Estudo de caso: publicidade enganosa nas relações de consumo


Porrayanesantos- Postado em 02 maio 2013

Autores: 
JARDIM, Rodrigo Guimarães

 

 

 

I. Considerações iniciais

 

                        O presente estudo tem como objeto a análise de duas decisões judiciais envolvendo a aplicação do Código de Defesa e Proteção do Consumidor, mais especificamente, de duas situações em que se alegou a veiculação de publicidade enganosa.

 

II. Definições conceituais pertinentes

 

                        Inicialmente, para se definir em quais casos o Código de Defesa e Proteção do Consumidor deve ser aplicado, adota-se o comentário de José Geraldo Brito Filomeno sobre o seu art. 1º, ao explicar que toda relação de consumo

 

a) envolve basicamente duas partes bem definidas: de um lado, o adquirente de um produto ou serviço (“consumidor”), e, de outro, o fornecedor ou vendedor de um produto ou serviço (“produtor/fornecedor”); b) tal relação destina-se à satisfação de uma necessidade privada do consumidor; c) o consumidor, não dispondo, por si só, de controle sobre a produção de bens de consumo ou prestação de serviços que lhe são destinados, arrisca-se a submeter-se ao poder e condições dos produtores daqueles mesmos bens e serviços.

 

                        Já adentrando à questão principal, destaca-se que o art. 6º, inciso III, do Código de Defesa e Proteção do Consumidor, garante ao consumidor o direito à “informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”. Porém, não basta que a informação seja clara, no art. 37 tal Código proíbe a publicidade (meio de transmissão de informações) enganosa, conceituando-a, no § 1º, como

 

qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.

 

                        Sobre a definição legal, Cláudia Lima Marques refere que a

 

característica principal da publicidade enganosa, segundo o Código de Defesa do Consumidor, é ser suscetível de induzir ao erro o consumidor, mesmo através de suas “omissões”. A interpretação dessa norma deve ser necessariamente ampla, uma vez que o “erro” é a falsa noção de realidade (...).

 

                        Postos estes conceitos prévios, passa-se à análise das decisões judiciais selecionadas.

 

III. Caso um: “tarifa zero” não confirmada em serviço de telefonia móvel.

 

                        O primeiro caso a ser analisado é o Recurso Inominado nº 71001223585, julgado pela Turma Recursal do Estado do Rio Grande do Sul. Conforme relatório do acórdão, a consumidora realizou a compra de um chip para telefone celular de uma operadora específica, no valor de R$ 19,00 (dezenove reais). A cliente alega que foi informada por um vendedor que o chip estaria vinculado à promoção “tarifa zero” para ligações realizadas para números da mesma operadora, conforme cartaz exposto na loja. Todavia, posteriormente, ao efetuar as chamadas, constatou que estava consumindo créditos. A consumidora entrou em contato com a operadora e foi informada que a promoção havia encerrado antes do chip ser por ela adqurido. A cliente afirma que retornou a loja e, sem êxito, solicitou a devolução do valor pago, pois somente adquiriu o produto em razão da promoção “tarifa zero”. Por se tratar de propaganda enganosa, ajuizou-se ação judicial com pedido de restituição do valor pago e a concessão de indenização por danos morais na quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) .

 

                        Em primeira instância, a pretensão foi julgada parcialmente procedente, condenando a ré ao pagamento de indenização por danos morais na quantia de R$ 1.050,00 (mil e cinquenta reais) e materiais no valor de R$ 19,00 (dezenove reais). A Turma Recursal reformou a sentença apenas para diminuir o quantum indenizatório para R$ 500,00 (quinhentos reais) .

 

                        Em segunda instância, a decisão foi assim ementada:

 

AÇÃO DE RESOLUÇÃO CONTRATUAL CUMULADA COM REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. Promoção “Tarifa Zero”. Aquisição do chip em data posterior ao término da promoção. Existência de cartaz promocional no estabelecimento comercial na data da compra. Propaganda enganosa configurada. Direito à resolução do contrato, com o retorno das partes ao estado inicial. Devido o pagamento de indenização por danos morais pela frustração gerado no consumidor. Quantum reduzido para melhor atender ao caráter punitivo e sancionatório correspondente ao caso em tela.

 

Recurso parcialmente provido. Recurso Inominado nº 71001223585 - Turma Recursal do Estado do Rio Grande do Sul.

 

                        Com base nas palavras já referidas de José Geraldo Brito Filomeno, conclui-se que se trata de lide envolvendo relação de consumo, aplicando-se, portanto, o Código de Defesa e Proteção do Consumidor.

