecida tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência nos tribunais (RT 522/396), cujo magistério tem acentuado que a garantia da ampla defesa traduz elemento essencial e exclusivo da persecução penal em juízo". (RT, 689/439)".

Assim, por possuir conteúdo apenas informativo, para a propositura da ação penal, é o inquérito policial dispensável. Neste raciocínio explica o professor DAMÁSIO DE JESUS (Código de Processo Penal Anotado. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 2004):

"O inquérito policial não é imprescindível ao oferecimento de denúncia ou queixa, desde que a peça acusatória tenha fundamento em dados de informação suficiente à caracterização da materialidade e autoria da infração penal (STF, RTF 76/741; TRF 3ª Reg., HC 98.03.010696, 1ª Turma, Rel. des. Fed. Roberto Haddad, RT 768/719)". (p. 08).

Seguindo esta ordem de idéias, o mestre TOURINHO FILHO (ob. Cit.) salienta:

"O inquérito policial é peça meramente informativa. Nele se apuram a infração penal com todas as suas circunstâncias e a respectiva autoria. Tais informações têm por finalidade permitir que o titular da ação penal, seja o Ministério Público, seja o ofendido, possa exercer o jus persequendi in judicio, isto é, possa iniciar a ação penal" (p. 178).

Ora, evidente que, por ser o inquérito policial um documento informativo, isto é, um instrumento para que seja levada a "notitia" ao membro do Ministério Público (ou ofendido) para a propositura da ação penal cabível, e levando em consideração o valor probatório relativo desta peça inquisitiva, fica claro que estas diligências policiais investigativas servem somente para informar o titular da ação penal de que houve uma infração penal e que tal sujeito é o indiciado como autor do crime (em tese).

Em outras palavras, a sindicância policial serve como base para a propositura da ação penal, porém dispensável se o promotor de justiça ou o ofendido já dispor de elementos suficientes para denunciar ou propor queixa crime.

O promotor de justiça FERNANDO CAPEZ (ob. Cit) adverte:

"Atenção: O titular da ação penal pode abrir mão do inquérito policial, mas não pode eximir-se de demonstrar a verossimilhança da acusação, ou seja, a justa causa da imputação, sob pena de ver rejeitada a peça inicial. Não se concebe que a acusação careça de um mínimo de elementos de convicção". (p. 78).

Fica ainda mais claro quando da leitura dos artigos 27 e 39 §5º do Código de Processo Penal o caráter de disponibilidade do inquérito policial, "in verbis":

"Art. 27. Qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção"

"Art. 39. §5º. O órgão do Ministério Público dispensará o inquérito, se com a representação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal, e, neste caso, oferecerá a denúncia no prazo de 15 (quinze) dias"

Assim, recebendo a "notitia criminis" de qualquer do povo, com elementos necessários para a propositura da ação penal (se pública), isto é, indícios de autoria e de materialidade, para que serviria, então, o inquérito policial?

Sobre este assunto dispõe a Jurisprudência majoritária:

"INQUÉRITO. DISPENSABILIDADE. (STF). "Não é essencial ao oferecimento da denúncia a instauração de inquérito policial, desde que a peça acusatória esteja sustentada por documentos suficientes à caracterização da materialidade do crime e de indícios suficientes de autoria". (RTJ, 76/741)".

E ainda:

"INQUÉRITO. DISPENSABILDIADE (STJ). "O inquérito policial, procedimento administrativo de natureza puramente informativa, não é peça indispensável à promoção da ação penal, exigindo-se tão-somente que a denúncia seja embasada em elementos demonstrativos da existência do fato criminoso e de indícios de sua autoria". (6ª Turma, RHC 5.094 – RS. Rel. Min. Vicente Leal. DJU 20/05/1996, p. 16742)".

Enfim, toda esta demonstração sobre a dispensabilidade do inquérito policial para chegar ao tema dos vícios e da nulidade neste procedimento administrativo policial.

Vícios são defeitos, falhas, imperfeições.

Nulidade é, pois, o reconhecimento pelo direito de que um ato não produz efeitos jurídicos. PAULO LÚCIO NOGUEIRA (Curso Completo de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1985) descreve um conceito de nulidade:

"Nulidade seria a inobservância de exigências ou formas legais em que o ato é destituído de validade (nulo) ou há possibilidade de invalidá-lo (anulável)" (p. 223).

Assim, ocorrendo eventual vício na fase inquisitorial, não estará a ação penal contaminada, pois, como já dito anteriormente, o inquérito policial serve como peça informativa para a propositura da ação penal. Neste diapasão de idéias, FERNANDO CAPEZ (ob. Cit) ensina:

"Não sendo o inquérito policial ato de manifestação do Poder Jurisdicional, mas mero procedimento informativo destinado à formação da opinio delicti do titular da ação penal, os vícios por acaso existentes nessa fase não acarretam nulidades processuais, isto é, não tingem a fase seguinte da persecução penal: a da ação penal. A irregularidade poderá, entretanto, gerar a invalidade e a ineficácia do ato inquinado, v.g., do auto de prisão em flagrante como peça coercitiva; do reconhecimento pessoal, da busca e apreensão, etc". (p. 77).