 

                        In casu, a informação prestada à consumidora, embora clara e precisa, era equivocada e, portanto, enganosa, porque a promoção da operadora expirou antes da aquisição do chip. O fato de o cartaz ter permanecido afixado em local que chamasse a atenção do consumidor somado à informação prestada por empregado do estabelecimento configura a publicidade enganosa, base da formação da vontade da autora em adquirir o produto. Além disso, o argumento defensivo de que a fornecedora do serviço não teve tempo hábil para retirar o cartaz não a exime da responsabilidade, inclusive porque seu preposto confirmou o benefício em questão à adquirente.

 

                        Nesse diapasão, o próprio Código Civil permite a anulação do negócio porque a declaração de vontade foi emanada de forma viciada, seja por erro substancial (art. 138), conceituado legalmente como aquele que “interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração, ou a alguma das qualidades a ele essenciais”, ou mesmo por dolo (art. 145), já que o preposto do fornecedor, tendo conhecimento do fim da promoção, prestou informação equivocada.

 

                        Nesse caso, o Código de Defesa e Proteção do Consumidor, além do desfazimento do negócio (art. 20, II), permite a execução específica, pois o art. 48 prevê que as “declarações de vontade constantes de escritos particulares, recibos e pré-contratos relativos às relações de consumo vinculam o fornecedor, ensejando inclusive execução específica, nos termos do art. 84 e parágrafos”. Mais: o princípio da boa-fé objetiva também permitiria a execução específica para que não fosse frustrada a expectativa legítima da consumidora em aderir à promoção “tarifa zero” .

 

                        Por tudo isso, verifica-se que a consumidora tinha a faculdade de postular a execução específica ou a restituição imediata da quantia paga, restabelecendo-se o status quo ante à contratação, e, tendo ela optado pela segunda possibilidade, o fez de acordo com art. 20, II, do Código de Defesa e Proteção do Consumidor.

 

                        Ademais, em parcas palavras, necessário destacar a correta redução do valor da indenização por danos morais, haja vista a situação não ter gerado dor, frustração e sofrimento elevados. No caso em comento, a definição do quantum indenizatório está muito mais relacionada ao caráter sancionatório, para evitar a repetição da conduta pelo fornecedor, do que para reparar a consumidora e, como bem registrado no acórdão em questão, “o valor a ser fixado não pode servir como verdadeiro enriquecimento sem causa, (...) correndo-se o risco de que o dano passe a ser desejado, desvirtuando por completo este importante instituto de direito que é o dano moral.” 

 

III. Caso dois: desvalorização do “carro do ano” pelo lançamento de novo modelo.

 

                        O segundo caso a ser analisado é o Recurso Inominado nº 71001161223, julgado pela Turma Recursal do Estado do Rio Grande do Sul. Consta no relatório do acórdão que o consumidor adquiriu um automóvel ano 2006, modelo 2007, todavia, a fornecedora retirou o referido modelo de linha - passando a vender outro modelo 2007. Aí residiria a enganosidade, pois, se o modelo do veículo era 2007, não poderia a fornecedora ter lançado outro modelo nesse ano. Foi postulada a condenação do fornecedor ao pagamento de indenização no valor da desvalorização do bem (20% do preço) ou a sua substituição por um modelo novo.

 

                        Em primeira instância, a pretensão foi julgada improcedente. A decisão foi mantida pela Turma Recursal, e foi ementada nos termos abaixo:

 

CONSUMIDOR. DANOS MATERIAIS. DESVALORIZAÇÃO DE VEÍCULO EM VIRTUDE DE LANÇAMENTO DE NOVO MODELO. Propaganda enganosa não configurada. Ré que, cumprindo o pactuado, entrega o carro comprado pelo demandante. O lançamento de outro modelo de automóvel, com o mesmo ano do carro do Requerente, não é motivo para desvalorização – que se dá com o emplacamento do bem. Dever de indenizar não configurado. (...)

 

Sentença mantida. Recurso Inominado nº 71001161223 – Turma Recursal do Estado do Rio Grande do Sul.

 

                        Com base nas palavras já referidas de José Geraldo Brito Filomeno, novamente não resta dúvida que se trata de lide envolvendo relação de consumo, aplicando-se, então, o Código de Defesa e Proteção do Consumidor.

 

                        Primeiramente é necessário consignar o fato de este segundo caso não ter uma solução tão clara como a do primeiro. Pela improcedência do pedido, linha do voto, a publicidade veiculada pela fabricante de automóveis não seria considerada enganosa porque refletia “a realidade do momento. À época de sua veiculação o modelo cuja foto está impressa no jornal era o modelo 2007. Assim, as mesmas não têm o condão de induzir o consumidor a erro.” 

 

                        Além disso, como asseverou a fornecedora, é notório que a atualização dos modelos é a evolução natural, pois o mercado exige a constante adaptação ao gosto dos consumidores, ávidos por mudanças, principalmente visuais. E não se pode exigir que os fabricantes anunciem com antecedência as alterações que serão realizadas, pois, como esse ramo envolve milhões, quiçá bilhões, todas as medidas são válidas para evitar que o concorrente tenha acesso prévio ao design dos lançamentos. 

 

                        Ainda na linha da improcedência, mais dois argumentos são relevantes: a desvalorização dos automóveis já se dá com o emplacamento, ou seja, o conhecimento empírico demonstra que, imediatamente após a venda, o veículo já sofre uma diminuição no preço; e, principalmente, a licitude da conduta do fornecedor que coloca no mercado produto de melhor qualidade, conforme previsão do art. 12, § 2º, do Código de Consumo. Logo, ao adquirir um produto “top” de linha, não nasce para o consumidor o direito de exigir que o fornecedor se abstenha de lançar um produto mais moderno para conservar o preço daquele adquirido, nem o direito de exigir uma compensação financeira por eventual desvalorização. Isto ocorre por um motivo muito simples: é do interesse da sociedade e de toda a humanidade que produtos cada vez mais modernos sejam lançados, que a tecnologia evolua rapidamente para facilitar e melhorar a qualidade de vida das pessoas. Parece ser esse o foco principal da argumentação pela improcedência da demanda.

 

                        Por outro lado, em que pesem os fundamentos até agora expostos, há uma peculiaridade que parece insuperável. Há muito está consagrada a expressão “carro do ano” com o significado que determinado modelo é aquele que será fabricado no respectivo ano. Até porque estabelecer o ano de fabricação do automóvel é uma questão óbvia para a sua identificação, é como se fosse o seu “ano de nascimento”.

 

                        Agora, a dissociação entre ano e modelo é uma criação do fornecedor para antecipar o lançamento de um novo modelo e, portanto, antecipar as vendas desse novo modelo e a obtenção de lucros. No caso em análise, o veículo adquirido era ano 2006, modelo 2007. Nesta situação, há uma desvalorização natural e lícita do veículo ano/modelo 2006, pois quando faz essa dissociação - ano 2006, modelo 2007 - o fornecedor está transmitindo ao consumidor a ideia de que o modelo 2007 será o “carro do ano de 2007”, está nele incutindo a expectativa legítima de que não será fabricado um veículo ano/modelo 2007 diferente daquele ano 2006, modelo 2007. Concluindo o pensamento, como a dissociação ano/modelo é feita pelo fornecedor para majorar seus lucros e como fazendo isso ele transmite ao consumidor a ideia de que o modelo 2007 será o “carro do ano de 2007”, a ele é defeso fabricar um outro veículo ano/modelo 2007 diferente daquele ano 2006, modelo 2007.

 

                        Esse raciocínio se deve (a) ao princípio da vinculação da oferta, pois, ao fazer a dissociação referida, o fabricante está vinculado a fazer a associação no ano seguinte; (b) ao princípio da boa-fé objetiva, pois se criou a expectativa legítima no consumidor de adquirir em 2006 o modelo que será “carro do ano” em 2007; e (c) porque entendimento contrário configuraria publicidade enganosa e enriquecimento ilícito do fornecedor. Gize-se ser lícita a conduta do fornecedor lançar em 2007 um veículo ano 2007, modelo 2008, mas ilícita fazer as duas coisas juntas (lançar um veículo ano/modelo 2007 diferente do ano 2006, modelo 2007).

 

                        Tecidos esses argumentos, entende-se que a Turma Recursal do Estado do Rio Grande do Sul deveria ter reformando a sentença de primeiro grau, condenando a fornecedora de veículos a indenizar o consumidor ou a substituir o veículo por um novo.

 

IV. Considerações finais.

 

                        Depois de analisar esses dois casos práticos, é possível concluir-se que o elemento orientador para se verificar se está configurada a enganosidade na publicidade é a potencialidade de a informação fazer o consumidor incidir em erro. Decorrência da própria boa-fé objetiva, há que se proteger a expectativa legítima criada pelo fornecedor do produto e assimilada pelo consumidor.

 

                        Por essa razão, concordou-se com o primeiro caso analisado, já que a fixação de cartaz visível na loja tem exatamente a finalidade de informar o consumidor, inclusive aquele que sequer estava interessado no produto, mas que, por visualizá-lo ao passar pelo estabelecimento, poderia interessar-se. Por coerência com a proteção à expectativa legítima, discordou-se da segunda decisão, pois ao comercializar um veículo ano 2006, modelo 2007, o fornecedor transmitiu ao consumidor a ideia de que o modelo 2007 seria o “carro do ano de 2007”, ouse seja, nele incutiu a expectativa legítima de que não seria fabricado um veículo ano/modelo 2007 diferente daquele ano 2006, modelo 2007.

 

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