Esse também é o entendimento de JULIO FABBRINI MIRABETE (Código de Processo Penal Interpretado: referências doutrinárias, indicações legais, resenha jurisprudencial. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 1994):

"O inquérito policial, em síntese, é mero procedimento informativo e não ato de jurisdição e, assim, os vícios nele acaso existentes não afetam a ação penal a que deu origem. A desobediência a formalidades legais pode acarretar, porém, a ineficácia do ato em si (prisão em flagrante, confissão etc.). Além disso, eventuais irregularidades podem e devem diminuir o valor dos atos a que se refiram e, em certas circunstâncias, do procedimento inquisitorial considerado globalmente". (p. 37).

E deste mesmo raciocínio conclui PAULO RANGEL (Direito Processual Penal. 8. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004):

"Conclusão: pode haver ilegalidade nos atos praticados no curso do inquérito policial, a ponto de acarretar seu desfazimento pelo judiciário, pois os atos nele praticados estão sujeitos à disciplina dos atos administrativos em geral. Entretanto, não há que se falar em contaminação da ação penal em face de defeitos ocorridos na prática dos atos do inquérito, pois este é peça meramente de informação e, como tal, serve de base à denúncia. No exemplo citado, o auto de prisão em flagrante, declarado nulo pelo judiciário via habeas corpus, serve de peça de informação para que o Ministério Público, se entender cabível, ofereça denúncia" (fl. 87).

Sobre o assunto, a Jurisprudência já tem seu entendimento:

"INQUÉRITO POLICIAL. VÍCIOS. "Eventuais vícios concernentes ao inquérito policial não têm o condão de infirmar a validade jurídica do subsequente processo penal condenatório. As nulidades processuais concernem, tão somente, aos defeitos de ordem jurídica que afetam os atos praticados ao longo da ação penal condenatória" (STF, 1ª Turma, rel. Min. Celso de Mello. DJU, 04/10/1996, p. 37100)".

O entendimento majoritário é que o inquérito administrativo nunca é nulo. E nesta linha de pensamento descreve o advogado FLÁVIO MEIRELLES MEDEIROS (Nulidades do Processo Penal. 2. Ed. Rio de Janeiro: Aide, 1987):

"O inquérito policial que contém irregularidades, no processo dos crimes que se inicia mediante denúncia, não acarreta nunca nulidade do processo. E por um motivo bastante simples: o inquérito nestes processos (iniciados por meio da denúncia) não é peça processual, e sim peça meramente informativa. Ora, não há de se falar em nulidade de processo devido a vícios de peças não processuais. O inquérito só é peça processual no processo das contravenções e dos crimes de lesões e homicídio culposo; neste caso, as nulidades do inquérito incidem sobre o processo" (fl. 83).

A doutora ADA PELEGRINI GRINOVER (e outros, As Nulidades no Processo Penal. 7. Ed. São Paulo: RT, 2001) manifesta-se no mesmo sentido:

"Frise-se, entretanto, que o reconhecimento da nulidade do auto de prisão em flagrante atinge unicamente o seu valor como instrumento da coação cautelar, não tendo repercussão no processo-crime (STF, RHC 61.252-1, RT, 584/468; TAPR, RT 678/365, TJSP, RT 732/622), nem impede que o juiz, verificando a existência dos pressupostos do art. 312 do Código de Processo Penal, decrete a prisão preventiva". (p. 285).

Diante do exposto, tudo leva a crer que não há nulidade em matéria do inquérito policial, a fim de que possa infectar o processo crime. Há, no entanto, a nulidade – absoluta – do auto de prisão em flagrante, que pode, tão-somente, acarretar em livramento do indivíduo da prisão cautelar.

Note-se, ainda que qualquer vício existente no procedimento administrativo policial não conduzirá em viciado o processo criminal existente, pois, ao contrário da teoria dos frutos da árvore envenenada, o inquérito policial é meramente peça informativa, que dá ao "parquet" notícias sobre os indícios de materialidade e de autoria, para que, então, possa promover a respectiva ação penal.

Finalizando, por ser o inquérito policial o conjunto de diligências realizadas pela Polícia Judiciária, para que investigue os indícios da autoria e da materialidade de possível infração penal, e possuindo também características da inquisitoriedade e da dispensabilidade, qualquer vício que ocorra nesta fase não acarretará, portanto, nenhuma nulidade para o efeito de desconsiderar o processo crime. Eventual nulidade que ocorra em auto de prisão em flagrante, ou qualquer outro elemento congênere, apenas originará a nulidade de tal ato (como, por exemplo, o relaxamento da prisão em flagrante), não logrando qualquer prejuízo a ação penal interposta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPEZ, F. Curso de Processo Penal. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

GRINOVER, A. P.; et al. As Nulidades no Processo Penal. 7. Ed. São Paulo: RT, 2001.

JESUS, D. E. de. Código de Processo Penal Anotado. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

MARQUES, F. Tratado de Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 1980. Vol. 1.

MEDEIRO, F. M. Nulidades do Processo Penal. 2. Ed. Rio de Janeiro: Aide, 1987.

MIRABETE, J. F. Código de Processo Penal Interpretado: referências doutrinárias, indicações legais, resenha jurisprudencial. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 1994.

NOGUEIRA, P. L. Curso Completo de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1985.

RANGEL, P. Direito Processual Penal. 8. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

TOURINHO FILHO, F. da C. Processo Penal. 10. Ed. São Paulo: Saraiva, 1987. Vol. 1.